Extraído de Corrêa, Nereu. A Tapeçaria lingüística de Os Sertões e outros ensaios. São Paulo, Quíron; Brasília, INL, 1978. p. 1-21


A TAPEÇARIA LINGÜÍSTICA DE "OS SERTÕES"

Nereu Corrêa

(Membro da Academia Catarinense de Letras)

I

"Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade". Essas palavras foram escritas por um naturalista, o Conde de Buffon, ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753. Mais conhecido por uma frase que se tornou famosa (le style c'est l'homme même) do que talvez pelos 36 volumes da sua História Natural, o dito buffoniano, em que pese às interpretações divergentes que tem suscitado, continua na ordem-do-dia. Mas o conceito de estilo tem sofrido as mais diversas variações, não menos que os processos de análise estilística. Para alguns, quanto mais inconfundível for o estilo nas suas marcas exteriores, tanto maior será a personalidade do escritor. Já para outros o verdadeiro estilo é aquele que passa despercebido, isto é, o que realiza um perfeito acoplamento entre a idéia e a forma, de maneira que uma não sufoque a outra. Assim o entendia Azorim: ter estilo é não ter estilo. Deslocando o eixo da análise estilística para o campo da semiologia, a crítica estrutural criou uma metodologia científica para o estudo da literatura e, com ela, o conceito de estilo enriqueceu-se de novas conotações. Roland Barthes distingue o estilo da escritura, transferindo para esta tudo aquilo que tradicionalmente se atribui ao estilo, como soma de elementos pessoais e extra-pessoais (gosto e cultura). Para ele estilo é "uma linguagem autárquica que mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor", uma espécie de enteléquia, até pelo tom enigmático de que se revestem as suas definições.

Mas a maioria dos teóricos da literatura considera inseparável a idéia de estilo da expressividade lingüística, sem o que não haveria literatura. De onde se conclui, em última análise, que Buffon tinha razão ao afirmar que "só as obras bem escritas hão de passar à posteridade". Com a ressalva de que não se deve confundir a arte de bem escrever com a da correção gramatical, o que - sabem-no todos - não é arte.

Muito se tem escrito sobre o estilo de Euclides da Cunha. Excetuando-se Guimarães Rosa, nenhum outro escritor brasileiro tem sido mais discutido, sob esse aspecto, do que o autor de Os Sertões. Há um ponto, todavia, em que parece haver concordância unânime por parte dos críticos: é no reconhecimento de que o escritor partiu da forma para a idéia, conferindo àquela o papel principal na representação do seu pensamento. A maioria lhe censura a adjetivação excessiva, o retorcimento da frase (o escritor que escrevia com cipó, no dizer de Joaquim Nabuco), o emprego de termos ou expressões raras, o abuso do vocábulo científico, etc. Por outro lado, muitos desses críticos reconhecem que a "faculté maitresse" do escritor repousa no estilo. Sem este, Euclides da Cunha não seria quem é, e Os Sertões não passariam de um livro a mais sobre o vergonhoso episódio de Canudos, de interesse restrito apenas à área histórica e/ou sociológica.

Ora, essa crítica - que de um lado aponta os defeitos do estilo de Euclides da Cunha e, de outro, reconhece que Os Sertões subsistem como obra literária graças ao estilo - incorre em flagrante contradição. Primeiro temos de reconhecer não existirem propriamente defeitos de estilo. Um estilo é o que é. E isso se nos afigura tanto mais evidente quanto maior for o grau de domínio e maturidade do escritor, no que concerne aos seus recursos de expressão. E Euclides da Cunha, embora Os Sertões fossem o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte. Longe estava de ser um estreante, canhestro, desajeitado, incerto nesses primeiros passos que são, para a maioria dos escritores, o ABC de um longo aprendizado. Ele pertence a essa categoria rara de artistas que marcaram o início da sua carreira literária com uma obra prima. Quando isso acontece, é muito raro repetir-se o fenômeno nos livros posteriores, pois, enquanto nos primeiros as obras vão marcando os degraus de uma contínua ascensão (cito de passagem o exemplo de Machado de Assis), nos segundos é quase certo percorrerem o mesmo caminho em sentido inverso, sem atingir, jamais, o nível da obra de estréia. Talvez se pudesse dizer isso de Euclides da Cunha, não fossem Os Sertões um livro ímpar, não só na bagagem do autor, como dentro da literatura brasileira.

"Estilo - dizia-o caboclamente Monteiro Lobato - é como o nariz da cara: cada qual o tem como Deus o fez e não há dois iguais". Admitamos, porém, que o nariz estilístico de Euclides da Cunha pudesse sofrer uma plástica, que fosse podado de todas aquelas demasias apontadas pela crítica, reduzido, finalmente, às proporções de um nariz normal. Aconteceria, então, com o escritor, o mesmo que sucedeu com aquela jovem que depois da plástica a que submeteu o seu apêndice, se tornou irreconhecível e, pior ainda, mais feia do que era antes. Não, por favor, não vamos "endireitar" o estilo de Euclides da Cunha.

Creio que foi José Veríssimo o primeiro a reclamar contra o excesso de vocábulos técnicos. Wilson Martins acha-o um estilo pobre, pela monotonia das frases, invariáveis no ritmo, uniformes em seu mecanismo interno, embora reconheça o poderoso sopro criador que as anima. Franklim de Oliveira, no excelente estudo dedicado ao estilo euclidiano 1 destaca o aparato verbal, o luxo vocabular, o tom sistematicamente enfático, retórico, eloqüente, mas chega à mesma conclusão de W. Martins: a pobreza estilística do autor de Os Sertões pela repetição dos mesmos processos de elaboração da frase. Todavia, cumpre assinalar que tanto F. de Oliveira como W. Martins reconhecem que todos esses elementos que enformam o estilo euclidiano - e que em qualquer outro escritor poderiam resultar em desastre - salvam-se graças ao poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia.

