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Extraído de: Galvão, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco.
Ensaios críticos. São Paulo, Brasiliense, 1981.
(Professora Titular de Teoria Literária da Universidade
de São Paulo) Os oitenta anos de reflexões feitas neste país acerca de Os
Sertões constituem um considerável acervo crítico.
Mas se, de um lado, as reflexões trouxeram achegas importantes para a
sua compreensão, por outro lado suscitaram. novos problemas. Tampouco
se pode deixar de lembrar como esse livro tem o condão de alinhar opiniões
radicais, nem sempre sensatas, ou contra ou a favor. Quase sempre, ao longo
desses decênios, o comentarista ou detesta o livro ou o ama, apaixonadamente.
O amor ou o ódio que se devotam ao livro facilmente se estendem à
pessoa do autor. Sua personalidade enigmática, sua vida marcada por tragédias
incríveis, pode desavisadamente se insinuar entre o leitor e a leitura.
Por isso, tem-se caído na outra tentação, a de tentar ignorar
o autor para se ter uma visão que se pretenda objetiva da obra. Aqui,
o perigo é que se pense conhecer bem a obra, para depois cair-se das
nuvens quando se vem a saber os lances da vida do autor. O leitor pode então
passar a se considerar enganado de propósito.
Vamos primeiro, então, limpar a área e contar tudo. Passado
o susto, e mais acostumados aos episódios do enredo da vida, poderemos
nos deter nos comentários à obra. Não é que o que
ocorreu com Euclides da Cunha tenha sido tão extraordinário. Nos
quadros habituais da família patriarcal brasileira, os feitos são
perfeitamente compreensíveis e até correntes. Talvez se tornem
chocantes quando se constata como, num autor de postura tão científica,
a vida seja ao contrário tão pouco científica, sua ação
pessoal seja tão irracional. Se ele fosse um cidadão comum, estaria
agindo sem qualquer desacordo com aquilo que se convencionou como sendo a defesa
da honra, da família e da propriedade. Mas como ele era um cidadão
célebre, uma pessoa pública, uma glória nacional, a repercussão
foi enorme. Por isso mesmo, e mesmo não marcando exceção
entre as pessoas públicas e os cidadãos célebres, tentou-se
e se tenta lançar um véu pudico sobre a vida privada que seus
próprios gestos tornaram pública.
Afinal, nada há de extraordinário em se tentar matar uma esposa
adúltera e o rival. Os costumes constrangem o homem traído a fazê-lo,
para manter sua integridade e seu respeito. E ele pode contar com um júri
benevolente que o absolverá, pois que regido pelos mesmos valores consuetudinários
que ele. Até hoje as coisas assim se passam. E Euclides, excepcionalmente,
se portou de maneira civilizada durante algum tempo, pois aceitou um filho de
outro pai entre seus próprios filhos.
O fato é que ficara um ano longe de sua mulher, esta no Rio, enquanto
chefiava a Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, na Amazônia.
Viajara em dezembro de 1904, retornando ao Rio em janeiro de 1906. De volta
ao lar, encontrou sua esposa grávida. Meies depois veio à luz
uma criança de nome Mauro, que viveu apenas sete dias e foi perfilhada
por Euclides. No fim do ano seguinte, nasce mais um filho adulterino. E, em
paz ou não, viveram juntos todos, inclusive os dois filhos mais velhos
do casal, Solon e Euclides da Cunha Filho, por mais algum tempo. Consta que
Euclides costumava dizer da loura criança alheia entre seus filhos morenos
que era uma espiga de milho no meio do cafezal.
O desenlace só se da quando a esposa, levando os filhos, abandona o
lar e vai para a casa de Dilermando de Assis, o outro homem em sua vida. No
dia 15 de agosto de 1909, Euclides invade aquela casa, armado, e começa
a atirar. Dilermando e seu irmão Dinorah adiantaram-se para enfrentar
Euclides, enquanto D. Saninha e as crianças se refugiavam num quarto
mais para os fundos. Ora, os dois irmãos eram militares, Dilermando cadete
do Exército e Dinorah aspirante de Marinha. Euclides atingiu Dinorah
na espinha, em conseqüência do que ficou inválido, teve sua
carreira interrompida e anos mais tarde suicidou-se. Mas Dilermando atirou certeiramente,
matando Euclides. Mais tarde, depois de julgado e inocentado como autor de morte
em legítima defesa, Dilermando de Assis se casou com D. Saninha, e tiveram
mais filhos. Parece que sua carreira foi dificultada, tendo ele sido sempre
enviado a postos longínquos e preterido nas promoções.
O certo é que a todo momento, durante toda a sua vida, era obrigado a
vir a público para se defender de calúnias que continuaram a lhe
dirigir, tendo inclusive escrito livros de justificação.
Ora, isto tudo foi um affaire entre militares, já que Euclides
era tenente reformado do Exército e sua esposa filha de general. Os poderes
constituídos e a opinião pública desejavam com tal ardor
o sangue do homicida, que a menor dúvida sobre sua inocência afetaria
o veredicto. Se, nessas condições altamente desfavoráveis,
ainda assim não foi possível declarar Dilermando culpado, é
porque realmente não se encontrou fundamentação legal.
Euclides foi velado na Academia Brasileira de Letras e enterrado com todas
as honras públicas. A nação ficou de luto.
Entretanto, não seria em poucos anos que a mesma conjuntura que presidiu
ao enfrentamento iria mudar. O filho segundo de Euclides, que tinha o mesmo
nome que ele e também se encaminhava para a carreira militar, sendo aspirante
de Marinha, provavelmente foi criado e nutrido para tornar-se o vingador do
pai - e da honra, da família e da propriedade. Em 1916, agride a tiros,
dentro do Fórum do Rio de Janeiro, o mesmo Dilermando de Assis. Este,
que mais tarde seria campeão nacional de tiro ao alvo, novamente é
atingido várias vezes, e com um tiro certeiro mata Euclides da Cunha
Filho. Novo processo, nova inocentação por legítima defesa.
