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Extraído de Galvão, Walnice Nogueira. Saco de gatos. Ensaios
críticos. São Paulo, Duas Cidades, 1976.
Veja também o texto integral das reportagens.
O CORRESPONDENTE DE GUERRA EUCLIDES DA CUNHA
A Guerra de Canudos foi o acontecimento jornalístico de maior importância
do ano de 1897, no Brasil. Os mais destacados jornais do país enviaram
correspondentes especiais ao local da luta, ou encomendaram a participantes
dela a remessa regular de notícias.
Dentre os enviados especiais, salienta-se o nome de Euclides da Cunha. Ainda
pouco conhecido a essa altura, já era todavia tido por pessoa culta e
instruída no pequeno círculo dos que com ele conviviam. Redator
d'O Estado de São Paulo, relacionara-se com o assunto devido a
dois artigos que escrevera para essa folha, ambos com o título de "A
nossa Vendéia", publicados com intervalo de alguns meses, a 14 de
março e 17 de julho de 1897. Suscitara o primeiro artigo a derrota e
debandada das forças militares que compunham a 3ª Expedição
contra Canudos, causando celeuma e pânico nas capitais do Rio e de São
Paulo; o segundo tem por motivo a demora que a 4ª Expedição
encontra em liquidar logo o reduto. O título dos dois artigos se deve
ao estabelecimento de uma comparação que Euclides efetua mas que
veicula a opinião predominante, tanto é que foi repetida e glosada.
De acordo com ela, a insurreição sertaneja seria tão reacionária
e monarquista para com os ideais "revolucionários" da República
como o fora o levante camponês da Vendéia para com a Revolução
Francesa de 1789.
Incumbido pelo jornal em que trabalhava, o engenheiro militar e tenente reformado
Euclides da Cunha segue de navio no início de agosto para a Bahia, como
membro da comitiva do Ministro da Guerra. Demora-se algum tempo em Salvador
e depois vai para o interior. Só a 10 de setembro está enviando
uma correspondência do acampamento em Canudos. Como o arraial foi tomado
e a luta concluída a 5 de outubro, Euclides não chegou a presenciar
um mês de campanha. Cerca de dois terços do conjunto das reportagens
foram por ele escritos antes de chegar a Canudos, alimentando-se das reflexões
prévias e de informações colhidas; e só do dia 10
de setembro em diante que pode falar como testemunha ocular. Do mesmo modo,
e tendo-se por base o que foi publicado no jornal, a série é interrompida
abruptamente; a última correspondência tem a data de 1º de
outubro. quatro dias antes da queda do arraial, portanto. Euclides não
relatou os últimos dias da luta, mas ainda sobre Canudos aparece um último
artigo seu, a 26 de outubro, intitulado "O batalhão de São
Paulo", elogiando o desempenho dessa tropa na campanha; e assim termina
a série.
A publicação das correspondências nas páginas d'O
Estado de S. Paulo foi extremamente irregular e não respeitou a ordem
em que elas foram escritas, mas sim a ordem de recebimento; por vezes, também,
várias delas são publicadas num número só. E preciso
lembrar que não havia avião e que só notícias curtas
eram mandadas pelo telégrafo; as correspondências submetiam-se
ao tráfego moroso e aleatório dos portadores. E o final da guerra,
como aliás é também verificável nas reportagens
de outros jornais, marca o momento do desinteresse: à correspondência
publicada em 27 de setembro só vai seguir-se outra duas semanas depois,
a 12 de outubro, do último grupo. Afinal, a guerra terminara no dia 5,
e o assunto não mais era palpitante.
A importância maior destas reportagens só foi percebida posteriormente
à publicação d'Os Sertões, já que
nelas reside o embrião do futuro livro. O fascínio pela geologia
e pela geografia específicas da região, com que Euclides entra
em contacto pela primeira vez, já lá estão presentes. Do
mesmo modo a curiosidade pelos sertanejos, que se apresentam enigmáticos
para o autor, pode ser rastreada nestas páginas. Aqui também se
encontram os primeiros sinais da reviravolta de opinião que vai eclodir
n'Os Sertões, quando Euclides desmentirá a propalada conspiração
monarquista de que Canudos seria um foco. Tímidas e insinuadas observações
hesitantes de repórter se transformarão na denúncia apaixonada
que é o seu livro mais famoso e o mais famoso dentre os inúmeros
livros sobre essa guerra. A qualidade literária, marcada por um estilo
caprichado, de vocabulário requintado e sintaxe complexa, igualmente
aqui já se registra.
Como trabalho independente, estas reportagens apareceram por duas vezes em
forma de livro. Foram lançadas em 1939 pela Editora José Olympio,
em edição preparada por Antônio Simões dos Reis,
com o título de Canudos - Diário de uma Expedição.
