Extraído de: Freyre, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. 2ª ed. aumentada. Rio de Janeiro, Record, 1987. p. 17-69


Euclides da Cunha

1. Engenheiro físico alongado em social e humano

Do nome de Euclides da Cunha ninguém sabe separar o do seu maior livro: Os sertões. Mas daí não se deve concluir que Euclides tenha sido um desses autores de obra única e gloriosa da qual se tornam, pelo resto da vida e depois de mortos, uma espécie de maridos de professora.

Ele vive principalmente pela sua personalidade, que foi criadora e incisiva como poucas. Maior que Os sertões.

Seria um erro ver na paisagem do grande livro de Euclides um simples capítulo de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter escrito com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza pedagógica de exposição. A paisagem que transborda d 'Os sertões é outra: é aquela que a personalidade angustiada de Euclides da Cunha precisou de exagerar para completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamente brasileiro em que os mandacarus e os xiquexiques entram para fazer companhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra e na coragem de resistir e de clamar por ela.

Resistir quando todos desistem. Resistir sempre. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides, mais do que a paisagem, que transborda dos limites de livro científico d'Os sertões, tornando-o um livro também de poesia, uma espécie daqueles romances de Thomas Hardy em que a paisagem está sempre entre os personagens do drama, uma como mensagem de profeta preocupado, como outrora os hebreus, com o destino de sua gente e com as dores do seu povo. Preocupado com esse destino e com essas dores através da paisagem sertaneja, para ele menos um tema de materialismo geográfico que um problema do que hoje se chamaria ecologia humana. Também um problema de política e de ética.

O sr. Afrânio Peixoto, em discurso acadêmico, definiu com nitidez a paisagem fixada no livro pouco pedagógico de Euclides da Cunha: "...cenário desmedido e grandioso, rude e magnífico, em que viveu, sofreu e pensou a personagem silenciosa que não se descreve e está sempre presente naquelas páginas... Não é livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões sobre a alma de Euclides da Cunha".

O Euclides que em 1897 se defrontava com os sertões era ainda um adolescente no incompleto da personalidade, no indeciso das atitudes. Um adolescente que vinha do litoral e de sua civilização, cheio de mãos esquerdas diante dos homens já feitos e das cidades já maduras da beira do Atlântico. Precisando do ermo para sentir-se à vontade. Precisando do deserto para acabar de formar-se no meio do inacabado da colonização pastoril, sem se sentir olhado, observado ou criticado pelos escritores convencionais do Rio de Janeiro. Estes que o aceitassem depois de formado a seu jeito - que não seria decerto o deles, escritores demasiadamente à francesa e à inglesa, una - os melhores; outros "gregos" ou "helenos"; ainda outros castiçamente portugueses, os ouvidos cheios de algodão para não recolherem nenhuma estridência brasileira, nenhuma palavra brutalmente viva que viesse da rua, ou dos restos de senzalas, ou dos sobejos de índios que os compêndios de história do Brasil diziam ter habitado um dia não só os sertões como o litoral brasileiro.

Era o tempo em que o velho Machado, escondendo-se por trás de personagens sempre brancos, ioiôs sempre finos, se fazia adivinhar no humour dos seus romances - talvez os mais profundos que já se escreveram na língua portuguesa - quase um inglês tristonho desgarrado nos trópicos, embora resignado à doçura da vida suburbana de chá com torrada, partidas de gamão e modinhas ao piano, nos sobrados velhos e nas chácaras cheias de escravos e de árvores do Rio de Janeiro de dom Pedro 1l. 0 tempo em que Joaquim Nabuco ao retratar-se menino fidalgo no terraço da casa-grande de Massangana, em páginas de saudade profundamente viril que hão de ficar para sempre em nossa literatura, arredava da vista do leitor, com um pudor de memorialista vitoriano, o que parecesse mais cruamente brasileiro, só faltando fantasiar as jaqueiras exuberantes e quase obscenas de Pernambuco de olmos ascéticos de algum recanto do Norte, não do Brasil, mas da Inglaterra ou da Nova Inglaterra. O tempo de Coelho Neto, de Olavo Bilac, de doutor Francisco de Castro, de B. Lopes, de Domício da Gama, de Alphonsus de Guimaraens, da estréia de Afrânio Peixoto, dos primeiros triunfos de Graça Aranha. O tempo em que Afonso Arinos descrevendo cenas dos sertões mineiros não conseguia se identificar com os aspectos mais antieuropeus da paisagem e da vida sertanejas, permanecendo diante delas o mesmo simpatizante que Eduardo Prado ou o visconde de Taunay.

Desgarrado do "equilíbrio helênico", do "humour inglês", da "elegância renaniana", um ou outro Silvio Romero com os seus modos reiúnas de matutão zangado, suas explosões de mau gosto de bacharel em direito influenciado pelo "germanismo" de Tobias, seu arrivismo de sergipano; mas ao mesmo tempo animado daquele "são brasileirismo" que já levantara obra crua mas monumental: a História da literatura brasileira. Um ou outro Raul Pompéia, arrepiando o português acadêmico com arrojos de estilo menos castiço, descasando substantivos e adjetivos convencionalmente unidos para juntá-los em combinações quase escandalosas de novas. Um ou outro Alberto Torres mais desembaraçado de doutrinas européias nos seus estudos sobre a formação social do Brasil.