Voltando à comparação feita por Monteiro Lobato releva observar que, dentro de uma conceituação mais moderna, estilo não é apenas um apêndice, ou seja o nariz da cara. Suas raízes estão dentro e fora do homem. Tudo isso que os exegetas apontam, nas análises esmiuçadoras dos textos, são apenas acidentes do estilo, sinais exteriores detectados através de uma captação imperfeita, incapaz de penetrar na parte mais íntima, mais subjetiva do ato criativo, dir-se-ia no núcleo gerador da obra de arte.

No estilo de Euclides da Cunha, de modo especial n'Os Sertões, é difícil, senão mesmo impossível, apartar o virtuoso do artista, o artesão empenhado na elaboração plástica da sua linguagem, do escritor acionado pelas forças latentes do seu gênio criador, naquilo que há de mais profundo e autêntico na sua personalidade. Num escritor medíocre, todo aquele aparato verbal logo saltaria aos olhos como simples elementos decorativos, à semelhança da pintura no rosto de uma mulher que procurasse obter, à força de cosméticos, os bens que a natureza lhe negou. Mas em Euclides da Cunha percebe-se que por trás de cada período, de cada oração, de cada palavra, e ao lado do escritor consciente do seu mister, absorvido pelo trabalho do texto, está o artista vigilante, com os olhos fixos nas balizas demarcadoras do seu universo verbal. E foi esse artista, com a sua poderosa intuição criadora, que o salvou do verbalismo a que outro menos dotado não teria conseguido escapar. Em última análise, salvou-o do artificialismo num livro em que tudo, desde o arcabouço geral aos menores detalhes de concepção e realização, parece ter obedecido a um planejamento minucioso, a um formidável trabalho arquitetônico.

Araripe Júnior comparou o estilo de Euclides da Cunha a um cataclisma (estilo cataclismal), porque empregnado de uma força telúrica com extraordinário poder de captação dos abalos sísmicos nas fronteiras humanas. José Veríssimo, por sua vez, começa reconhecendo que Euclides da Cunha possui "reais qualidades de escritor, força, energia, eloqüência, nervo, colorido, elegância", mas lamenta que "tenha viciado o seu estilo, sobrecarregando a sua linguagem de termos técnicos, de um boleio de frases como quer que seja arrevesado, de arcaísmos e sobretudo de neologismos, de expressões obsoletas e raras, abusando freqüentemente contra a índole da língua" (...)2 Para o crítico de Estudos Brasileiros o estilo euclidiano teria de ser passado a limpo e despojado de todas essas artificialidades barrocas e técnicas, para chegar a ser um estilo correto e exemplar. Apenas, depois desse processo de depuração, não teríamos mais Euclides da Cunha, sim um outro escritor, como tantos que existem em nossa literatura e na literatura portuguesa com tais predicados.

Para João Ribeiro, o autor de Os Sertões não é um escritor popular, e "a sua obra literária suntuosa, asiática, ornada, e até geradora de certo gongorismo de expressão em alguns de seus discípulos, terá um perpétuo êxito de admiração íntima entre os intelectuais, os estetas e cultores de estilo". E acrescenta, mais adiante: "Faltava-lhe a medida ou a penumbra ou a luz difusa dos ambientes abrigados. Por vezes, o seu estilo, demasiado cru, feria o bom senso delicadíssimo 3.

Mas João Ribeiro acreditava na transformação estética de Euclides da Cunha, na evolução do seu estilo para formas mais simples, mais depuradas, substituindo a "veemência inicial" por "outra eloqüência de limpidez e simplicidade de formas". No seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, observa Afrânio Peixoto que no estilo euclidiano "tudo eram explosões e arestas. Não tinha matizes nem flexões. Desconhecia os meios tons e as transições insensíveis. Era por isso incapaz da ternura e da piedade: não há uma só de suas páginas em que a gente sinta os olhos se molharem de uma suave quentura comovida". E, em outra passagem: "Euclides da Cunha surpreendeu e maravilhou a muitos, senão a quase todos, pelos dons de um estilo túrgido e veemente, a que uma contração contínua, quase uma contractura ou um espasmo de frase, dava o aspecto artificial mais acessível ao vulgo, de rebuscamento e de acrobacia..." 4

Há uma observação, porém, em que parece não assistir razão ao escritor baiano: é quando afirma que as idéias de Euclides da Cunha "entrechocam-se sem seguimento lógico e desdobrado das deduções: irrompem tumultuárias, desconexas, divergentes, paradoxais...". O estilo do grande escritor pode ser áspero, anguloso, crispante, ou até mesmo bárbaro, à maneira carlyleana, mas nunca ilógico, ou desconexo na sua estrutura, nem tumultuário na manifestação das suas idéias. N'Os Sertões as idéias, a forma, o desenvolvimento da narrativa, o "tônus" dramático que a percorre em crescendo até a última página, tudo se liga e se articula em perfeita harmonia com as linhas arquitetônicas do conjunto. Se desordem existe, é apenas aparente. No fundo há uma unidade perfeita ligando aquela massa formidável de elementos mobilizados pelo escritor. E é isso precisamente o que mais nos espanta no grande livro de Euclides da Cunha: a sua capacidade de, estabelecido o plano geral da obra, executar com igual mestria tanto o que há nela de grandioso, como os seus menores detalhes. A mão que assentou os pesados blocos de granito, erguendo sobre eles as colunas do templo, é a mesma que esculpiu os frisos que a rodeiam na delicada decoração dos capitéis. Romano nas grandes linhas que lhe marcam a estrutura monumental, é, todavia, nos pormenores, um asiático. Eis por que a alguns críticos ele deu a impressão de barroquismo e, a outros, de prosa escultural, em que a massa predomina sobre o pormenor. Franklim de Oliveira soube precisar muito bem essas duas áreas do estilo euclidiano, de um lado "a clave de grandeza romana, numa prosa imperial, de períodos marcados pelo dinâmico crescendo das grandes massas sonoras" e, de outro lado, o barroquismo que o autor reconhece como característica do seu maneirismo literário, embora não deixe de registrar uma certa impropriedade do termo para qualificar a linguagem de Euclides da Cunha.