Várias décadas mais tarde, Dilermando ainda declarava ao escritor
Francisco de Assis Barbosa que carregava no corpo quatro balas que não
puderam ser extraídas, duas do pai e duas do filho.
Esse lado digamos notório da vida de Euclides não deve todavia
obscurecer sua atividade pessoal de homem público. Era homem público
porque era jornalista, era homem público porque participou da agitação
republicana que preparava a queda do Império, era homem público
porque era militar, era homem público porque era escritor, era homem
público porque era engenheiro. Pense-se no que era o Brasil no último
quartel do século passado, um país colonial que começara
a sofrer o impacto da Revolução Industrial. A máquina,
a ferrovia, a rodovia, o saneamento, a navegação fluvial, o processo
de industrialização no campo e na cidade, foram temas a que Euclides
emprestou sua pena e dedicou sua ação pessoal como engenheiro.
E não foi só ele, foi uma geração ou mesmo duas
a quem o ofício da engenharia aparecia como dos mais importantes para
quem desejava se pôr a serviço da nação. Euclides
mesmo foi profissionalmente engenheiro, o resto eram atividades paralelas que
lhe permitiam equilibrar o orçamento; e engenheiro-funcionário
público, como é de tradição num país onde
a camada letrada sempre mamou e até hoje mama nas tetas do Estado.
Nessa fase, tinham começado a surgir as escolas de engenharia, que
eram (ao contrário de agora) focos de modernidade. As velhas Faculdades
de Direito e de Medicina, onde os filhos da classe dominante se tornavam bacharéis
e médicos, trampolim para a carreira política, vinham-se suceder
as escolas técnicas. Na capital do país, Rio de Janeiro, havia
duas, a Politécnica ou Escola Central, e a Escola Militar. Embora tenha
ingressado na primeira, Euclides faz seu curso na segunda, que é gratuita
e já integra a carreira militar, por isso sendo procurada pelos membros
da mesma classe dominante porém sem fortuna. Aí se passa o incidente
em que pela primeira vez na vida Euclides chama a atenção pública,
quando, em sinal de protesto contra a monarquia, atira ao chão céu
sabre no momento em que o Ministro da Guerra visitava a Escola Militar. Abandona
os estudos e só os retoma depois da proclamação da República,
acaba saindo formado oficial-engenheiro-militar pela Escola Superior de Guerra.
Nessa qualidade, presta alguns serviços, tais como um estágio
na Estrada de Ferro Central do Brasil, nas fortificações das Docas
Nacionais no Rio e na Diretoria das Obras Militares no Estado de Minas Gerais.
De sua formatura em 1891 ao ano de 1896, em que passa para a reforma como Primeiro
Tenente, vão cinco anos de engenharia militar. Daí em diante será
engenheiro civil, mas continuará funcionário público. Nesta
função, que exercerá em vários lugares, sua obra
que ficou para a posteridade é a ponte sobre o Rio Pardo, em São
José do Rio Pardo, no Estado de São Paulo. Já famoso, após
a publicação de Os Sertões, e membro da Academia
Brasileira de Letras, pouco antes de morrer presta o concurso para a cátedra
de Lógica do Colégio Pedro II, no Rio. Colocado em segundo lugar,
é, no entanto, depois de alguns vaivéns, nomeado para o cargo,
embora tivesse obtido o primeiro lugar Farias Brito, talvez o mais importante
filósofo brasileiro.
Em sua formação acadêmica, predominaram as tendências
que marcam a Escola Militar na época, e que, embora aí concentradas,
também se mostram em outros setores da vida letrada brasileira. As duas
grandes causas do tempo são a abolição dos escravos e a
implantação da República. A ciência, as matemáticas,
o positivismo, o determinismo, o evolucionismo são privilegiados, Comte,
Darwin e Spencer os nomes-chave. Nunca é demais lembrar que o lema da
bandeira brasileira, na República pacificamente proclamada pelos militares
em 1889 (um ano depois da abolição da escravidão), é
Ordem e Progresso, diretamente copiado das lições de Auguste
Comte.
Nesse sentido, a formação de Euclides não difere da formação
de seus contemporâneos. Ou, mais precisamente, não difere da formação
do pequeno setor ilustrado que fazia parte da classe dominante, que era, por
assim dizer, sua vanguarda intelectual.
Quanto às duas grandes causas do tempo, o abolicionismo e o republicanismo,
apresentam-se no Brasil um pouco deslocadas do contexto latino-americano. Quando
a maioria das colônias ao Sul do Rio Grande" adquire sua independência
das nações européias nos inícios do século
XIX, o movimento geral é o de se transformarem simultaneamente em repúblicas
de homens livres. No Brasil, a independência, que se faz em 1822, implica
apenas um transplante da metrópole para a colônia. Cuidadosamente
preparado desde que D. João VI, o rei português, viera para o Brasil
em 1808, fugindo às tropas de Napoleão, esse transplante na verdade
foi uma escolha que a coroa portuguesa fez: entre uma metrópole pobre
e uma colônia rica, preferiu esta última. a Assim, é o filho
herdeiro do rei português quem proclama a independência, e a colônia
passa a ser uma nação independente, continuando escravocrata e
monárquica, tendo como rei um rei português, igualmente herdeiro
do trono de Portugal. Só muito mais tarde é que seriam libertados
os escravos, em 1888, e um ano depois se adotaria a forma republicana de governo,
em 1889. Nesse mesmo descompasso com relação ao contexto latino-americano
devem ser buscadas as razões pelas quais o Brasil continuou a ser um
país de imenso território e não se esfacelou em várias
nações menores.
Com um só rei à sua frente, e um rei que recebia a colônia
intacta e a conservava intacta independente, a centralização ficava
garantida; todavia, esta centralização fora feita a ferro-e-fogo
nos tempos coloniais, e mesmo depois teve que ser, como o foi em várias
ocasiões, preservada igualmente a ferro-e-fogo. Antes da Independência
de 1822, vários movimentos tinham aspirado a libertar-se do domínio
português. E, como regra, eles eram republicanos e localistas. Se independência
significava ao mesmo tempo república, por outro lado não
significava grande nação. Eram sempre pedaços do país
que estavam no horizonte desses movimentos para serem subtraídos à
condição colonial. Nem é preciso dizer que foram todos
duramente reprimidos.