Ao helenismo do tempo, ao academismo renaniano, à imitação do humour inglês - que em Machado foi assimilação genial - Euclides não escaparia de todo. Há dele uma declaração expressiva: que se sentia ao mesmo tempo tapuia, celta e grego. Mas já era muito, em plena época de Coelho Neto e B. Lopes, admitir um escritor vitorioso no Rio de Janeiro que fosse um terço tapuio, e não completamente heleno.

O pretendido helenismo dificilmente se encontra em Euclides da Cunha. Se o autor se faz sentir em tantas cenas d'Os sertões - quase no livro inteiro - é pela sua identificação - esta, sim, profunda - com a dor do sertanejo e com a tristeza - antes asiática ou norte-africana do que européia - da vegetação regional; e nunca por superioridades sutis de "grego" ou "heleno" perdido entre os mandacarus. Aqueles mandacarus a princípio "tesos triunfalmente enquanto por toda a banda a flora se deprime"; depois "constantes, uniformes, idênticos"; mas resistindo sempre à "ardência do sol" e dos "areais queimosos" dos sertões. Mandacarus, xiquexiques, "cabeças de frade" - estas uns "deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal" recortadas pelo estilista com requintes de purismo geométrico.

Era natural que nos "areais queimosos" dos sertões Euclides parasse para se retratar ossudo e romântico ao lado dos mandacarus, dos xiquexiques, das "cabeças de frade": o seu "reino" era aquele. O "reino" a que ele próprio se havia de referir uma vez, falando meio desdenhosamente de poetas. Dessas suas palavras se serviria um tanto irônico o geólogo John Casper Branner, com o aplauso do sr. Afrânio Peixoto, para fazer o elogio do poeta d 'Os sertões e a crítica incisiva do seu livro: "o poeta é soberano no pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia".

Os sertões foram, na verdade, o reino do poeta Euclides da Cunha. Sua Pasárgada, como diria Manuel Bandeira. Antes de Euclides a paisagem brasileira tivera entre os poetas e os romancistas os seus simpatizantes e até entusiastas: o maior deles José de Alencar. O autor d 'Os sertões foi o primeiro caso de verdadeira empatia. Simpatia só, não: empatia. Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou os sertões para sempre à sua personalidade e ao "caráter brasileiro", de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma espécie de mártir.

Foi nos sertões que as centenas de mãos esquerdas do magricela desajeitado que já entortara uma espada num instante de fúria - e talvez centenas de penas noutros momentos de raiva menos espetaculosa - começaram verdadeiramente a se disciplinar sob uma vocação poderosa: a de escritor em função da "paisagem brasileira" que ficou sendo para ele mais do que a "imagem da República" - que também teve para Euclides um sentido místico - uma espécie de prolongamento da imagem materna e ao mesmo tempo da própria.

Impossível separar Euclides dessa paisagem-mãe que se deixou interpretar por ele, e pelo seu amor e pelo seu narcisismo, como por ninguém.

Na descrição dos sertões, o cientista erraria em detalhes de geografia, de geologia, de botânica, de antropologia; o sociólogo, em pormenores de explicação e de diagnóstico sociais do povo sertanejo. Mas para o redimir dos erros da técnica, havia em Euclides da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais. O Euclides que descobrira na paisagem e no homem dos sertões valores para além do certo e do errado da gramática da ciência.

O poeta viu os sertões com um olhar mais profundo que o de qualquer geógrafo puro. Que o de qualquer simples geólogo ou botânico. Que o de qualquer antropologista.

O profeta clamou pelos sertões: deu-lhe um significado brasileiro, ao lado do puramente paisagístico, do indistintamente humano.

O artista os interpretou em palavras cheias de força para ferir os ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com o som de uma voz moça e às vezes dura, clamando a favor do deserto incompreendido, dos sertões abandonados, dos sertanejos esquecidos.

Porque ele foi a voz do que clamou a favor do deserto brasileiro: endireitai os caminhos do Brasil! (O Brasil era o seu "Senhor"). Os caminhos entre as cidades e os sertões. Esta foi a grande mensagem de Euclides: que era preciso unir-se o sertão com o litoral para salvação - e não apenas conveniência - do Brasil. O sertão era "salvador": salvador dele, Euclides, e salvador do Brasil. Mensagem transmitida aos homens da República de 89 em palavras de artista interessado pela política. Mensagem deformada depois pelos que fizeram dos sertões em si - e não de sua comunicação com o litoral agrário - quase uma mística, uma espécie de seita protestante que acredita poder salvar o Brasil com a água dos açudes do Nordeste - nos quais se têm talvez empregado somas em desproporção com o seu valor social para a nação brasileira.

Nem o poeta, nem o profeta, nem o artista me parece que turvam n Os sertões ou noutro qualquer dos grandes ensaios de Euclides da Cunha-as qualidades essenciais de escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900 que ele foi: escritor fortalecido pelo traquejo científico, enriquecido pela cultura sociológica, aguçado pela especialização geográfica.