II

Embora o estilo não se esgote nos seus elementos formais, não há dúvida que é através da representação verbal que podemos estabelecer as suas qualidades, estudar o seu mecanismo interno ou as linhas mais características que presidiram à sua elaboração. Este, positivamente, é o procedimento mais comum - o que se limita a investigar o processo de composição, ao passo que o outro penetra mais fundo, devassa os tecidos, procura descobrir os resíduos psíquicos ou as intenções subconscientes que se insinuam nas palavras, criando-lhes uma faixa de ressonância interior nem sempre apreensível logicamente.

Não é a este último tipo de análise que nos propomos neste breve estudo sobre a estética de Os Sertões. Aliás, na linguagem do escritor, apesar do emaranhado dos galhos e da densidade da ramaria, quase tudo ali está ao alcance das nossas mãos. Pouca coisa há para investigar além dos desenhos por vezes dissimilares que ornamentam a tapeçaria verbal. O seu processo estilístico é claro e uniforme, o que não nos impede de lhe reconhecer a marcante originalidade.

Um dos primeiros sinais desse estilo é a pontuação. os pontos-e-vírgulas se multiplicam como se fossem patamares onde respiramos ao galgar os sucessivos lances das escadarias do seu estilo. É um recurso usado pelo autor para quebrar a monotonia dos períodos infindáveis, em que a idéia central, uma vez lançada no texto, se amplifica em contínuos e sucessivos desdobramentos. Mas não só o ponto-e-vírgula, como todos os sinais de pontuação, nomeadamente a vírgula, exercem uma função importante na linguagem de Euclides da Cunha. Sem esse rigor na marcação das pausas oracionais o seu estilo, por muitos considerado difícil, se tornaria ininteligível. A frase direta dos autores modernos, a brevidade dos períodos não reclama, para ser facilmente apreendida, uma sinalização rigorosa, adquirindo, por isso, mais fluidez e agilidade.

O estilo de Euclides da Cunha pode ser comparado a um desses rios dos sertões brasileiros, cujas águas não se detêm nos remansos ou não se rebalsam para contornar o terreno, no suave e sereno deslizamento da corrente; vão saltando os obstáculos, precipitam-se com fúria nos abismos, avançam ou recuam em refreios bruscos, procurando conter-se no curso sinuoso do leito. Um exame dos torneios fraseológicos empregados n'Os Sertões nos mostra estes dois aspectos do seu estilo: a torrente verbal que jorra precipite, com ímpeto avassalador, e o poder do artista no sentido de represá-la, erguendo barreiras, construindo diques, contendo-a no leito das idéias, ou seja, nos exatos limites do seu pensamento. Basta observarmos aqueles períodos entrecortados de pontos-e-vírgulas, onde a idéia central se desdobra e tresdobra em várias orações tributárias. É um recurso freqüente, que revela o escritor abundante, de expressão copiosa, mas freada por um rigoroso senso de disciplina e contenção. Daí a harmonia, a proporção e o equilíbrio dentro daquela linguagem densa, cheia de frêmitos nervosos, porém intervalada, de longe em longe, por breves hiatos, como um refreio, uma parada brusca, um momento de repouso. É a frase solta, isolada, que reponta como uma ilha solitária no meio da corrente. Nessa frase ele remata duas, três páginas compactas, resumindo em poucas palavras a impressão que procurou transmitir em todo um capítulo. Não raro são frases interjectivas, como esta, com que ele encerra a longa descrição de um sítio em pleno sertão:

"É uma paragem impressionadora." 5

Ou esta outra, em que sumaria, no mesmo tom exclamativo, uma incursão nas "profecias retrospectivas" que a ciência da época lhe permitia sentir, na magia dos contrastes, o efeito daqueles "cenários emocionantes dentro de uma natureza torturada".

"É uma sugestão empolgante."

Ou ainda:

"E o sertão é um paraíso..."

Depois de descrever as muralhas de granito que separam o planalto do litoral, lança esta frase que contém a síntese do quadro fixado pela sua poderosa objetiva:

"É a escarpa abrupta e viva dos planaltos."

As vezes inverte o processo, partindo da síntese para a análise, da afirmativa para a demonstração. Dedicando nada menos de 154 páginas ao estudo do homem brasileiro, pondo em relevo os seus tipos mais característicos, em páginas lapidares, ele antecipa e resume as suas conclusões numa única frase, afirmando em tom categórico:

"Não há um tipo antropológico brasileiro."

O retrato do homem das caatingas vem precedido de uma dessas frases-síntese que encerra, por si mesma, toda a idéia do livro:

"O sertanejo é, antes de tudo, um forte."