E, em 1966, a Melhoramentos publicou-as em volume intitulado Canudos e Inéditos,
organizado por Olímpio de Souza Andrade, especialista que é o
autor de História e Interpretação de Os Sertões.
***
A primeira correspondência enviada é datada ainda de bordo do
navio Espírito Santo, tendo à vista a cidade do Salvador,
cujo aspecto Euclides descreve. Parece que ele não passou muito bem durante
a viagem de quatro dias. Conjetura sobre o destino que aguarda os soldados que
abarrotam o navio, premidos entre a saudade do lar e a incógnita nada
animadora que os aguarda. Todavia, diz ele, têm todos o animo forte e
disposto a defender a causa da República ameaçada. Sinais de mau
tempo, do lado da "nossa Vendéia", são vistos como simbólicos
dessa ameaça; mas ela será desfeita pelas armas republicanas.
Esta correspondência descreve a cidade do Salvador transformada em praça
de guerra, com tropas aquarteladas nos fortes históricos da resistência
aos holandeses e das lutas pela Independência. As velhas ruas têm
sua aparência habitual alterada pelo bulício dos soldados que por
elas se movimentam. Feridos e mutilados da campanha encontram-se em abundância;
a presença próxima da guerra se faz sentir. Euclides conta ter
visitado os hospitais, para verificar seu funcionamento e entrar em contacto
com os soldados em tratamento. Aproveita igualmente a oportunidade para investigar
as causas do insucesso da 4ª Expedição em obter uma vitória
rápida e definitiva. Faz críticas à estratégia empregada;
mas admite que a luta está no fim, devido ao esgotamento dos recursos
materiais e humanos dos jagunços.
Euclides narra o desembarque de um lote de feridos vindos no trem do sertão,
a que assistiu, mostrando-se sensibilizado pelas cenas que presenciou. Volta
a falar no sacrifício exagerado dos soldados, devido a erros de organização
e de chefia, tema que mais tarde analisará minuciosamente n'Os Sertões.
Mas o Ministro da Guerra, Marechal Machado Bittencourt, está tomando
providências para garantir abastecimento farto de alimento e munição,
o que deverá mudar a feição da campanha.
Um dos chefes da expedição, o General Savaget, comandante da
2ª Coluna (a 4ª Expedição se compunha de duas colunas
que, vindas de pontos diversos, convergiram nos arredores - de Canudos; a lª
Coluna era comandada pelo General Silva Barbosa, cabendo o comando-em-chefe
da expedição ao General Artur Oscar), é reconhecido pela
população nas ruas de Salvador. A aclamação espontânea
que se segue é comentada por Euclides, comovido e entusiasmado. Traça
rápido perfil do General Savaget e do Coronel Carlos Teles, após
visitá-los, enaltecendo a modéstia e a bravura de ambos, opinião
que confirmará mais tarde em seu livro. Contrasta o garbo dos militares
que vê pelas ruas com a atitude da "burguesia tímida"
civil.
A cidade de Salvador tornou-se o ponto de confluência de tropas vindas
dos mais distantes pontos do país. Para Euclides, é como se a
história se refizesse em movimento contrário: pois foi a partir
da Bahia que se fez a irradiação inicial do povoamento, que para
ela agora reflui. A chegada do Batalhão Paulista, a caminho do sertão,
lembra o das expedições dos bandeirantes, também paulistas;
a estes, Euclides mais tarde chamará de "empreiteiros de hecatombes",
n'Os Sertões. O repórter vê na reunião - de
brasileiros tão diferentes a nacionalidade viva em ação,
não ante o invasor estrangeiro mas para defender a Pátria do inimigo
interno. Este constitui uma ameaça à integridade nacional por
representar "vícios orgânicos e hereditários"
acumulados pelos séculos, aceitos pelo Império, mas em vias de
serem destruídos pela intransigência da República. O nome
de Antonio Conselheiro surge pela primeira vez, como portador simbólico
desses vícios. Para o repórter, a luta se trava entre a saúde
moderna da República e o atraso irrecuperável da população
interiorana apática e supersticiosa, que urge ser destruído para
que a Pátria se afirme. Depois da vitória, o ensino deverá
consolidar a obra. E com palavras de ardente entusiasmo marcial que se encerra
esta correspondência.
Agora, começam a aparecer indícios de inquietação
quanto ao desenrolar da campanha e seu imprevisível término. Euclides
ouvira, ao chegar a Salvador, repetidas garantias de que o inimigo estava reduzido
a um mínimo de resistência, quase extinto pelas balas e enfraquecido
pela fome. Por que não se entrega, então? Coloca e discute várias
hipóteses, relacionadas com estratégias mais amplas que dariam
cobertura ao inimigo, o qual contaria com aliados até mesmo na capital
baiana. O autor faz duras críticas, ainda, a alguns militares combatentes
que pediram reforma, quando a refrega vai tão acesa.