Aquelas qualidades científicas, quem às vezes as diminui no autor d Os sertões comprometendo-as na sua essência, é o orador perdido de amor - amor físico - pela palavra simplesmente bonita ou rara; o orador que a formação científica de Euclides da Cunha não conseguiu esmagar nunca no grande sensual das frases sonoras, deslumbrado desde os dias de colégio, desde o tempo de menino criado em fazenda - quando, informa o sr. Elói Pontes, discursava aos bois no fim das tardes quietas do Rio de Janeiro - pelo efeito das frases, das palavras, dos polissílabos, primeiro sobre os ouvidos, depois sobre os olhos pervertidos em ouvidos. Daí a exagerada sensualidade verbal, a ênfase anticientífica e também antiartística em que às vezes se empasta sua palavra nem sempre a serviço fiel dos seus olhos: traindo-os às vezes para seguir os ouvidos ou a imaginação de adolescente.

Em Euclides, a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar - como nas óperas - as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres, as instituições com que se identificava. Engrandecer, alongando: à sua imagem, talvez. Menos, porém, ao herói individual que ao tipo heróico. Principalmente o tipo heróico em função da paisagem brasileira do centro. O vaqueiro, o sertanejo, o seringueiro, o próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões - sobrevivência do quilombola colonial - sai engrandecido de suas páginas .

Nesse gosto de fixar tipos heróicos em função das paisagens - ou antes, da "paisagem", para ele como que mística do Brasil mediterrâneo - ninguém o excede. Espera o instante de tensão heróica, o momento extremo de sacrifício ou de agonia, para surpreender no brasileiro anônimo, no sertanejo vulgar, até no caboclo desconhecido, "as linhas terrivelmente esculturais" em que a resistência ao sol, à coragem, à dor, à doença ou simplesmente à fome os alongue em figuras de grandes de Espanha. Exagera então os alongamentos, os ângulos, os relevos. Ao sertanejo, espera quase voluptuosamente que se empertigue, que estadeie todos os seus relevos e todas as suas linhas, que corrija "numa descarga nervosa instantânea todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos" para exaltar na "figura vulgar do tabaréu canhestro" - afidalgada por aquele instante de tensão escultural - "o titã acobreado e potente". Ao cavalo do alferes Vanderlei, surpreende-o morto, com todos os relevos de cavalo ossudo de dom Quixote. Da moça sertaneja alongada pela fome e dramatizada pela dor, que encontra em Canudos, delicia-se em destacar o perfil anguloso: "uma beleza olímpica.... na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontados duramente no rosto emagrecido...." "Perturbados embora", mas sem essa perturbação, teriam merecido o interesse do estilista obcecado pelo gosto da angulosidade, para ele como que identificada com a altivez, a nobreza, o brio - com ele próprio, Euclides da Cunha?

Mais ainda: de um negro, capanga do Conselheiro, faz um mártir; e um mártir de proporções monumentais que, com música de ópera daria uma figura wagneriana. Coerente com a sua técnica, o seu método, o seu gosto de literatura escultural e de música dramática, espera que o preto desconhecido morra ao laço para o surpreender já "feito estátua" - símbolo de uma raça inteira e expressão de protesto contra quatro séculos de civilização escravocrata. Fixa então o preto em toda a glória de sua "plástica estupenda": "...viriam transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram repentinamente linhas admiráveis - de uma plástica estupenda. Um primor de estatuária modelado em lama. Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte Surgiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos".

Sente-se aí, como noutros arrojos de síntese do autor d'Os sertões, aquele encanto pela técnica da escultura que ele próprio confessa: "é que a escultura, sobretudo a escultura heróica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música". Mas para isso - salienta Euclides no seu ensaio "A vida das estátuas" - o escultor - e poderia ter acrescentado: o escritor que imita o escultor na sua técnica - não deve destacar nas figuras "um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado". A tendência para o monumentalismo que quase nunca o abandona. Da paisagem quase sem relevo dramático nenhum, nem traço monumental dos canaviais da vizinhança de Pojuca ele recorta apenas as "miríades de folhas refletindo ao sol com um brilho de aço antigo"; a casa-grande, mal a observa, desinteressado talvez do gordo, do "terrivelmente chato", do liricamente brasileiro, do acachapadamente patriarcal de sua arquitetura.

Toda a obra de Euclides está cheia de flagrantes de atitudes heróicas oferecidos pelos homens e até pelos animais e pelas árvores nos seus momentos de resistência, de dor, de sacrifício, de fome. Flagrantes surpreendidos pelo olhar arregalado do estilista mais dominado pelo sentido escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil e talvez em língua portuguesa. Flagrantes e idealizações. Idealizações sob a forma - que chega a sugerir certo narcisismo mórbido - de alongamentos grecóides. Aliás, ele chega a parecer um irmão mais novo e desgarrado na literatura não só de El Greco como de Alonso Berruguete: o Berruguete que na Espanha do século XVI quis exprimir em escultura "toda a força das emoções fundamentais", acentuando a ossatura dos membros, as cabeças das falanges dos dedos, os ligamentos que só o anatomista conhece nas mãos e nos pés dos homens.