Os ideais da Revolução Francesa e da guerra de independência
norte-americana alimentaram os anseios de libertação em toda parte
na América Latina. As palavras de ordem provinham do léxico desses
dois eventos. Por isso, não se deve admirar, embora não tenha
qualquer fundamento histórico, e se encontre notavelmente defasado quanto
aos avanços sócio-econômicos e políticos, que Euclides
da Cunha (e não era só ele, no Brasil) procure assimilar a proclamação
da República à Revolução Francesa. Nos seus poemas
juvenis, figuram quatro sonetos dedicados aos líderes da Revolução
Francesa, intitulados Danton, Marat, Robespierre e Saint-Just.
Dessa maneira, qualquer coisa que parecesse ameaçar remotamente a consolidação
do novo regime republicano era logo posta na conta de reacionária e restauradora.
Assim aparecia, para os contemporâneos, qualquer perturbação
da ordem. Foi preciso que se passassem várias décadas antes que
se deixasse de aplicar a pecha de monarquista ao mais mínimo sinal
de descontentamento.
Toda a obra escrita de Euclides da Cunha faz-se profundamente engajada com
esse quadro de ideais. Além de Os Sertões, onde analisou
uma rebelião rural, versou assuntos tão variados quanto política
nacional e internacional, questões sociais, literatura, geografia e geopolítica,
projetos econômicos. Esses assuntos foram objeto de artigos, depois reunidos
em livros. Duas dessas coletâneas foram publicadas ainda durante sua vida,
em 1907, com os títulos de Contrastes e Confrontos e Peru Versus
Bolívia. Mas muitos outros escreveu, que foram coligidos - seja os
de jornalismo militante, seja relatórios oficiais, discursos públicos,
conferências - na edição da Obra Completa que a Companhia
José Aguilar Editora publicou no Rio, em 1966.
Embora Euclides não fosse um estreante em jornalismo, pois antes disso
já escrevera não só em jornais escolares mas também
nos maiores jornais do Rio e de São Paulo, foi no ano de 1897 que publicou
dois artigos que o ligariam ao livro que o tornaria célebre. Com o título
de "A nossa Vendéia", ambos apareceram com o intervalo de alguns
meses no jornal O Estado de S. Paulo. Nesses artigos, Euclides examina
pela primeira vez os acontecimentos que estão se passando já há
algum tempo lá longe, no sertão da Bahia. O primeiro artigo foi
evidentemente provocado pela fragorosa derrota da terceira expedição
militar enviada contra o arraial de Canudos. No dia 3 de março de 1897
o comandante da expedição, Coronel Moreira César, é
ferido em combate, morre, e as tropas batem em retirada. Todavia, o artigo,
publicado dez dias depois, surpreendentemente quase não se refere ao
aspecto guerreiro do episódio, dedicando-se antes a uma análise
do meio geográfico. Detém-se no tipo de solo, no sistema de ventos,
no clima, na vegetação, constrói uma teoria da seca endêmica
naquela região, examina a hidrografia, dá destaque ao relevo e
à topografia. Estes últimos fatores parecem ter sido muito importantes
nas tomadas de decisão na guerra, bem como na dificuldade que as forças
armadas oficiais encontraram. Só no fim alude aos homens que vivem naquele
meio, para considerá-los como frutos óbvios dele, traçando
uma rápida analogia entre sua revolta e a dos camponeses da Vendéia.
Aí está, nesse artigo, o embrião de Os Sertões.
Nota-se a preocupação de estudar cuidadosa e "cientificamente"
o meio ambiente, de estabelecer a determinação do meio ambiente
sobre o homem e suas ações, de enfrentar o enigma da formação
étnica daqueles homens. O paralelo com a Vendéia deve-se a que,
considerando-se a instauração da República no Brasil em
pé de igualdade com a Revolução Francesa na França,
um movimento insurrecional no sertão só pode ser contra-revolucionário.
A Revolução Francesa teve seu potencial inovador desafiado, dentro
do próprio território da nação, pelos camponeses
da província da Vendéia, que em 1793 se levantaram em armas e
exigiram a restauração do Ancien Regime com rei e tudo.
O que se passava agora no Brasil, embora um século depois, devia ser
a mesma coisa. Um bando de gente desconhecida, perdida no seio do sertão,
estava enfrentando e derrotando as forças do Exército Nacional,
movido por razões ignoradas. Não podia deixar de ser um perigoso
surto de restauração monárquica contra o regime republicano
novo de nem dez anos ainda, o qual, por sua vez, encarnava os ideais revolucionários
franceses de 1789. Por isso, Canudos era "A nossa Vendéia".
Diga-se já que Euclides veio a superar essa proposição
e que quando escreve depois Os Sertões não mais acredita
nela, pelo menos em parte.
Convocada a quarta e poderosa expedição no início do
mês de abril, nem por isso seu curso anda mais depressa. Dificuldades
de toda sorte complicam a vitória que parece à vista, dado o porte
dos meios mobilizados para conquistá-la. É aí que, em meados
de julho, Euclides publica seu segundo artigo sob o mesmo título. Volta
a insistir nas ásperas características da natureza e do adversário
que os soldados têm que enfrentar. Desta vez, detém-se com mais
vagar na ação militar, tecendo alguns comentários, todos
favoráveis e justificatórios, sobre as razões que fazem
demorar o desenlace da campanha. Aqui aparece mais um traço de Os
Sertões, onde estará presente uma a minuciosa análise
de cada passo do Exército na guerra, os acertos e os erros, as alternativas
possíveis, as responsabilidades assumidas ou não. Enfim, uma postura
de estrategista do Exército. Em Os Sertões, Euclides, enquanto
deplora a sorte dos insurretos e a crueldade com que foram tratados, ao mesmo
tempo, e como se não houvesse nenhuma contradição nisso,
aponta a estratégia que teria tornado a ação do Exército
mais eficiente. Mas o tempo da revisão ainda não chegou; neste
segundo artigo de "A nossa Vendéia", o sertanejo ainda é
uma incógnita à qual se aplica um reconfortante estereótipo
- ele é "o inimigo" - e o soldado brasileiro ainda é
o herói.
