Euclides da Cunha além de Os sertões

 Roberto Ventura

Caros amigos de São José do Rio Pardo:

 

Agradeço à Câmara Municipal e à sua presidenta, Ana Lúcia Sernaglia, o convite para proferir a conferência de abertura da 87a Semana Euclidiana. Sou grato ainda à Casa de Cultura Euclides da Cunha e ao seu diretor, Lázaro Curvelo Chaves pelo convite para participar de mais este encontro.

O tema da semana que hoje se inicia, "Euclides da Cunha além de Os sertões", foi concebido como uma homenagem a Olímpio de Souza Andrade. Nascido em São José do Rio Pardo em 1914, Olímpio é um dos mais importantes estudiosos de Euclides da Cunha.

História e interpretação de Os sertões, seu livro de 1960, é a análise mais esclarecedora da vida e da obra de Euclides. Recebeu, por esse ensaio, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Pen-Clube e o Prêmio Afonso d’Escragnolle Taunay, da Academia Paulista de Letras. Escreveu também Joaquim Nabuco e o pan-americanismo, premiado pela Unesco em 1959. Nabuco, líder do movimento abolicionista, é um dos temas das mesas-redondas deste ano.

História e interpretação é uma história intelectual e artística de Euclides da Cunha, em que Olímpio partiu justamente daquilo que mais importa em um escritor: sua obra. Assim comentou, na apresentação do livro, a preocupação em atingir o equilíbrio entre vida e obra, entre biografia literária e abordagem textual: "Procuramos balancear história e interpretação de acordo com o que nos pareceu mais útil para o conhecimento de Os sertões, não nos prendendo a um método único".

Observou ainda sobre o enfoque adotado:

"Tudo quanto vimos a preocupar Euclides da Cunha até à época de Os sertões e paralelamente à elaboração de Os sertões – versos canhestros sobre a natureza e os temas da sua época; relações com o Exército, a matemática, as ciências físicas e naturais e a engenharia; trato ininterrupto com os livros, principalmente os de assuntos políticos, sociais e filosóficos; viagens, incessantes viagens que fizeram dele um estupendo comedor de horizontes; escritos pioneiros; grandes amizades; bate-papos com os simples, dos quais recolhia termos e expressões; manuseio de velhos documentos nos arquivos – cada coisa dessas tem o seu grau de participação em Os sertões, sendo, se isoladas, como riachos pobres a formarem um Paraíba grosso, desaguando de mansinho no mar largo da sua obra."

Percebe-se, nessa passagem, a prosa requintada e despretensiosa, elegante e ao mesmo tempo simples, de um escritor equilibrado, Olímpio de Souza Andrade, que se defrontava com a linguagem rebuscada e exuberante de Euclides da Cunha.

Olímpio recriou a relação do autor de Os sertões com a natureza na infância passada em Cantagalo, Teresópolis e São Fidélis, ou já como engenheiro militar em Campanha e como repórter em Canudos; suas primeiras leituras de poetas românticos como Victor Hugo, Fagundes Varela e Castro Alves; o contato com as obras de filosofia de Auguste Comte e de geologia de Emmanuel Liais; a formação profissional na Escola Militar e na Politécnica; as atividades profissionais como engenheiro a serviço do Exército e depois em São Paulo; a colaboração jornalística com A Província de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, da qual resultaria a cobertura da guerra de Canudos.

Olímpio privilegiou assim os aspectos biográficos que importam para a interpretação dos escritos de Euclides, desde o seu primeiro artigo "Em viagem", de 1884, até o livro-denúncia de 1902, que o consagraria como escritor.

Euclides já manifestava, no seu primeiro artigo, publicado no pequeno jornal dos alunos do Colégio Aquino, no Rio, o interesse pela natureza que se faria presente em toda a sua obra, tanto em Os sertões, quanto nos ensaios sobre a Amazônia de Contrastes e confrontos e de À margem da história. Comentava um passeio de bonde pela cidade do Rio, de onde via as encostas cobertas de mata, e idealizava a natureza ameaçada pelo progresso. Introduzia, nesse quadro quase idílico, um tom lúgubre ditado por sua sensibilidade romântica, e protestava contra a estrada de ferro, que degradava a beleza da paisagem: "Tudo isto me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor!"

Olímpio interpretou Os sertões como "obra de ficção", inclassificável e indefinida, pela mistura incomum de literatura, história e ciência, em que a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, se aliava à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Mostra ainda como Euclides combinou a pesquisa histórica de fontes e documentos à imaginação poética, de modo a recriar, em termos artísticos e literários, os fatos e personagens da guerra de Canudos.

Olímpio destacou o gosto de Euclides pelas palavras distantes e raras, pelos contrastes e paradoxos. Tal gosto preciosista já tinha sido apontado pelo crítico José Veríssimo, que chamara a atenção para o abuso dos termos técnicos, das palavras antigas e inventadas e das frases rebuscadas, que tornavam o seu estilo um tanto artificial e gongórico. O artigo pioneiro de Veríssimo, que saiu no Correio da manhã, em 3 de dezembro de 1902, no dia seguinte ao lançamento de Os sertões, trouxe o reconhecimento imediato de seu autor, que se tornaria membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras no ano seguinte.