O episódio que se segue tem sua importância maior por figurar
praticamente intacto n'Os Sertões, comportando apenas ligeiras
alterações. Trata-se do famoso lance em que um punhado de jagunços
tenta tomar um canhão a força de braços. Já se mostra
aqui o pendor para a narrativa dramática, que terá papel tão
preponderante especialmente na 3ª parte daquele livro, intitulada "A
luta".
Aqui, Euclides tem pela primeira vez contacto pessoal com um jagunço.
E quase um menino, aprisionado pelas tropas e trazido para Salvador, onde se
faz uma espécie de conferência de imprensa para interrogá-lo.
O repórter transcreve a impressão que tem de cada um dos líderes
da insurreição, baseado no depoimento do prisioneiro; estes começam
a adquirir contornos humanos. Também certos aspectos da vida dentro do
arraial, principalmente as sanções moralistas referentes a bebida
e mulheres, são ventilados aprovativamente. Euclides conclui afirmando
que considera as informações dignas de fé.
Entre anotações pessoais sobre seu próprio estado de
espírito e as dificuldades que as tropas enfrentam nesta fase da campanha,
Euclides tece considerações sobre a necessidade de um desenlace
rápido que garanta a vitória a qualquer preço.
Euclides, enquanto não viaja para o sertão, colhe informações
e procura dados. Agora apresenta o comentário de um jornal de três
anos antes, do interior da Bahia, que já fala do perigo que Antonio Conselheiro
representa para a ordem constituída.
O repórter continua a se informar e a informar seus leitores. Desta
vez o objeto é um livro (que também será comentado n'Os
Sertões), onde Antonio Conselheiro já aparecia como um condutor
de povos, antes mesmo de se fixar em Canudos. Percebe-se que a figura do líder
rebelde fascina e intriga o repórter, que se estende em lucubrações
a seu respeito. Refere-se, ainda, à carta aberta do Coronel Carlos Teles
aos jornais do Rio, que protesta contra os exageros da imprensa e as falsas
informações tendentes a aumentar o poderio do inimigo; Euclides,
prudentemente, abstém-se de tomar partido. Lamenta ainda a falta de assunto,
regozijando-se por, finalmente, estar prestes a embarcar para o sertão.
Enfim, eis o repórter em marcha. Data já esta correspondência
de Alagoinhas, aonde chegara de trem. Seu interesse é imenso por tudo
o que vê, e vê pela primeira vez; descreve a paisagem, a natureza,
o solo, a vegetação, as pequenas cidades e vilas, deplorando a
alteração que a guerra trouxe à região. Em Alagoinhas,
tem notícias animadoras do desempenho do Batalhão de São
Paulo, e já se apresta rumo a Queimadas.
Em Queimadas, os traços da proximidade da guerra são mais marcantes;
ali aquartelavam normalmente as tropas a caminho da frente de luta. O repórter
dá um passeio pelos arredores, detendo-se longamente no exame da flora
característica da caatinga, que desenvolverá cuidadosamente mais
tarde em seu livro. Informa sobre o êxodo que se deu nos meses anteriores
a partir dos povoados em direção de Canudos, que assim teve seu
contingente de defensores aumentado. Seu contacto com sertanejos aliados leva-o
a fazer um apelo para que, após o final da guerra, eles sejam "incorporados
à civilização" já que "constituem o cerne
da nossa nacionalidade"
De Queimadas são enviadas ainda mais três correspondências,
publicadas no mesmo número do jornal. Chegam notícias de Canudos,
mas não há novidades: o cerco continua estacionário. Euclides
insiste na recomendação de um assalto rápido e definitivo,
porque prevê perigos num assédio prolongado. Aproveita o tempo
disponível para sair de novo pela caatinga. Descreve um grupo de prisioneiras,
com seus filhos pequenos, que chega a Queimadas. Daí para diante, viajará
a cavalo.
- 4 (de Tanquinho), 5
(de Cansanção) e 5 (de Quirinquinquá)
de setembro
As três correspondências seguintes dão conta das etapas
da viagem entre Queimadas e Monte Santo; neste último local será
instalado o quartel-general do Ministro da Guerra. Tanquinho deixa o repórter
horrorizado com as precárias condições de higiene do abastecimento
de água que dá nome ao local. Já Cansanção
lhe causa uma impressão melhor, embora seja minúsculo e pobre.
Euclides confraterniza com os sertanejos, juntamente com a comitiva do Ministro,
na missa e no churrasco. E em Cansanção que está instalado
o posto de assistência aos soldados do Comitê Patriótico
da Bahia, dirigido por dois frades alemães. No acampamento de Quirinquinquá,
depois, é onde todos passam a última noite antes de percorrerem
o trecho que ainda os separa de Monte Santo.