A publicação desses dois artigos deve ter influído numa
mudança importante no destino de Euclides. Pois aquela campanha, para
a qual a esta altura convergiam tropas do país inteiro sob o comando
de três generais, não se decidia. Esperava-se que ela fosse fulminante,
já que não havia possibilidade de comparação entre
as forças em choque. De um lado, havia o Exército, equipado com
o mais moderno armamento, incluindo armas de repetição e canhões,
liderado por uma oficialidade de carreira já veterana de outras repressões,
dotado do entusiasmo guerreiro de quem vai defender uma causa justa, ardente
de animação republicana. Ainda mais, muitas das forças
que operavam nessa guerra já tinham feito parte de outras campanhas pacificadoras,
pois o que não faltava nessa época eram rebeliões e levantes
internos. Do outro lado, havia uns pobres-diabos analfabetos, dispondo de armas
muito primitivas, facões, foices, bacamartes obsoletos que funcionavam
com pólvora improvisada e balas de pedra. O porte da campanha era respeitável;
e, devido a seu arrastar-se interminável, o próprio Ministro da
Guerra acabou deixando seu gabinete no Rio de Janeiro, então capital
do país, e se mudou para o sertão, indo instalar seu quartel-general
em Monte Santo, perto de Canudos. Em sua comitiva, segue Euclides da Cunha,
oficialmente adido ao Estado-Maior. Ia numa posição privilegiada,
já que, se sua missão era apenas fazer reportagens para o jornal
O Estado de S. Paulo, contava com uma situação melhor que
a maioria de seus confrades. Para ser indicado como repórter, Euclides
acumulava qualificações. Já tinha escrito extensamente
em vários jornais, e há vários anos; era autor de dois
artigos versando precisamente sobre aquela guerra; e, qualificação
não menos valiosa que as outras, era militar.
Por que esse súbito interesse da imprensa por aquela rebelião
longínqua? Poucos assuntos - e quase sempre são assuntos que dizem
respeito à segurança nacional - já obtiveram da imprensa
brasileira uma tal unanimidade de opinião e de exploração.
No ano de 1897, e especialmente a partir da derrota da Expedição
Moreira César em março, é impossível abrir-se um
jornal brasileiro sem que esse assunto ocupe seus mais importantes espaços.
Aquilo que era anteriormente noticiário esparso torna-se seção
fixa, com título próprio, na primeira página. E impregna
todas as categorias em que se dividem os escritos de jornal. A Guerra de Canudos
invade o editorial, a crônica, a reportagem, o anúncio e até
o humorismo. Como forte veículo de manipulação, antes da
era da comunicação eletrônica, o jornal, a serviço
de correntes políticas a quem interessava criar o pânico e concentrar
as opiniões em torno de um só inimigo, prestou serviços
inestimáveis. Já que não era caso de invasão, não
se podia contar com um inimigo externo; tinha-se aqui, bem à mão,
e tão marginalizado que nem poderia protestar contra o papel que lhe
atribuíam, um inimigo interno. A função do jornal foi servir
como porta-voz das referidas correntes, lançando um brado de alerta e
de convocação do corpo nacional ameaçado pela subversão
interna. Não foi a primeira nem será a última vez que o
jornal a isso se presta; basta abrirmos o exemplar de hoje. Mas certamente,
no caso do Brasil, foi de um pioneirismo extraordinário. E, se esse pioneirismo
é mais para envergonhar que para honrar, todavia nesse momento a eficácia
do veículo foi enorme.
Os jornais dessa época são pólvora pura. Quando chegou
ao Rio e a São Paulo a notícia da derrota da Expedição
Moreira César, a agitação de rua - que, claro, não
é espontânea, tem seus líderes que a encaminham para objetivos
específicos - dirigiu-se contra quê? Invadiu-se o palácio
da presidência da República, jogaram-se bombas em embaixadas, atacaram-se
quartéis, agrediu-se a bancada baiana no Congresso? Não: empastelaram-se
quatro jornais monarquistas, três no Rio e um em São Paulo. O saldo
de mortos no mesmo dia registra somente um, um jornalista de nome Gentil de
Castro, abertamente filiado a grupos monarquistas, abatido num atentado em praça
aberta na capital do país.
Se a nação atravessava uma época de enorme instabilidade
econômica e política, a conhecida tática de atribuir a culpa
a um inimigo que é o inimigo de todos foi utilizada com grande felicidade.
Lembremo-nos dos judeus na Alemanha de Hitler. O fantasma da época era
o monarquismo. Mas os monarquistas eram poucos e demasiado conhecidos; tratava-se
de alguns figurões do Império que ainda sobreviviam, pois a maioria
deles tinha aderido ao novo regime. A jovem República, que a esta altura
nem terminara sua primeira década, já tivera que enfrentar duas
guerras civis, a Revolução Federalista, que mantivera o extremo
Sul em pé de guerra durante alguns anos, e a Revolta da Armada. Embora
fossem rebeliões confusas e não se saiba muito bem o que pretendiam
- provavelmente só se fica sabendo com certeza quando elas ganham e não
quando são abortadas -, foram imediatamente chamadas de monarquistas.
Mas, em ambos os casos, tratava-se de revoltas institucionais. a primeira com
chefes políticos conhecidos e a segunda envolvendo uma parte da Marinha.
No caso de Canudos houve uma feliz coincidência. De fato, aquele aglomerado
de gente perdida nos confins do sertão só tinha, quando tinha,
uma vaga idéia do que significava viver sob regime republicano e não
mais sob regime monárquico. Sabe-se, por exemplo, que Antonio Conselheiro
achava de péssima moralidade que os republicanos tivessem expulsado do
Brasil a família real, na qual figurava a Princesa Isabel que assinara
a lei de libertação dos escravos. Muitos destes se contavam entre
os seguidores de Antonio Conselheiro. Outra restrição sua era
a instituição do casamento civil, que retirava do casamento o
caráter de sacramento e o transformava num contrato como outro qualquer.