A Euclides como que repugnava na vegetação tropical e na paisagem dominada pelo engenho de açúcar o gordo, o arredondado, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê. Atraía-o o anguloso, o ossudo, o hirto dos relevos ascéticos ou, quando muito, secamente masculinos do "agreste" e dos "sertões". Dos tipos e dos cenários sertanejos, ele destaca os relevos mais duramente angulosos, em palavras também duras, quase sem fluidez nenhuma e como que assexuais. Palavras às vezes enfeitadas de arabescos glorificadores, exageros de idealização monumental, lugares-comuns de geometria oratória: "beleza olímpica", "primor de estatuária", "linhas ideais de predestinado", "olhar, num lampejo viril, iluminando-lhe a fronte". Nunca porém sem seu relevo. Sempre impressionantes e quase sempre vigorosos - de um vigor novo na língua: um vigor escultural.

Porque ele é, na verdade, uma espécie de El Greco ou de Alonso Berruguete da prosa brasileira: tira das palavras o máximo de recursos esculturais, embora com sacrifício, mais de uma vez, de qualidades de discriminação e de inflexão - as grandes qualidades, entre os mestres brasileiros seus contemporâneos, de Machado, de Nabuco e do próprio Pompéia. Qualidades quase impossíveis dentro do gosto do brônzeo, do escultural, do geométrico, do hirto, do anguloso, em que Euclides se requinta como sob o domínio de uma obsessão quase mística: a de evitar a carne, suas curvas, sua inconstância, o momento que passa, a banalidade quotidiana.

Precisamente no Diário de uma expedição, com que o editor José Olímpio iniciou a publicação, em volumes da Coleção Documentos Brasileiros, de crônicas, apontamentos, cartas e até versos do grande escritor brasileiro, inéditos ou dispersos pelos jornais, é que Euclides se revela menos escultural na técnica de escrever e de interpretar tipos e cenários nos seus momentos grandiosos e nos seus aspectos heróicos; e mais fluido, ao mesmo tempo que o menos intolerante do quotidiano.

Porque mesmo nessas notas de repórter ele se mostra o escritor que procura fazer parar as figuras nos seus momentos artística ou, antes, esculturalmente mais expressivos e também mais dramáticos, para os descrever parados e em plena pompa de suas linhas. Que procura fazer parar o próprio sol dos sertões; descrevê-lo como que parado: "reverberando nas rochas expostas, largamente refletido nas chapadas desnudas, sem vegetação, ou absorvido por um solo seco e áspero de grés" num daqueles meios-dias sertanejos "mais silencioso e lúgubre que as mais tardias horas da noite".

As palavras saem-lhe, porém, nas cartas e nas crônicas, mais soltas; e com umas sem-cerimônias, uns à-vontades, uns abandonos que faltam às páginas como que acabadas, completas, definitivas d'Os sertões. Sente-se nas crônicas um gosto diverso do da obra madura e quase monotonamente lapidar: um gosto com a sua ponta de verde, o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum, de improvisação.

Porque com o sr. Rosário Fusco - em recente artigo sobre o Diário de uma expedição - e contra o escritor cintilante mas às vezes arrebatado que é o sr. Agripino Grieco, não acredito na improvisação destas notas, muito menos na d'Os sertões: improvisação afetada por Euclides com certa pacholice de dom-juan que ostentasse sucessos fáceis; com certa gabolice de adolescente. O adolescente ao mesmo tempo acanhado e tonitruante, incompleto e enfático, que não morreu de todo no autor de Canudos. Nem no escritor nem, talvez, no homem. Mas isto é outra história, como diria Kipling.

O que desejo salientar aqui e o que me parece ponto inteiramente tranqüilo na personalidade de Euclides da Cunha é "a dificuldade tremenda" que, segundo um observador atento, "ele tinha em redigir". João Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de estilista redigindo com um vagar de quem fizesse renda um artigo para o Jornal do comércio: "levou aquilo mais de três horas para ocupar no dia seguinte um resumido espaço no jornal".

Aliás o próprio Euclides em página do Diário (Bahia, 21 de agosto) confessa, senão a tortura no escrever, o trabalho penoso de recolher dados pelos arquivos baianos: um "investigar constante acerca do nosso passado vindo intacto quase aos nossos dias, dentro desta cidade tradicional como de uma redoma imensa". Acrescentando: "A poeira dos arquivos de que muita gente fala sem nunca a ter visto, surgindo tenuíssima de páginas que se esfarelam ainda quando delicadamente folheadas, esta poeira clássica - adjetivemos com firmeza - que cai sobre tenazes investigadores ao investirem contra longas veredas do passado, levanto-a diariamente. E não tem sido improfícuo o meu esforço". Confissão sincera e até corajosa para uma época em que, mais do que hoje, o "homem de talento" no Brasil devia afetar, acima de tudo, capacidade de improvisação; isso de se sujar de poeira pelos arquivos, entre livros podres e papéis velhos, era só para os medíocres, para os antiquários, para os desembargadores de província. Confissão que, de certo modo, contradiz o bravado de adolescente, em "caderno íntimo" de que o Grêmio Literário Euclides da Cunha, em sua revista, e a revista de estudantes do Recife, Universidade, em seu número de junho de 1938, publicaram trechos curiosos. Inclusive este: "Escrevi-o [Os sertões] em quartos de hora, nos intervalos de minha engenharia fatigante e obscura". No que talvez tenha se baseado o sr. Agripino Grieco para se referir com entusiasmo às cartas enviadas por Euclides da Cunha para O estado de São Paulo: "escritas sem elementos de consulta, na barafunda da campanha, aos primeiros jatos da emoção tumultuosa".