Numa análise estrutural do estilo de Euclides da Cunha, podemos destacar quatro unidades que ressaltam como linhas de força na grande massa de elementos que participam da tessitura lingüística empregada n'Os Sertões: os verbos, os adjetivos, o vocabulário e os torneios fraseológicos.

Observa Wilson Martins, no seu estudo sobre Euclides da Cunha, que o escritor só tinha olhos para os adjetivos e que todo o seu estilo é de natureza adjetival. De fato, o adjetivo ocupa um largo espaço no contexto estilístico de Os Sertões. Porém, não é o fundamental. Se o adjetivo entra com as tintas - emprestando cor, matiz e tonalidade à frase - o verbo aciona os carris das orações, dando vida e movimento à expressão. A meu ver, o centro nevrálgico da estética euclidiana está no verbo. Nem poderia ser de outra forma num estilo que se distingue sobretudo pelo seu dinamismo, pela movimentação das massas sonoras com apoio na ênfase verbal. Basta abrirmos ao acaso qualquer página de Os Sertões e logo saltam os exemplos:

"Atravessamo-lo (o sertão) no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o, apenas nessa quadra, vimo-lo sob o pior aspecto."

Outro exemplo:

"Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos."

São comuns os casos de acumulações verbais, como este:

... era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las."

Observe-se que o autor não diz: "para que fossem estudadas, corrigidas e anuladas". Não lhe convinham as formas apassivadoras, porque estas, em geral, descarregam a energia da frase. Também poderia ter evitado a repetição do pronome "las" se tivesse preferido a próclise: "... para a estudarmos, corrigirmos ou anularmos". Repetição, aliás, desnecessária, já censurada por Ernesto Carneiro Ribeiro em Rui Barbosa. Mas repare-se que esta última construção, embora esteticamente mais harmoniosa, não produz o mesmo efeito visado pelo autor com o martelamento em "stacato" do pronome "la". Os pronomes, principalmente os complementos objetivos, são largamente empregados por Euclides da Cunha. E são-no muitas vezes não só por necessidade, mas também por uma função estilística, e até, mesmo, embora não afinem bem aos ouvidos de hoje, por puro e simples esteticismo. Vejamos mais estes exemplos de enumeração verbal:

"A inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os."
"Era fácil investi-lo, batê-lo, dominá-lo, varejá-lo, alui-lo; era dificílimo deixá-lo."

Importa observar que cada verbo tem um significado, sugere um movimento distinto dentro de uma correlação de sentidos comuns, valorizada estilisticamente pela graduação ascendente. Anote-se ainda este exemplo:

... lagos que nascem, crescem, se articulam, se avolumam no expandir-se de uma existência tumultuária e se retraem, definham, desaparecem, sucumbem..."

Nesse período vamos encontrar os dois movimentos simetricamente combinados, uma frase em ascensão (clímax) e a outra em escala decrescente (anticlímax). Entre uma e outra, porém, o autor inseriu uma oração distensiva, como um corte longitudinal, de forma que o movimento fraseológico sugere, por si mesmo, a imagem do objeto descrito pelo autor no seu tríplice aspecto.

É por causa da ênfase verbal que muitos críticos de Euclides da Cunha, inclusive Gilberto Freyre, viram no seu estilo um tom discursivo, que às vezes alcançam os assomos da linguagem grandiloqüente. Repito: são exatamente tais defeitos, vistos por esses críticos, que, somados às qualidades do seu estilo, compõem o cânone expressional do autor de Os Sertões. Escoimá-los da sua linguagem seria mutilar a arte complexíssima que ele empregou na composição dessa obra inconfundível da literatura brasileira. Acresce, ainda, que Euclides escreveu o seu grande livro numa época em que estavam no auge da fama dois escritores cujo estilo se caracterizava precisamente pela sua riqueza verbal Rui Barbosa e Coelho Neto. Ademais, não seria no estilo de linhas apolíneas de Joaquim Nabuco, nem na secura lingüística de Machado de Assis que ele encontraria os melhores modelos para escrever um livro com a grandeza épica de Os Sertões.

De todos os modos verbais, talvez o mais freqüente, e do qual Euclides procurou extrair toda uma gama de nuances estilísticas, é o gerúndio. É verdade que o gerúndio assume, freqüentemente, funções extraverbais, ora como advérbio, ora como adjetivo, levando alguns gramáticos a hesitarem quanto à sua conceituação gramatical. Os autores modernos usam-no muito mais que os antigos, não apenas como recurso enfático ou enfatizante, mas também como elemento rítmico, muito comum na prosa poemática. Vejamos algumas amostras do emprego do gerúndio na linguagem euclidiana, em termos de expressividade estilística. Logo na primeira página de Os Sertões encontramos dois exemplos marcantes. O autor começa descrevendo o planalto central do Brasil e, depois de salientar os relevos de que se reveste nos litorais sulinos, mostra a queda gradual de altitude que as cordilheiras marítimas vão perdendo à medida que derivam para as terras setentrionais:

"De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço contínuo e dominante das montanhas, precipitando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento da orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumiadas e corroído de angras, escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra."

É muito comum, na linguagem euclidiana, essa maneira de alçar a frase no espaço, travando-a mais adiante com um gerúndio, numa freada brusca, à maneira de um anacoluto, como no primeiro exemplo do trecho acima transcrito. No segundo temos uma repetição trinaria do gerúndio realçada pelo polissíndeto. É um recurso expressivo, em que o artista da palavra vem em socorro do geógrafo para nos transmitir uma imagem acústica do relevo do solo. Também ali se opera um corte brusco no pensamento do autor, que por um momento abandona a seqüência descritiva, abre um intervalo para uma representação dinamico-visual dos acidentes geográficos que recortam o litoral brasileiro. Chamo a atenção para este trecho:

"Colado ao dorso deste (o cavalo), confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes, firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas margens altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, à toda a brida, no largo dos taboleiros..."