Estas duas objeções se encontram documentadas num manuscrito atribuído
a Antonio Conselheiro, reunindo sermões e prédicas, recentemente
publicado. Tanto bastava para que o arraial de Canudos fosse transformado no
foco de uma conspiração restauradora com ramificações
nacionais e internacionais. Uma vasta rede monarquista, com sede em Paris, Nova
Iorque, Londres e Buenos Aires, munida de recursos financeiros infinitos, enviando
continuamente armamento moderníssimo através de seus eficientes
canais secretos, providenciando especialistas estrangeiros que vinham treinar
os rebeldes, movimentava-se para tomar o poder no Brasil. De todo esse movimento,
Canudos era apenas o foco provocador, abertamente insurgente, que aglutinaria
o Exército enquanto o resto do país ficaria desguarnecido e presa
fácil das forças conspiradoras. O único problema é
que nada disso nem existia nem Antonio Conselheiro fora informado.
À acusação de monarquista veio somar-se outro elemento
formador da feliz coincidência: a face desconhecida do inimigo. Ninguém
sabia quem era ele, o que pretendia, o que o motivava, porque resistia, em nome
do que lutava, o que o fazia apegar-se com tanta fúria àquele
deserto de pedra e cacto muito para lá do alcance de qualquer estrada.
Tanto mais fácil projetar nele o que se quisesse, toda espécie
de medo, de horror. de repulsa. Ele não era brasileiro, com certeza.
Era outra gente, outro povo, até mesmo outra raça. Os jornais
da época, na sua irresponsabilidade, se encarregaram de divulgar toda
espécie de representação em que os sertanejos apareciam
com epítetos de animais, monstros, seres imaginários, qualquer
coisa enfim que os despojasse de sua teimosa humanidade. Tal vocabulário
não é privilégio dos jornalistas; dele se servem políticos
eminentes, chefes militares, homens públicos dedicados à defesa
do liberalismo como Rui Barbosa. Este último, por exemplo, em conferência
que pronunciou na capital da Bahia e que foi publicada em quinze partes pelo
jornal O Comércio de São Paulo (edições de
9 de junho a 7 de julho de 1897), chama os canudenses de "uma horda de
mentecaptos e galés" e os considera um caso de polícia apenas.
Deve ter sido um alívio geral quando se conseguiu nomear o inimigo.
Tenha o leitor em mente que ele não era um ex-político do Império
nem seu filho ou primo, que ele não era um militar rebelado, que ele
não era escravo negro, que ele não era índio, que ele não
era um citadino. Em seu primeiro artigo da dupla "A nossa Vendéia",
Euclides o chama de sertanejo e tabaréu, sinônimos de habitante
do interior. Já no segundo artigo utiliza o vocábulo que tinha
entrado em voga no noticiário jornalístico para designá-lo:
jagunço. Nesse segundo artigo, bem como nas reportagens que faz como
enviado especial d'O Estado de S. Paulo, conjunto mais tarde reunido
em livro com o título de Diário de uma Expedição,
a palavra aparece grifada, denotando sua estranheza. Mais tarde, n'Os Sertões,
o grifo desaparece, a designação está incorporada à
norma do discurso. As comparações históricas que Euclides
faz naquele segundo artigo não são das mais lisonjeiras para o
inimigo. Certamente não o faz de propósito, mas as analogias que
lhe acodem são todas racistas. Ou bem o Exército brasileiro enfrentando
os sertanejos se compara aos romanos enfrentando os bárbaros, ou bem
a europeus modernos enfrentando negros na África. A concepção
subjacente é a do embate entre civilização e selvageria,
entre raça superior e raça inferior.
O termo jagunço, desde então incorporado às letras pátrias
sem grifo, tem campo semântico flutuante. Usado alternadamente com o de
cangaceiro, significa guarda-costas a soldo. Apenas, jagunço se usa mais
nos sertões do Norte de Minas Gerais e da Bahia, enquanto cangaceiro
é mais corrente nos Estados propriamente do Nordeste, como Sergipe, Alagoas,
Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Quanto à
origem desses termos, cangaceiro é aquele que vive debaixo do cangaço,
sendo cangaço o conjunto típico de armas que ele usa - duas cartucheiras
cruzadas no peito, duas mochilas suspensas dos ombros e levadas em baixo dos
braços, punhal, garrucha e o rifle. Não se deve esquecer, por
sua importância emblemática, o conhecido chapéu de couro
com seus enfeites. A palavra jagunço se deve a um deslocamento por metonímia,
pois é o mesmo nome da vara com ferrão que se usa para conduzir
gado, instrumento de trabalho obrigatório para o habitante pobre das
zonas de pecuária extensiva que compõem o sertão. Daí,
até a ampliação e utilização que o termo
teve e tem, muita água corre. De qualquer modo, jagunço se usou
e se usa até hoje para designar bandido, homem violento que anda armado
sem fazer parte do aparelho de Estado ou das forças armadas regulares.
Chamar os canudenses de jagunços era o mesmo que chamá-los, a
todos e indiscriminadamente, de bandidos. Como se vê, se a denominação
de jagunço respeitava a especificidade do inimigo, por outro lado ela
era usada com toda a sua conotação pejorativa.
No Diário de uma Expedição, como se intitulou
o conjunto de reportagens que Euclides escreveu como enviado especial d'O
Estado de S. Paulo, percebe-se quão pouco Euclides assistiu da guerra.
Cerca de dois terços das reportagens relatam a viagem para chegar até
lá, e apenas o terço restante é narrado por testemunho
ocular. Uma das dificuldades de leitura de Os Sertões reside exatamente
nisso: dada a escolha do foco narrativo, o leitor fica sem saber com que tipo
de fonte está lidando. Por isso, aqui fique a informação.