Uma ou outra nota se destaca daquelas cartas pela "emoção tumultuosa" que verdadeiramente acuse a reportagem pura, em vez da estilização pachorrenta. Assim os oitenta soldados feridos que em carta de 12 de agosto Euclides escreve ter visto saltar do trem na estação de Calçada. Ao estilista como que faltou tempo para fazer parar toda aquela gente ferida em figuras esculturais - embora não esqueça de salientar as "apófises dos ossos" a apontarem dos "corpos depauperados" dos "heróis obscuros". Coxeando, arrastando-se, os oitenta soldados desconhecidos saltam do trem e desaparecem, deixando-se apenas esboçar a lápis pelo repórter emocionado, mas como que frustrado nas suas intenções de síntese, quando não de glorificação escultural daqueles homens já tão sem carne: quase só ossos.

É certo que glorificando tipos em estátuas, Euclides raramente sacrifica neles a verdade essencial: quase sempre acentua-a, simplificando-a ou exagerando-a nas linhas das sínteses arrojadas. Mas esse talento o abandona, quase sempre, diante da interpretação das personalidades isoladas e dos próprios tipos sociais mais densos e mais rebeldes à simplificação. E toda vez que se sente fraco diante de problemas complexos de interpretação de personalidades ou de tipos Euclides resvala no seu vício fatal: a oratória.

A uma frase que faça desaparecer de uma personalidade ou de um tipo curvas indecisas, sob o traço único e imperial de uma generalização ou de uma síntese, ele sacrifica às vezes as contradições, as transições, os contrastes que se agitam dentro de um problema complexo e sutil d psicologia ou de história. Principalmente quando esse problema é o que oferece a psicologia ou a história de uma personalidade ou de um tipo social mais denso. Daí a fraqueza de suas tentativas de caracterização da cidade da Bahia, por exemplo, ao lado de suas sínteses magníficas de paisagens largas e de tipos menos complexos: o do sertanejo ou o do seringueiro.

Seus ensaios sobre personagens isoladas, sobre tipos complexos, concentrados no tempo ou no espaço, não têm a força nem a riqueza psicológica dos outros: sobre assuntos menos definidos. Porque ninguém como Euclides ilustra aquele reparo surpreendente mas exato de um crítico: "É mais fácil não nos enganarmos sobre um país inteiro que sobre uma só personagem."

Euclides está cheio de generalizações violentas: mesmo quando faz o elogio da análise. Assim: "Roosevelt é um estilista medíocre.... Não escreve, leciona. Não doutrina, demonstra. Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos brilhantes de uma teoria; analisa, disseca, induz friamente, ensina." Mas nunca ninguém pretendera exaltar no primeiro Roosevelt o estilista. Nem as demais afirmativas se ajustam ao famoso político americano que não foi nenhum mestre da análise, nem da indução, nem da demonstração fria mas, ao contrário, antes um intuitivo que um lógico; principalmente um voluptuoso da ação; e na expressão literária - se chegou a ter expressão rigorosamente literária - um orador às vezes lamentavelmente enfático. Os mesmos limites Euclides revela diante de personalidades menos distantes: o seu Moreira César, o seu Carlos Teles, mesmo o seu Floriano, nenhum deles tem o vigor ou a verdade do seu sertanejo ou do seu seringueiro.

Outro dos seus contemporâneos, de quem o ensaísta pretendeu fixar a psicologia, ao lado da de Theodore Roosevelt, e fez apenas a caricatura, foi Guilherme II, em frases sonoras que tanto agradariam a Tristão de Araripe Júnior - um crítico literário que lia com os ouvidos e prejulgava com a vista como certos glutões comem com os olhos e prejulgam com o olfato. Frases que não escondem de um leitor menos sensível aos encantos do verbalismo, uma incapacidade surpreendente, em escritor tão poderoso, para a caracterização - neste caso não só do particular, do definido, do único - a personalidade de Guilherme II - como do geral: o povo alemão. Porque é de uma gente da formação delirantemente romântica e até mística do alemão, que Euclides pretende fazer "a terra clássica do bom senso equilibrado"; do Kaiser, isto é, de Guilherme II - um "neto retardatário das Valquírias" que tivesse subjugado, como por mágica, toda aquela massa formidável de "bom senso equilibrado". Frases de orador que lembram expressões pomposas do grande poeta - também turvado pela oratória - que foi Castro Alves. Grande poeta um tanto desdenhado por Euclides ao se confessar atônito ante aquela "espécie de Carlyle da rima" que "nos abala poderosamente em cada verso, mas cuja ação é infinitamente breve, como a de uma pancada percutindo e morrendo ao fim dos hemistíquios".