Há um ritmo cinemático nesse trecho, um movimento isocrônico de imagens e de sons, como se o escritor se tivesse transformado num cameraman para nos transmitir, apanhados ao vivo, numa prosa admiravelmente dinâmica, todos os movimentos daquele "steeplechase" executado pelo cavaleiro agilíssimo, que é o vaqueiro do nordeste.

III

Tem-se falado muito na adjetivação de Euclides da Cunha. Alguns críticos chegam a colocar, mesmo, no adjetivo, a tônica do seu estilo. Com efeito, não se pode negar que nesse elemento resida uma das marcas tipificadoras por excelência da linguagem do grande escritor. Mas se o adjetivo tem sido responsável pelo fracasso de muitos escritores, que submergiram na prosa inflada e pedante do estilo "nouveau-riche", como se explica que o autor de Os Sertões, acusado por muitos de haver abusado desse elemento, seja considerado um dos maiores escritores da língua, a despeito dos adjetivos? Ernesto Guerra da Cal, no estudo magistral que dedicou ao estilo de Eça de Queiroz, assinala que é na adjetivação que reside "um dos meios expressivos de mais penetrante e original irradiação pessoal" da frase queiroziana, "talvez o mais flexível e rico dos instrumentos verbais, e sem dúvida, a mais segura mola do encanto especial da sua maneira de "dizer'" 6, Por aí se nota que o mal do adjetivo não está nele próprio, mas no escritor sem talento

Sempre me pareceu especiosa a preocupação com a ordem do adjetivo na frase euclidiana. Alguns escritores, como Monteiro Lobato, observaram que Euclides da Cunha raramente antepunha o adjetivo ao substantivo. Ora, essa colocação do adjetivo, como epíteto ou função especificadora, o escritor nunca o faz arbitrariamente. O simples deslocamento de um adjetivo, de preposto para pos-posto, ou vice-versa, pode determinar, como se sabe, uma alteração no sentido da frase. Porém a motivação mais freqüente, nos bons escritores, é de natureza estética ou de gosto pessoal. Para Amado Alonso a formação adjetivo-substantivo implica um juízo analítico, ao passo que a formação inversa - substantivo-adjetivo - pressupõe um juízo sintético. No primeiro caso há o desejo de realçar uma qualidade inerente ao substantivo, enquanto que no segundo tal não acontece. Mas a linha de subtilezas e ressonâncias marginais nesse campo é extensa, e nem sempre susceptível de classificação. A verdade é que a anteposição do adjetivo ao substantivo, além de acender uma fagulha poética, revela uma qualidade inerente ao substantivo, porém sem eclipsá-lo- ao passo que na colocação oposta - substantivo-adjetivo -, a expressão se fluidifica, se plasticiza, carreando para o adjetivo um atributo do substantivo, acidental ou inerente a ele. No primeiro caso o substantivo conserva a sua potencialidade, enquanto que no segundo esta se transfere para o atributo, ou seja, para o adjetivo. A preferência de Euclides da Cunha pela última forma é uma decorrência do valor que ele emprestava ao adjetivo, como elemento caracterizador por excelência.

O adjetivo, como dissemos, é convocado a exercer um papel na multivalência das suas funções. Euclides não o emprega gratuitamente, visando apenas a agradar o ouvido e os olhos dos leitores amantes de girândolas e requififes estilísticos. O que não quer dizer que ele não empregue o adjetivo - e o faz amiúde - com uma finalidade estritamente estética. É o que ocorre quando nos procura transmitir uma "imagem acústica", dir-se-ia, um "signo" no sentido saussuriano (síntese do significado e do significante). Joaquim Ribeiro já havia notado a função bimodal do adjetivo em Euclides da Cunha, uma de caráter eufônico, e a outra como elemento subordinado à temática do paisagismo 7. O emprego do adjetivo eufônico requer grande sensibilidade do escritor; do contrário não produzirá outro senão o da vacuidade luminosa, sobrecarregando a frase de adereços inúteis, destituídos de qualquer sentido estético. Veja-se este exemplo:

"...disparam pelas baixadas úmidas os caitetus esquivos; passam, em varas, pelas tigueras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canelas ruivas..."

O escritor poderia ter escrito apenas "num estrepitar de maxilas...", omitindo a palavra "estrídulo". É um exemplo de adjetivo com função estética Embora aparentemente desnecessário, ele está desempenhando uma missão, que é a de transmitir ao leitor uma "imagem auditiva". É o que sentimos naquele atrito das dentais "tt" seguidas de "r", produzindo uma harmonia imitativa das "maxilas percutindo". E, como uma antecipação do quadro visual, primeiro ouvimos o som, o estrépito das maxilas, e só depois é que vemos a imagem, isto é, os "queixadas de canelas ruivas" passando.

Mais adiante, em outra página, encontramos esta frase:

"... pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes. numa trama vibrátil de centelhas."

Também esse adjetivo (rebrilhantes) poderá parecer demasiado numa frase em que a segunda cláusula (numa trama vibrátil de centelhas) contém a chispa do espetáculo produzido pelo incêndio. Omitindo-o, suprimiríamos da frase a impressão que o autor nos quis transmitir, de um clarão fulgurante, uma súbita explosão de luz. Note-se que o adjetivo aparece aí distante do substantivo e isolado, abrindo um hiato na descrição, interrompendo-a para nos surpreender com a brusca luminosidade que se desprende das acendalhas incendiadas. Ainda outro exemplo de adjetivo isolado, tão comum no processo de adjetivação de Euclides da Cunha, mas sempre em busca de uma harmonia expressiva, vamos encontrar nesta frase:

"Animam-se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando."