Euclides enviou sua primeira reporta em dos bivaques que constituíam
o cerco de Canudos datada do dia 16 de setembro, tendo presenciado portanto
menos de um mês da guerra, que terminaria no dia 5 de outubro.
A trajetória que o pensamento de Euclides percorreu com relação
ao que ele pensava da guerra é curiosa de ser acompanhada nas páginas
sucessivas desse Diário. Não é, aliás, muito
diferente do que se passou com os demais repórteres. O cotejo entre as
reportagens mostra algumas constantes reveladoras. De imediato, percebe-se que
os repórteres se dirigiram a Canudos já sabendo o que iam informar.
As primeiras matérias enviadas são sempre uma série de
chavões. Os rebeldes são monarquistas, bandidos, fanáticos,
hereges, perversos, animalescos, traiçoeiros, servem a interesses reacionários
e ideologias exóticas, não são brasileiros. Os soldados
são patrióticos, heróicos, abnegados, sublimes em sua dedicação
à causa republicana, eficientes, disciplinados, civilizados. A República
está em perigo, urge salvá-la a qualquer preço. Ainda não
estava na moda falar em banho-de-sangue e o genocídio ainda não
era qualificado como uma estratégia moderna.
Todavia, percebe-se a certa altura das reportagens que a observação
começa a fazer perigar os chavões. Os repórteres começam
a desconfiar de que não estão assim tão bem informados
e passam a registrar suas dúvidas. E quase todos começam a se
escandalizar com as práticas que presenciam. Quando a guerra termina,
e da maneira como terminou, estão todos contrafeitos e pouco à
vontade.
Todos os grandes jornais brasileiros mandaram enviados especiais ao palco
da guerra, sendo que em alguns poucos casos o repórter era também
combatente. Afora O Estado de S. Paulo, publicaram reportagens em série
os seguintes jornais: a Gazeta de Notícias, A Notícia,
o Jornal do Brasil, o Jornal do Comércio, O País,
o República, do Rio; o Diário de Notícias
e o Jornal de Notícias, da Bahia. Entre os repórteres,
figuram os nomes de Lelis Piedade, do Tenente-Coronel Siqueira de Menezes, (com
o pseudônimo de Hoche), do Coronel Favila Nunes, do Capitão Manuel
Benício, do Major Manuel de Figueiredo, de Alfredo Silva e do Coronel
Constantino Néri.
Sem dúvida, a melhor reportagem é a de Manuel Benício
para O Jornal do Comércio. Emprega menos chavões que os
demais, desce a minúcias tais como o preço da comida e do sabão
para lavar roupa, descreve a desorganização e a fome que ele próprio
e os soldados estão sentindo, conta da má localização
do acampamento responsabilizando-a pelo fato de que os combatentes sejam alvejados
e mortos dentro das barracas. Enfim, seu relato é tão vívido
que, naturalmente, a cobertura que está fazendo é bruscamente
interrompida e ele se retira para o Rio de Janeiro após enviar uma última
reportagem datada de 24 de julho, sem cobrir portanto o período decisivo
e final da campanha. Quem saiu perdendo foi o registro histórico. Mais
tarde Manuel Benício escreverá um livro sobre a guerra, intitulado
O Réi dos Jagunços, mas infelizmente sem a força
do repórter. Esse livro sai em 1899, três anos antes de Os Sertões.
Como repórter, Euclides tem uma postura peculiar, que se poderia definir
como altaneira. Os chavões estão presentes, bem como o deslanchar
do conflito de consciência, do mesmo modo que nas reportagens dos outros.
Mas ele se recusa a ver tudo aquilo que não seja grandioso e heróico.
Assim, um incidente que toldou o brilho triunfal da partida do Ministro da Guerra
e que ocorreu no navio mesmo em que ele viajava - um voluntário recrutado
à força que se atirou ao mar para fugir mas foi pescado, coitado,
de volta -, encontra registro em outras reportagens, mas não na sua.
Alfredo Silva narra o episódio em sua primeira reportagem para A Notícia,
com data de publicação de 10/11 de agosto e data de escritura
de 4 de agosto, já na Bahia; também conta que o imediato estava
com cólica. A férrea censura que os jornalistas afrontavam e contra
a qual reclamavam, a ponto de passar informações veladas sobre
ela aos leitores, não é nem de longe mencionada por Euclides,
sequer na mais vaga das alusões. A prática de atrocidades, tais
como a degola sistemática dos prisioneiros e que ele próprio denunciará
apaixonadamente cinco anos mais tarde em seu livro, não existe em suas
reportagens; mas Lelis Piedade e Favila Nunes a noticiam. O comércio
de mulheres e crianças, compradas pelos vencedores, tampouco existe.
No entanto, o Comitê Patriótico da Bahia interveio nisso com energia,
resgatando os novos escravos na medida que o conseguiu e publicando seu relatório,
assinado por três membros, nos jornais, inclusive n'O Estado de São
Paulo. Se agora se adotaram orfãozinhos vietnamitas num gesto de
caridade cristã pública, para redimi-los do mal e integrá-los
aos valores da sociedade burguesa ocidental, na época tornou-se costume
adotar jagunçinhos. Até generais da guerra o fizeram, conforme
contam os repórteres. Euclides também ganhou um, mas não
menciona o hábito em suas reportagens. Embora não o refira nas
reportagens, lá está a anotação em sua caderneta
de campo, só agora publicada: "Noto com tristeza que o jagunçinho
que me foi dado pelo general continua doente e talvez não resista à
viagem para Monte Santo".
O Diário de uma Expedição, à medida que
progride, vai-se tornando oscilante no que diz respeito às convicções
iniciais do jornalista, perturbado pela resistência surpreendente dos
insurretos, ante os quais não consegue esconder sua admiração.
Mas volta e meia recai em considerações sobre a existência
de algum mistério por trás desse fenômeno, e termina às
vezes seus telegramas com um "Viva a República!", ou "A
República é imortal!". E não era só ele; como
todos se acreditavam em plena Revolução Francesa, também
os militares participantes da campanha se dirigiam uns aos outros com o epíteto
de Cidadão.