A Euclides se poderia talvez fazer reparo semelhante ao que ele opôs ao poeta baiano. Em vários dos seus ensaios e em alguns trechos menos felizes d'Os sertões, o lógico, o intuitivo, o poeta dramático e às vezes trágico - raramente lírico - se deixa vencer pelo orador simplesmente impressionante nos seus arrojos verbais e por isso mesmo de "ação infinitamente breve" sobre os quais os que o lêem menos com os ouvidos do que com a inteligência. A inteligência prevenida contra as sínteses sonoras, as generalizações grandiosas, as sentenças maciças, sem um "talvez", sem um "a não ser que", sem um "entretanto" a quebrar-lhes em curvas - curvas irônicas, às vezes irritantes, mas sempre necessárias - a imponência das retas, tão de sua predileção de construtor de frases imperiais .

O professor Afrânio Peixoto já observou de Euclides da Cunha que "não tinha matizes nem inflexões"; que desconhecia "os meios-tons e as transições insensíveis". Pior ainda: que cultivava "esse mau gosto nacional, espécie de gongorismo retardado, que o povo chama, avisadamente, falar difícil". Wagnerismo literário.

Donde aquele seu vício de adolescente de tomar notas nos punhos da camisa de palavras estranhas e arrevesadas, boas para as grandes orgias dos olhos e dos ouvidos. Orgias às vezes masoquistas: palavras duras, termos requintadamente científicos, expressões terrivelmente técnicas que doessem bem nos olhos e nos ouvidos dos voluptuosos, machucando-os e ferindo-os mas deleitando-os.

Noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais para qualquer escritor menos vigoroso.

Quem nos deixou, como Euclides da Cunha, páginas que saltam intuições verdadeiramente geniais, não precisa de condescendência de crítico algum. O vulto monumental que levantou de Antônio Conselheiro - não da pessoa do místico, mas do seu tipo de sertanejo isolado da civilização do litoral, de vítima desse isolamento, de monge quase mal-assombrado cercado de beatas, de velhas, de doentes, de brancos, de negros, de caboclos, de centenas de brasileiros pervertidos pelo mesmo isolamento que ele, de asceta terrível dando as costas às mulheres moças e às paisagens macias do lado do mar - permanece obra-prima na literatura brasileira. Mais do que isso: obra-prima de síntese sociológica na língua portuguesa. Seus estudos de problemas de formação territorial, social e política do Brasil vieram esclarecer aspectos importantíssimos de nossos antecedentes e da nossa atualidade. Suas caracterizações da paisagem brasileira dos sertões - paisagem física, paisagem cultural - ilumina-as um seguro critério ecológico, ao lado do senso dramático dos antagonismos que turvam a unidade brasileira.

Da história, como da geografia, ele teve a visão mais larga, que é a social, a humana. Seu mestre Carlyle não o afastou do amor fraternal dos homens, simplesmente homens, para o tornar um devoto exagerado dos heróis. Nos heróis como nos jagunços ele nunca deixou de sentir homens; em Antônio Conselheiro, não deixou de ver o brasileiro nem de sentir o irmão. Nos documentos que estudou, que interpretou, que esclareceu foi sempre o que o interessou mais profundamente: a nota humana, a expressão social, a significação brasileira.

Se tivesse hoje vinte, trinta ou quarenta anos, qual seria a posição de Euclides na vida brasileira e diante dos problemas do nosso tempo? Num "ensaio de revisão" é ponto a que dificilmente se pode fugir. A sra. Carolina Nabuco, em conferência, na Faculdade de Direito do Recife, afirmou daquele grande pernambucano - seu pai - na velhice tão olímpico e tão glorificado por todos mas que na mocidade - e mesmo depois dos trinta anos - fora considerado "agitador", "inimigo do clero" e até "republicano" perigoso: "Meu pai, se fosse moço, hoje, certamente advogaria reformas sociais..." Atalhando, porém, com delicadeza de moça e doçura de brasileiro: "...mas nunca insuflando ódios de classe ou agindo com armas que não fossem a própria convicção dos espíritos". E transcreve de Joaquim Nabuco estas palavras que apesar da expressão "futuro remotíssimo" seriam consideradas hoje pela gente mais tomada de pânico diante do socialismo, terrivelmente radicais: "Só há uma coisa certa, é que num futuro remotíssimo, o proprietário de terra será um ente tão mitológico quanto o proprietário de homens. "

Euclides - que escolheu do Brasil e da vida uma "paisagem" tão diversa da de Nabuco - encara o assunto num dos seus ensaios mais eloqüentes - "Um velho problema" - em que se levanta contra o que chama o "egoísmo capitalista" em tom quase de panfletário. É desse trabalho a página pouco original e até rala na idéia mas caracteristicamente euclidiana pelo vigor de expressão - o estilista tira aí todo o partido poético e estético da terminologia físico-química - de confronto do operário moderno - "esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb" - com "a máquina... íntegra e brunida". Confronto em que se revelaria "a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava" e no qual estaria "em grande parte a justificativa dos socialistas não chegarem todos ao duplo princípio fundamental: socialização dos meios de produção e circulação; posse individual somente dos objetos de uso".