Aqui o adjetivo vem isolado apenas por vírgulas, mas tanto neste exemplo como no outro, se o autor juntasse o adjetivo ao substantivo estaria apenas salientando uma qualidade do substantivo, por assim dizer inerente ao ser nomeado (acendalhas rebrilhantes, asas céleres), o que, além de pleonástico, seria trivial.

O vocabulário é outra característica do estilo de Euclides da Cunha. Um dos primeiros a manifestar-se sobre Os Sertões, José Veríssimo, chamava a atenção para o abuso do emprego de termos científicos, ou técnicos, que não só dificultavam a leitura do grande livro, como lhe acrescentavam uma feição hirsuta, senão uma nota deliberadamente empolada e pedante. Seria o caso de perguntar-se: o livro não tem, principalmente nas duas primeiras partes, um tônus científico? Acresce, ainda, que além do vocabulário técnico, a preferência do autor, na escolha dos vocábulos, é manifestamente pelas palavras peregrinas, de pouca ou nenhuma circulação no comércio da língua. A pequena amostra das correções tipográficas, feitas nas páginas 19 e 140 da 3 a edição, reproduzidas na 5.a, denuncia essa preocupação do autor em evitar o emprego de palavras gastas pelo uso ou de cunhagem corrente. Daí os peregrinismos ("cabra destalado", "árvores marcescentes", "várzea complanada", "redomão desinsofrido", "palavra remorada", "trilhas multívias", "casebres estraçoados", "gentes despeadas", "tocaias inumerosas", "apelos excruciantes", "recursos absolutórios", etc.), certos termos arcaicos e outros recunhados pelo escritor. Vejamos alguns exemplos destes últimos: "problematizava", "circuitadas", "grimpas serreadas", "intermitirem", "envesgando", "desfreqüentadas", "região ermada", "entaliscados', "malignou-lhes a índole", "avitualhavam", "adunavam-se', "terrenos achavados", "anihilavam-nas", "fraldejavam-nos", "agrimponados", etc..

O vocabulário é o arsenal de um escritor. É através dele que entramos em contato com o seu mundo interior, com as suas idiossincrasias, como a sua formação, com o seu gosto, com a sua cultura. É, na obra literária, o primeiro sinal da personalidade do autor. Pela escolha das palavras ele nos dá a medida do seu gosto e da sua sensibilidade estética. É verdade que o gênero e o assunto escolhido podem determinar uma mudança no sentido de maior sobriedade ou riqueza de palavras. Pode, inclusive, exigir uma variação hierárquica - digamos assim - do vocabulário, dentro da área social da língua, num movimento bipolado entre o nobre e o plebeu, o culto e o vulgar, o erudito e o corrente. O procedimento estilístico adotado n'Os Sertões não é mesmo empregado nos demais livros do autor. Estes são ensaios históricos, ou histórico-sociais, sem as dimensões humanas do primeiro. O elemento épico exigiu do autor maior concentração dos seus recursos estilísticos, diria melhor, uma sublimação desses recursos, sem o que a obra não passaria de um documentário a mais na extensa bibliografia sobre o episódio de Canudos. E, no entanto, ela pretende ser mais do que isso. Pretende ser uma obra de arte. Ou, como muito bem a classificou Afrânio Coutinho, uma obra de arte da linguagem.

A preferência de Euclides da Cunha pela palavra inusitada, de extração rara, classifica-o como um escritor de gosto exigente e estilo preciso. Porém, não é apenas o vocabulário que nos fornece o atestado dos seus pergaminhos, como um clássico da palavra. Atestam-no ainda os torneios fraseológicos a que já nos referimos, como um dos elementos tipificantes da sua maneira de dizer.

IV

A primeira observação que faríamos, num rápido exame da sintaxe do autor de Os Sertões, nos seus aspectos mais expressivos, como notas típicas do seu modo de executar a língua, é o cuidado com que evita as orações na voz passiva. As formas apassivadoras, como já dissemos, além da sua índole vulgar, destonificam a frase, quebram-lhe a energia, amortecem-lhe o ímpeto e a força verbal. E isso não se coadunava com um estilo nervoso, em permanente estado de ignição, como o de Euclides da Cunha, que depositava na carga tensional e na virilidade da frase toda a sua força expressiva. Daí a preferência quase absoluta pelas orações na voz ativa, socorrendo-se com freqüência dos pronomes pessoais átonos, em frases como estas:

"Não lhes avaliavam o número. Os cerros mais altos bojando em esporão sobre a várzea, figuravam-se desertos. Batia-os de chapa o sol ofuscante e ardente; viam-se lhes os mínimos acidentes da estrutura, podia contar-se-lhes um a um os grandes blocos, que por ali se espalham (...)"

Ou neste exemplo, de complementos pronominais objetivos, em que a inversão dos termos oracionais é outra característica do seu estilo:

"Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra; enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota."

Tais recursos, quer nas formas intercaladas por tmese, de que nos fornece copiosos exemplos, quer encliticamente, com os verbos encabeçando as orações, não só conferiam à expressão esse tom de gravidade e de aspereza, dentro de uma técnica de composição tensional, por vezes convulsa, como obedeciam aos freios do autor, nas suas tentativas de síntese. Síntese - é preciso que se acentue - não de expressão, enquanto necessária ao seu cânone estilístico (pois raros escritores usaram numa só obra um léxico tão opulento), mas no sentido de evitar as formas analíticas secundárias, ou toda palavra que não correspondesse a um sentido de expressividade em sua função estética.