O fim da guerra e a maneira como esse fim foi conseguido causaram um trauma
no setor ilustrado da sociedade brasileira. Como o arraial não se rendia,
foi sendo ocupado aos poucos em sangrentas batalhas e a solução
final foi conseguida pela utilização de uma forma primitiva de
napalm. Jogou-se sistematicamente querosene em cima dos casebres, após
o que se atiraram bombas de dinamite, cuja explosão ateou incêndios
generalizados. Repórteres e soldados viram os habitantes de Canudos serem
incinerados, viram corpos em chamas, viram mulheres com os filhos no colo se
atirando no incêndio.
Se no início do conflito a grita geral era o pedido de extermínio,
feito pelos estudantes, pelos deputados e senadores, pelos intelectuais, pelos
jornalistas, pelos militares, agora a virada é completa. No momento em
que o extermínio se efetiva, todo mundo se escandaliza. Ao nível
do discurso, os termos pejorativos dados aos canudenses são substituídos
pelas palavras "brasileiros" e "irmãos". Mortos,
tornam-se humanos e compatriotas. Rui Barbosa, uma glória nacional, que
antes os chamara de "horda de mentecaptos e galés", agora chama-os
de "meus clientes" e declara que vai pedir habeas-corpus para
eles, para os mortos, é claro. Manifestações de protesto
surgem em toda parte no país; entidades públicas e privadas se
recusam a participar das comemorações da vitória. A vergonha
nacional é geral. O Exército é coberto de opróbrio.
Passado o perigo, vem o remorso. Há um processo generalizado de mea
culpa, os livros sobre a guerra em tom de denúncia começam
a surgir, e culminam em Os Sertões. O processo acima descrito
explica em grande parte o imediato e extraordinário êxito de Os
Sertões e a guindada de seu autor à celebridade. Como todo
grande livro, este também organiza, estrutura e dá forma a tendências
profundas do meio social, expressando-as de maneira simbólica. Tudo se
passa como se o processo de expiação da culpa coletiva tivesse
atingido seu ponto mais alto nesse livro. E mesmo o receio manifestado por Euclides
ante a publicação mostrou-se infundado, pois os poderes constituídos
e o próprio Exército receberam o livro com imenso alívio.
Ainda hoje, este livro difícil, muito comprado e pouco lido, figura obrigatoriamente
nas estantes dos lares brasileiros medianamente cultivados. A maioria de seus
possuidores nem sabe o que há dentro do livro, mas sabe que deve se orgulhar
dele.
Por outro lado, um povo capaz de um tal esforço de autocrítica
é um grande povo. Erramos, mas publicamos nossa confissão e arrependimento.
Que isso não ressuscite os injustamente mortos nem abra os olhos para
que se mude a situação dos que vivem na injustiça, é
irrelevante. Em troca, temos no nosso acervo de cultura nacional um livro como
Os Sertões.
Entre o fim da guerra, no dia 5 de outubro de 1897, e a publicação
de Os Sertões, em 1º de dezembro de 1902, decorrem cinco
anos. São os anos que Euclides dedica à coleta de informações
sobre a campanha, em livros e jornais, bem como ao estudo de teorias que o auxiliassem
a compreender o que se passara. É o tocante esforço de um intelectual
honesto, com formação de profissional liberal feita nos maiores
centros urbanos do país, que tenta entender seu próprio povo.
Dois fatores o atrapalham seriamente. Primeiro, ter que lidar com um movimento
religioso a partir de uma formação cientificista e positivista.
Segundo, a diferença entre o sertanejo brasileiro e o camponês
europeu, este preso à terra, com longa tradição e costumes
bem conhecidos. A visada é certamente determinista, o que já se
evidencia nas três partes em que o livro se divide. - A Terra, O Homem,
A Luta. Euclides tenta demonstrar que, dado o meio ambiente natural e dado o
meio ambiente social, que inclui a raça, só poderia ocorrer o
que ocorreu. Para ele, geografia e clima determinam a constituição
dos agrupamentos humanos, enquanto a raça determina o tipo psicológico
e o comportamento coletivo. Dos cruzamentos raciais entre índios e brancos
(negros menos, em sua opinião), no isolamento do deserto, o resultado
seria o mestiço, de temperamento instável, presa fácil
de todo tipo de superstição e incapaz de construir uma cultura.
Em momentos de crise, viriam à tona as características das raças
inferiores que entraram na mistura e que se realizam no misticismo. Grosso
modo, essa é a explicação que encontra para o fenômeno.
Influenciado pelos teóricos do comportamento anormal das multidões-tema
que marcara o nascimento das ciências sociais no século XIX, estando
o pensamento europeu ainda atordoado pelos feitos das turbas desenfreadas da
Revolução Francesa -, Euclides vê-se freqüentemente
em dificuldades para explicar o desempenho inovador desses mestiços degenerados.
Ao mesmo tempo que afirma e reafirma sua teoria racial, vai mostrando a inventividade
incrível dos canudenses, que desenvolvem sofisticadas táticas
de guerrilha para enfrentar uma guerra de tipo convencional. Estas, ele as admira
e registra, sem perceber a contradição em que está caindo.
E ainda provocam a admiração do leitor de hoje, mesmo depois que
o mundo conheceu as proezas dos vietcongues nesse campo.
A repetição incessante de afirmações contraditórias
oferece a possibilidade de se ler dois livros num só. Num deles, os rebeldes
são heróicos, fortes, superiores, inventivos, resistentes, impávidos.