Os estudos euclidianos ganharam novas perspectivas com os artigos e manuscritos, que Olímpio recolheu e editou. Reuniu, na Obra completa, editada pela Aguilar em 1966, os artigos de Euclides que se encontravam soterrados em jornais do Rio e São Paulo, como A Província de S. Paulo, Democracia e O Estado de S. Paulo. Esses artigos mostram um outro Euclides, distante do prosador refinado e irônico de Os sertões. Revelam sua face de militante político e de propagandista da República, que escrevia, após a expulsão do Exército, artigos irados e inflamados, em que atacava o Imperador e a família real e pregava a necessidade de revolução.

Na antologia Canudos e inéditos, de 1967, Olímpio recolheu as reportagens de Euclides sobre a guerra de Canudos. Sua antologia apresenta a mais completa coleção dos artigos do correspondente de O Estado de S. Paulo, fundamentais para a compreensão tanto do conflito militar quanto do processo de escrita de Os sertões.

Deu ainda ainda novo rumo às pesquisas sobre Canudos ao divulgar a Caderneta de campo, caderno de anotações que o escritor usou durante a guerra, guardado hoje no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A caderneta contém os rascunhos das reportagens e do livro que pretendia escrever, o registro de palavras sertanejas e expressões populares, cópias de cartas, diários e documentos e os desenhos que fez do vale do rio Vaza-Barris.

Euclides registrou na caderneta as profecias religiosas sobre o fim do mundo e as quadras de poesia popular sobre a proclamação da República, transcritas de cadernos e papéis encontrados nas ruínas da comunidade. Esses poemas e profecias foram o ponto de partida para a sua interpretação de Canudos como movimento sebastianista e messiânico, ligado à crença no retorno mágico do rei português d. Sebastião, que despareceu em batalha na África no século XVI e que retornaria, com suas tropas, para restaurar a monarquia.

O infatigável pesquisador morreu em 1980, antes de completar Euclides depois de Os sertões, livro concebido como continuação da História e interpretação. Tive acesso a esses originais graças à generosidade de sua viúva, Noemia Ferreira de Andrade, e de seus filhos, a professora Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro e Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, chefe da seção de iconografia da Biblioteca Nacional.

Nas centenas de páginas datilografadas, com diversas anotações manuscritas, desse livro quase acabado, Olímpio recriou a vida e a obra de Euclides depois do sucesso de crítica e de público de Os sertões. Tratou de suas atividades de engenheiro, da expedição à Amazônia, do trabalho como cartógrafo no Itamarati e dos ensaios reunidos em Contrastes e confrontos e À margem da história.

Assim resumiu, na apresentação da História e interpretação, o plano desse livro ainda inédito:

"Nele veremos Euclides depois de Os sertões, em novas aventuras no espaço e no tempo, outra vez partindo com o horizonte nos olhos para novas terras, novos ares, novas águas. Transmitindo-nos do ponto privilegiado em que se colocou – a fronteira Arte-Ciência, que cruzava nos dois sentidos com ligeireza e bom gosto – as suas observações lúcidas sobre homens, paisagens, acontecimentos. Ensinando-nos como os raros."

Como os raros, Olímpio também nos ensinou. Lançado há quase quatro décadas e há muito esgotado, História e interpretação continua sendo uma obra definitiva, que serve de base para os mais recentes estudos sobre Euclides. Seu livro é citado por Nicolau Sevcenko em Literatura como missão, por Walnice Galvão na edição crítica de Os sertões, por Leopoldo Bernucci em A imitação dos sentidos, por Augusto e Haroldo de Campos em Os sertões dos Campos, por Regina Abreu em O enigma de Os sertões, e por José Carlos Santana em Ciência e arte.

Gilberto Freyre já tinha observado que a natureza que transborda de Os sertões é aquela que a personalidade angustiada do escritor precisou de exagerar para se completar e se exprimir. Euclides transfigurava, pela força da imaginação, a paisagem à sua volta, vendo por toda parte miragens e espectros que remetiam à mitologia, à história e à literatura. As serras de pedra do Cambaio, por exemplo, que as tropas da segunda coluna, sob o comando do general Savaget, tiveram que atravessar sob tiroteio, lhe lembravam velhíssimos castelos ou fortalezas de titãs em ruínas, remetendo às batalhas míticas da antiguidade.

Os sertões se destacou, em meio à enxurrada de livros sobre Canudos, graças à preocupação estilística de seu autor. Ganhou permanência pela escrita poética e imagética, ainda que muitos de seus aspectos científicos se encontrem superados. É o caso das hipóteses geológicas e das teorias raciais, desenvolvidas em "A terra" e "O homem", e de alguns aspectos de sua reconstrução histórica, marcada por uma visão negativa e mesmo preconceituosa de Canudos e da atuação do Conselheiro.

Euclides admitiu, nas reportagens sobre a guerra de Canudos, que havia subestimado a resistência dos sertanejos e sua capacidade de luta. Observou que o conflito apresentava uma feição incompreensível e misteriosa. Surpreendia-se que os conselheiristas, já em número reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco da cidade, em vez de fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação.

Os estudos e as edições de Olímpio de Souza Andrade são até hoje peças fundamentais para se desvendar o enigma de Canudos e de Os sertões.

 

Roberto Ventura

São José do Rio Pardo, 9 de agosto de 1999

 

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