Falou-se muito da frase retorcida de Euclides da Cunha, das inversões, das construções indiretas, da hipotaxe, da parataxe, dos hipérbatons, etc.. A predominância da ordem inversa é notória e constitui uma das características dominantes do seu estilo. Observe-se este parágrafo:

"Ecoam largos dias, monótonos, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes."

O autor inicia o período com o predicado "Ecoam largos dias", porém em seguida interrompe bruscamente o andamento da frase para intercalar um predicativo do sujeito (monótonas), acompanhado de um adjunto adverbial (pelos ermos); a partir daí, quando se esperava o sujeito, eis que o período toma outro rumo com o aparecimento de uma oração intermediária (por onde passam as lentas procissões propiciatórias), à maneira de um desdobramento do período. Esse tipo de frase, dentro do esquema predicado-complemento-sujeito, com desdobramentos internos, é um dos processos mais típicos da estrutura lingüística de Os Sertões. Já vimos, em outros exemplos, como aquele trecho dos "queixadas", tipos idênticos de frases. Note-se que neste, como no anterior, a imagem acústica tem precedência sobre a imagem visual - o eco das ladainhas anunciando as procissões dos jagunços. Não estará aí um toque de impressionismo, as sensações tomando o lugar dos objetos ou, pelo menos, antecipando-se a eles? Vejamos outro exemplo, entre muitos que poderíamos citar:

"Rebrilham longas noites nas chapadas pervagantes, as velas dos penitentes..."

Comuns nesses giros sintáticos de Euclides da Cunha são as amplificações internas, os desdobramentos em rosácea das orações, como se o autor quisesse, através desse processo, captar a cena num flagrante que a enfocasse sob todos os ângulos, e na simultaneidade dos seus movimentos. Atentem para este exemplo:

"Em breve, céleres, arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo cindidos de labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas, avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda."

No trecho acima há dois discursos paralelos, um narrativo e outro descritivo. O autor suspende o primeiro logo no início - traço que assinala um dos estereótipos mais comuns na estrutura frásica de Euclides da Cunha, já assinalado anteriormente - para em seguida entressachar o discurso narrativo, que, no exemplo citado, é maior que o primeiro. O discurso narrativo, puro e simples, resume-se nestas palavras: "Em breve (...) crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda".

Entretanto, apesar da preferência do estilista pela ordem inversa, há muitos e bons exemplos de parataxe, como as frases curtas, diretas, que irrompem da densa ramaria como galhos enristados de mandacaru. Observem este exemplo:

"Depois tudo isto se acaba: voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora, o empedramento do solo, a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem intermitência das chuvas - o espasmo assombrador da seca."

É uma seqüência de frases destacadas do período por pontos-e-vírgulas, uma sucessão de quadros de uma paisagem desoladora, em que a ausência de verbos acentua a impressão de imobilidade, de ausência de vida. Nas orações que se seguem temos o mesmo esquema frásico. Apenas, aqui, ao invés de uma apresentação em slides, uma sucessão de quadros em planos diversos, temos uma seqüência cinética em que a repetição do verbo correr nos transmite uma sensação física de movimento, como nesta frase, um flagrante vivo do terror pânico que se apoderou da soldadesca:

"... e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes..."

Fora do triângulo básico verbo-adjetivo e torneio fraseológico, ao seu redor vamos encontrar, em ordens e combinações as mais diversas, os recursos inesgotáveis do seu arsenal estilístico - metáforas, símiles, antíteses, clímax, tautologias, aliterações, sinestesias, imagens, símbolos, oxímoros - toda uma galáxia de tropos e figuras literárias. Ao luxo vocabular e sintático, acrescenta-se o tropológico.

Vejamos alguns exemplos desses recursos a que recorre com freqüência para dar vida, colorido e expressividade à sua arte.

A repetição é um meio de que se vale amiúde para dar ênfase e vigor à frase, como já vimos no último exemplo. Lá foi com o verbo correr, aqui é com o verbo rodar:

"Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos taboleiros vastos, deixariam sulcos sanguinolentos."

No exemplo abaixo a repetição do adjetivo mesmo assume um aspecto enfatizante, para caracterizar o mundo do sertanejo, a mesmice da sua vida, a simbiose entre o homem e a natureza que o cerca:

"... cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.

A antítese é uma das figuras mais caras às preferências pessoais do escritor. Ela não se situa apenas na base do seu raciocínio, como um recurso de expressão de que procura tirar os melhores efeitos, mas também na visão da realidade, na escolha dos temas, na sua própria consciência, que parecia comprazer-se nesse jogo antitético dos contrastes e dos confrontos. A temática d'Os Sertões e toda a sua estrutura realizam um movimento pendular entre dois extremos: o litoral e o sertão, a barbárie e a civilização. Ou, como diria Cassiano Ricardo, entre o homem de pés no chão e o homem de colarinho duro. Em alguns dos seus livros a antítese já vem expressa nos próprios títulos: Contrastes e Confrontos e Peru versus Bolívia.

Não me alongarei na demonstração desse traço do seu estilo, o qual, pela sua multivalência, reclama por si só um estudo mais longo e acurado. Mencionarei apenas alguns exemplos, colhidos a esmo na sua obra. Atentem para este:

"Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes . . .

Temos aí a dupla oposição: Bárbaro-maravilhoso e estéril-exuberante. Outro exemplo:

"Intacto - era fragílimo; feito escombros - formidável."

Referindo-se ao oxímoro Hércules-Ouasímodo, uma das páginas mais vincantes da língua portuguesa, Augusto Meyer lembrava alguns exemplos filiados à mesma família: paraíso tenebroso, sol escuro, tumulto sem ruídos, carga paralisada, profecia retrospectiva, medo glorioso, construtores de ruínas, etc. 8.

Tão comuns na linguagem poética, não faltam bons exemplos de aliterações na prosa poemática de Euclides da Cunha. Quando ele descreve o

"... tiroteio cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos taquarais em fogo."

sente-se, naqueles "ttt" que se sucedem ritimicamente, a fuzilaria numa transfiguração poética da realidade. Guilherme de Almeida já andou garimpando nessa mina e dela voltou com as mãos cheias de "filigranas de ourivesaria poética" encontradas n'Os Sertões. Como disse o autor de Nós, "era uma lira de poeta o sextante do engenheiro" 9.

Observa-se, ainda, no estilo do escritor, uma tendência para criar imagens anímicas, para antropomorfizar a natureza Este trecho é digno de nota:

... árvores sem folhas, de galhos extorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bravejar imenso, de tortura, da flora agonizante..."

Se aí a flora agoniza, aqui

... ruge o Nordeste nos ermos; e como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos..."

A imagem da flora agonizante se repete tautologicamente em várias páginas:

-... arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos..."
"... por toda a parte, mal reagindo à atrofia no fundo das baixadas úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, esgalhada num baralhamento de ramos retorcidos - reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas..."

Nesse gigantesco mural em que Euclides da Cunha procurou fixar um dos dramas mais pungentes da nossa história, o artista se desdobra, múltiplo, numeroso, polimórfico, como se não fosse apenas um, mas toda uma equipe trabalhando sob a sua chefia. O sociólogo, o geógrafo, o historiador, o repórter que havia nele, eram apenas assessores do homem de letras, integravam o "staff" do escritor preocupado em valorizar esteticamente o material histórico e científico que serviu de base à sua obra. Daí por que Os Sertões, mais do que uma obra científica, é uma obra de arte.

Escrevendo numa época em que estavam em voga os grandes mestres do estilo - do estilo com todos os seus recursos plásticos, instrumentado por um virtuose da palavra - Euclides da Cunha conquistou uma posição na primeira linha entre os poucos escritores brasileiros que se distinguiram pela sua maneira pessoal de escrever.

Não foi um criador, no sentido de inovar a língua, como um Guimarães Rosa. As intenções conotativas do vocábulo euclidiano não vão além dos valores plásticos, das percepções sensoriais da orquestração da frase no jogo lúdico mas lúcido da palavra, sempre fiel à semântica tradicional. Não rompeu com o passado, não violou nem violentou as regras do bem escrever, segundo os modelos clássicos. Mas o ritmo é outro, outra a maneira de jogar com as palavras, de cingi-las, de justapô-las, de atritá-las, mostrando que ainda era possível escrever-se na língua de Camões, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis com uma tônica diferente, marcantemente original. As palavras em Euclides da Cunha - disse-o magistralmente Franklim de Oliveira - "dilaceram-se, suam sangue entre mandacarus, xiquexiques, cabeças de frade. Prosa de caatinga e carrascais, agreste, rude." 10

No desenho da paisagem que serviu de palco ao drama dos jagunços, são flagrantes os contrastes. Dir-se-ia o debuxo de um pintor que, ao invés do pincel, prefere a espátula para os arremessos de tinta, de onde vão surgindo, em ressaltos impressionistas, as linhas por vezes desconexas do cenário em que se desenrolou a tragédia de Canudos. Mas ao pintor, sobreleva o estatuário. Um estatuário que tanto sabia fixar na pedra a imagem isolada de um tipo como os movimentos coletivos. Pintor, tem algo de Goya, ou de Portinari. Estatuário, lembra Miguel Angelo pela grandeza das suas figuras e a monumentalidade dos grupos escultóricos.

A arte difícil de jogar com as massas sem perder de vista os menores detalhes lhe valeu uma aproximação com o autor de Guerra e Paz. Ser comparado a Tolstoi... Creio que nenhum outro escritor brasileiro já mereceu esta honra. Honra e glória do artista genial que deixou em Os Sertões - obra ímpar na literatura brasileira - um livro contemporâneo do futuro, pois, como disse Buffon, só as obras de arte passarão à posteridade.

Notas

1. In Literatura no Brasil, direção de Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959, vol. III, tomo I, pág. 291.

2. In Autores e Livros (Spl. Lit. de A Manhã), de 23-8-42, vol. III, n.° 6, pág. 82.

3. Ibidem, pág. 87.

4. Afrânio Peixoto, in Discursos Acadêmicos, Ed. A. B. L., vol. II, pág. 229.

5. Todos os exemplos d'Os Sertões transcritos neste trabalho reportam-se à l4ª ed., Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1938.

6. Ernesto Guerra da Cal, Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz, Editorial Aster, Lisboa, pág. 108.

7. Joaquim Ribeiro, Estética da Língua Portuguesa, J. Ozon - Editor, Rio de Janeiro, 1964, pág. 319.

8. Augusto Meyer, Preto & Branco, I. N. L., 1956, pág. 189.

9. Guilherme de Almeida, "Poesia d'Os Sertões" in O Jornal, agosto de 1946.

10. Franklim de Oliveira, A Fantasia Exata, Zahar, Rio de Janeiro, 1959, pág. 98.


 

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