No outro, eles são ignorantes, degenerados, racialmente inferiores, anormais,
atributos que impregnam também, por extensão, seu líder
Antonio Conselheiro e o próprio arraial onde viveram. Euclides, mobilizando
seus conhecimentos de militar e assumindo sua postura de estrategista, critica
asperamente a ineficiência do Exército, ao mesmo tempo que se emociona
com as grandes arrancadas dele ou com atos de heroísmo individual dos
soldados. Como essas afirmações surgem entrelaçadas, a
resultante literária é a presença constante da figura da
antítese e do oxímoron. O sertanejo é um Hércules-Quasímodo,
Antonio Conselheiro tanto poderia ter ido para o hospício como para a
História, certa região do país é uma Sibéria
canicular, o Coronel Moreira César poderia receber a camisa-de-força
ou a púrpura, o sertão é o paraíso. Essa maneira
exasperada de escrever, tentando reunir num só lance de pena dois extremos,
confere uma enorme tensão dramática ao texto. Mesmo nas duas primeiras
partes, antes de entrar propriamente no seu assunto de historiador da guerra,
a descrição do meio geográfico e do homem que nele vive
é concebida com recursos ficcionais dramatizantes. Os elementos naturais
agem como forças vivas, o solo se contorce e explode, as plantas agridem
com seus espinhos cáusticos, as águas se precipitam, as trevas
saltam, o dia fulmina. A antítese colige nela também o contacto
traumático do intelectual com o povo a que pertence. Como obter uma combinação
harmoniosa, uma síntese, entre o que foi aprendido nos livros e no convívio
urbano, com aqueles estranhos perigosos, tão brasileiros quanto nós?
Como compreendê-los, como entendê-los, como confraternizar com eles,
se são tão diferentes de nós, se não aceitam nossa
ciência, se não aceitam nossa revolução? Como podem
não admitir que nós estamos certos e eles errados? Por que nos
odeiam? É bem verdade que os métodos de contacto que estamos usando
são exterminadores: aquilo que não entendemos, procuramos destruir.
Mas nem isso eles aceitam passivamente; eles, os retardatários, os fanáticos,
os inferiores, reagem e contra-atacam. O fascínio pelo heroísmo,
que Euclides demonstra não só pelo Exército como também
pelos canudenses, é palpável. Como não admirá-los?
Como não ficar traumatizado para sempre, se foi ali que se descobriu
o Brasil, em que pela primeira vez se foi ao encontro da plebe miserável
que até hoje constitui a maioria da população brasileira,
e uma plebe cujas ações são de natureza incompreensível?
Essa plebe rebelada não marcou o fim, mas a continuidade de um processo
histórico. Hoje, com o desenvolvimentismo dominante, tendemos a esquecer
os fios que ligam a atual fase à Guerra de Canudos. Por exemplo, o morro
onde se situou uma parte importante do acampamento militar que compunha o cerco
do arraial chamava-se o morro da Favela, topônimo devido a uma espécie
vegetal que por ali abundava. Quando, depois da guerra terminada, voltaram à
vida civil os soldados rasos que não eram militares de carreira e que
também eram membros da plebe, ganharam como prêmio a concessão
de terrenos na capital do país. Por acaso, esses terrenos eram de escasso
valor imobiliário, e se situavam nos morros que circundam a cidade do
Rio de Janeiro. E o nome que foi espontaneamente dado a esses conjuntos habitacionais,
onde os ex-soldados regressando dos serviços que tinham prestado à
Pátria na Guerra de Canudos construíram suas precárias
casinhas, foi o de Morro da Favela. Com a aceleração do êxodo
rural, mais e mais habitantes do interior do país foram ocupando os morros
e planícies adjacentes. Depois disso, o apelativo favela voltou a ser
substantivo comum, designando todos os agrupamentos urbanos marginais às
cidades grandes e ricas no Brasil. Barriadas ou callampas em alguns
países da América Latina, cantegriles em outros, a favela
é o arranchamento provisório, sem serviços de infra-estrutura
urbanística, feito em terrenos sem valor vendável, em que essa
numerosa plebe do subdesenvolvimento vem ao encontro do mercado de trabalho.
A perturbação que a Guerra de Canudos causou na consciência
nacional, apesar de ser apenas uma dentre as incontáveis insurreições
que houve em nossa história, deve muito, por sua vez, ao livro de Euclides.
Esse livro não nos deixa esquecer o que aconteceu e continua acontecendo,
põe em xeque a ideologia oficial que postula a índole pacífica
do povo brasileiro. Como erradicar essa memória desagradável e
perturbadora? Há pouco mais de dez anos, fez se uma obra beneficente
na região. Em meio à aridez desértica do sertão,
pensou-se em construir um açude. Havia milhares de quilômetros
à disposição, para construir essa reserva de água
tão necessária. Por coincidência, e com os melhores argumentos
tecnocráticos, decidiu-se que o lugar ideal era aquele que compreendia
as ruínas carbonizadas do arraial de Canudos. Segundo a contagem oficial
feita pelo Exército em 1897, Canudos tinha 5.200 residências, o
que, numa estimativa modesta de cinco moradores para cada uma, dá o total
de 26.000 habitantes, numa época em que São Paulo, hoje uma megalópole
de 12 milhões, mal chegava a 200.000 pessoas. Os restos deixados pelo
canhoneio, pela querosene e pela dinamite incomodavam, havia gente na região
que se lembrava e perpetuava a memória do evento. Nem é preciso
dizer que hoje não se pode mais fazer pesquisa de campo em Canudos, as
ruínas repousam escondidas debaixo de muitas toneladas de água.
O livro de Euclides é um livro irritante, sua linguagem é rebuscada,
sua posição incerta e oscilante quando não abertamente
contraditória, as antíteses procuram efeitos de resultado confuso
A fissura entre a ciência exibida e os terríveis fatos narrados
impede uma síntese explicativa. A figura da antítese e do oxímoron
só exibe a incapacidade de pensar a especificidade do fenômeno.
A postura de estrategista do Exército colide com a simpatia pelos rebeldes.
A indagação que fica é se, com todo o esforço feito
para apagar tão exemplar episódio da memória nacional,
não fora o livro de Euclides para nos irritar e obrigar a pensar num
problema até hoje presente sob outras formas, também não
nos teríamos esquecido. Os Sertões é um elemento
instigador da memória brasileira que nos faz lembrar o que já
fizemos e continuamos a fazer com a maioria de nossos compatriotas.
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