- 6, 7,
8, 9,
10 e 11
de setembro (de Monte Santo)
Uma vez em Monte Santo, Euclides se entusiasma com a visão das tropas
ali aquarteladas e que apresentam armas ao Ministro e sua comitiva. Reencontra
antigos colegas da Escola Militar e se sente entre companheiros. Reitera sua
insistência num assalto final e definitivo. Transmite informações
- como a de que "Canudos está militarmente construído",
suas casas dispondo-se em ordem que facilite movimentos de tiro - que desmentirá
em outras correspondências. A via-sacra de Monte Santo, balizada pelas
capelas, é objeto de sua admiração pelo que representa
de esforço sertanejo. Sempre interessado pela geologia, já começa
a construir uma teoria que mais tarde estabelecerá uma analogia entre
a sorte da terra e a sublevação de Canudos, n'Os Sertões,
a primeira determinando a segunda. As notícias da guerra vizinha são
escassas, mas importantes: foram derrubadas as torres da Igreja Nova e ganhou-se
mais uma trincheira. De Monte Santo, o próximo objetivo do repórter
será Canudos.
De saída, a data desta correspondência coloca um problema que
ainda não foi resolvido: a última correspondência de Monte
Santo é datada de 11 de setembro e a primeira de Canudos de 10 de setembro.
Tal incoerência sugere um erro de datação, ainda mais que
a seguinte só será escrita no dia 24 de setembro, com um intervalo
inexplicado de duas semanas, justamente quando o repórter afinal chegou
ao local da guerra que tinha por incumbência relatar.
Agora em Canudos, Euclides estuda a topografia do lugar em que se implanta
o arraial, a partir de uma perspectiva estratégica; o próprio
arraial é também descrito, bem como as casinhas que o compõem.
Comenta o combate de 18 de julho e narra o episódio do atirador solitário:
são assuntos que depois tratará extensamente em seu livro.
Afinal, Euclides presencia um combate e pode narrá-lo como testemunha
ocular; mas dedica a correspondência à descrição
dos prisioneiros que vão chegando: velhos, mutilados, mulheres e mesmo
uma criança de seis meses. É o início da arrancada final,
que terminará pela vitória das Forças Armadas.
O último refúgio dos resistentes é a praça, estando
já toda a cidade tomada e em chamas, embora o repórter não
diga como foram elas ateadas. Como continuam atirando incessantemente, Euclides
manifesta sua admiração por "essa gente indomável".
Relata o interrogatório de uma prisioneira, que se esquiva às
perguntas. A correspondência termina em meio à fuzilaria.
A luta continua. Apesar de cercado em seu último reduto, várias
vezes o inimigo dele sai, tomando a iniciativa de atacar as tropas; era a única
maneira de chegar até à água a que não mais tinha
acesso. Euclides volta a falar da possibilidade de que esta guerra tenha ramificações
externas que lhe dão apoio. O incêndio continua a dominar o arraial
e o combate ameaça continuar pela noite adentro.
- (sem o dia, publicada a 21 de outubro de 1897; "setembro de 1897")
Canudos não se entrega e Euclides mais uma vez elogia o heroísmo
dos resistentes. Narra o episódio do boato infundado da vitória,
a que se segue uma pausa de três horas no tiroteio, sem que ninguém
saiba por que. Mas este recomeça e dá sinais de, novamente, atravessar
a noite.
Os canudenses continuam varando as linhas para obter água e o tiroteio
persiste. Euclides conta o passeio que fez dentro do arraial ocupado; registra
a impressão de miséria que teve, ao ver de perto e pela primeira
vez os casebres e os pobres trastes que constituem seu mobiliário.
Esta longa correspondência é a última da série.
A queda de Canudos é iminente mas o combate prossegue ainda, encarniçado.
Euclides está impressionado pela coragem inquebrantável dos conselheiristas
e reitera seu apelo para que eles sejam incorporados à nacionalidade.
O triste espetáculo dos feridos no hospital-de-sangue também não
é dos mais animadores para o repórter. São narrados nesta
correspondência vários episódios da arrancada definitiva,
terminando a série ao som contínuo do tiroteio. Os dias que medeiam
entre esta última reportagem e a data de 5 de outubro, quando Canudos
caiu, serão extensamente examinados n'Os Sertões. O apelo
de Euclides, se era em favor dos conselheiristas mais do que dos sertanejos
em geral, não pôde ser atendido porque todos os homens válidos
aprisionados eram degolados sumariamente; e os últimos defensores de
Canudos, mortos no fosso em que se abrigavam, eram apenas quatro, inclusive
um velho e uma criança. Nos cinco anos seguintes, Euclides se ocupará
em reunir material para escrever seu livro, acrescentando algumas de suas próprias
observações - como as acima mencionadas - que não incluíra
nas reportagens.
(1972)
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