Tudo indica que tanto Euclides como Nabuco, se fossem homens de trinta anos diante dos problemas de hoje e no Brasil dos nossos dias, estariam entre os escritores chamados indistintamente da "esquerda", embora nenhum deles fosse por temperamento ou por cultura inclinado àquela socialização da vida ou àquela internacionalização de valores que importassem em sacrifício da personalidade humana ou do caráter brasileiro. Ao contrário: aos olhos dos cientificistas do socialismo eles seriam dois formidáveis românticos, cada qual a seu jeito. Românticos principalmente neste ponto: no respeito pela pessoa humana, a ser defendida contra todos os seus inimigos. Sobre os dois - sobre Nabuco e sobre Euclides - atuaram nesse sentido influências inglesas que não devem ser esquecidas .

Aliás convém salientar que, atraído por afinidades de temperamento e, ao que parece, sob o domínio de tendências ou predileções comuns, o escocês Cunningham Graham traduziu para o inglês, no seu A Brazilian mystic, trechos inteiros d 'Os sertões, alguns dos quais, vertidos àquela língua por um romântico como Graham, nos dão a idéia de terem regressado à sua pátria. No caso, não tanto pátria intelectual, como, em certo sentido, moral, psíquica.

Além do que me parecem evidentes em Euclides da Cunha-o Euclides das cartas sobre a expedição a Canudos - traços de influência daquele tipo profundamente inglês ou escocês, não sei se diga de literatura - o "diário de militar". O diário do militar que cumpre liturgicamente o seu dever de soldado mas não renuncia à sua consciência de protestante inquieto a refugiar-se no "diário" como o católico no confessionário. Quando o protestante é escocês, à necessidade de confessar-se aos outros se junta aquele gosto de frase que um crítico nos diz, em estudo recente, ser o característico de "celta presbiteriano". Euclides, que se sentia não só "tapuia" e "grego" como "celta", talvez pudesse ter acrescentado "celta presbiteriano". Mas nenhuma influência estrangeira que se venha a precisar em Euclides, nenhuma coincidência de orientação, de temperamento, de técnica, de atitude mental ou de consciência que se venha a estabelecer entre ele e mestres europeus, antigos ou seus contemporâneos, afetará no grande escritor a originalidade essencial, feita do profundo brasileirismo e da força incisiva de personalidade que marcam tudo que ele fez e escreveu.

Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre a formação social do Brasil, concede importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a extensão e a profundidade da influência da chamada "economia agrário-feudal" sobre a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário e escravocrata na análise da nossa patologia social; e exalta a importância do processo biológico - a mistura de raças - como fator, ora de valorização, ora de deterioração regional e nacional .

São recentíssimos, aliás, os estudos que vão estabelecendo o primado do fator cultural - inclusive o econômico - entre as influências sociais e de solo, de clima, de raça, de hereditariedade de família, que concorreram para a formação da sociedade brasileira, em geral e, particularmente, para as suas formas agrárias ou pastoris caracterizadas pelo latifúndio, pela exclusividade de produção e pelo trabalho escravo ou semi-escravo, com todos os seus concomitantes psicológicos de agricultura sem amor profundo à terra.

Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha-a quem faltavam estudos rigorosamente especializados de antropologia física e cultural ainda mais que os de geologia, nos quais nos informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim e a Rodrigo Melo Franco de Andrade, ter o autor d 'Os sertões recebido forte auxílio técnico de Orville Derby - impressionasse de modo particular o aspecto étnico, ou ostensivamente étnico, da geografia humana do Brasil. Nem que, nos seus ensaios resvalasse como resvalou, em mais de uma página eloqüente, no pessimismo dos que descrêem da capacidade dos povos de meio-sangue - ou de vários sangues - para se afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas de economia, de governo e de caráter nacional. Descrença baseada em fatalismo de raça. Em determinismo biológico.

Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides da Cunha, o próprio Nina Rodrigues, com estudos especializados de antropologia (e cujo diagnóstico de psiquiatria do caso do Conselheiro, Euclides seguiu muito de perto), não escapou a exageros etnocêntricos na análise e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos por largos anos, quase sem retificação, por vários discípulos do sábio maranhense; e retomados pelo professor Oliveira Viana em obra erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já se esboçara, com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo professor Roquete Pinto, no sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vitima de preconceitos cientificistas com aparência de verdades antropológicas.

Tais preconceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às vezes o próprio Sílvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias está cheia de contradições. Só uma exceção se impõe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre nós, a citar o professor Franz Boas e suas pesquisas sobre raças transplantadas. Outra exceção: a de Manuel Bonfim, turvado, entretanto, nos seus vários estudos, por uma como mística indianista ou indianófila semelhante à de José de Vasconcelos, no México.

Daí não nos surpreender o pendor melancólico de Euclides para o fatalismo de raça. Aquele seu - "ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, repontam vivíssimos estigmas da inferior... de modo que o mestiço é, quase sempre, um desequilibrado... um decaído sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ascendentes superiores" (Os sertões, 3a ed., p. 109) é bem característico dos seus momentos de fatalismo étnico. Vê-se que Euclides da Cunha se viu às vezes arrastado pelo que considerava a antropologia científica na sua expressão única e definitiva, a acreditar na incapacidade do mestiço: incapacidade biológica, fatal.

Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer teoria de superioridade de raça. O perfil que traça do sertanejo não é de um devoto absoluto de tal superioridade. Nem é fácil de conceber que um homem como Euclides da Cunha, animado do culto da personalidade humana tanto quanto do entusiasmo pelos planos arrojados de socialização dos grupos regionais ou nacionais, pudesse ser hoje o etnocentrista desdobrado em totalitarista que entrevêem nele alguns críticos de belas-letras, para quem a caracterização psicológica dos indivíduos e dos povos é um jogo fácil, ao sabor de caprichos de momento ou de entusiasmos doutrinários de ocasião.

Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não foi absorvente. Não o afastou de todo da consideração e da análise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia e de vida já mortas na Europa ocidental; traços aparentemente cacogênicos mas, na realidade, de patologia social, que o isolamento de populações, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral, conservaria até os nossos dias. Aqueles fazendeiros de sertão que o escritor conheceu a usufruírem "parasitariamente as rendas das terras dilatadas, sem divisas fixas", eram bem o prolongamento, no espaço e no tempo, dos sesmeiros da colônia. Uns e outros, senhores de escravos ou de semi-escravos "perdidos nos arrastadores e mucambos". Semi-escravos, os dos sertões, "cuidando a vida inteira, fielmente, os rebanhos que lhes não pertencem". (Os sertões, 3a ed., p. 122.)

Aliás, é possível que o movimento messiânico de Antônio Conselheiro tenha tido alguma coisa da revolta de oprimidos, entrevista apenas por Euclides. Foi assim que Canudos ficou para a opinião européia mais aguçada no diagnóstico de revoluções exóticas: como revolta de classe oprimida. A resenha do Hachette, de Paris, para o ano de 1897, pode ser considerada típica daquele diagnóstico quando faz do Conselheiro - um dos raros sul-americanos que alcançaram então fama mundial - curiosa figura de profeta que pregava "le communisme en même temps que le rétablissement de la monarchie..."

O aspecto "comunista" e ao mesmo tempo "monarquista" encontra-se noutros movimentos brasileiros do século XIX, classificados vagamente como surtos de misticismo doentio entre grupos isolados: sertanejos do Nordeste, restos de quilombolas, "fanáticos" do Contestado, europeus mal assimilados pela civilização brasileira do litoral. Entre os últimos, os colonos alemães e os descendentes de alemães que, ainda sob a monarquia, esboçaram, perto de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, o seu Canudos ou a sua Pedra Bonita, o seu Quebra-Quilos ou a sua guerra de Cabanos, tendo por profeta uma mulher: Jacobina Mentz E por ideal de organização social, certo comunismo cristão a que talvez não fossem estranhos sugestões dos mórmons e restos de influência da tentativa de colonização socialista do dr. Mure, em Santa Catarina .

O próprio aspecto de sebastianismo político do movimento de Canudos - exagerado na época pelos devotos da República mas desprezado hoje pelos estudiosos daquele capítulo dramático de história brasileira - está a pedir a atenção de algum pesquisador mais pachorrento que se disponha a acompanhar - tarefa difícil - a atividade de agentes ou de simples amadores da restauração monárquica no nosso país, nos fins do século passado e nos começos do atual. Agentes ou amadores a quem a revolta do Conselheiro talvez tenha se apresentado como forca de fácil utilização política. Tais agentes e amadores não só existiram como atuaram, às vezes inteligentemente, a favor de sua causa. E sua atividade - se não francamente política, de sondagem pré-política das condições brasileiras e de colheita de dados para o que se pode hoje denominar de economia ou sociedade planificada dentro da concepção monárquica de reorganização da vida nacional (pois a tanto se estendeu o preparo para a restauração do Império no Brasil na pessoa do príncipe dom Luis, a quem não faltavam idéias moderníssimas de governo junto com o senso político, o gosto de ação e o entusiasmo pelas coisas brasileiras) - foi até ao interior do Brasil. Foi até ao estudo meticuloso e literalmente germânico de zonas remotas que somente agora estão interessando de novo aos responsáveis pela política e pela administração do nosso país. E foi até a tentativas francas ou sutis no sentido de atrair grandes intelectuais do Brasil para a causa monárquica. Tentativas que alcançaram Oliveira Lima - que chegou a ser convidado pelo príncipe para ministro das Relações Exteriores de um possível governo monárquico que da noite para o dia se estabelecesse no Rio de Janeiro - e se estenderam, de modo muito vago, ao próprio Euclides.

Admitido o aspecto vagamente político de Canudos - aquela mistura de "comunismo" com "monarquismo" - a verdade é que o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o da raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de alguns dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos.

A mesma lucidez afastou-o da exagerada idealização da atividade missionária e política dos jesuítas - organizadores de outros Canudos - na formação brasileira. Idealização a que se entregaram com toda a alma Joaquim Nabuco e Eduardo Prado. A Euclides foi preciso ter havido o Anchieta - o mesmo Anchieta no qual os historiadores oficiais da expansão inaciana no Brasil colonial recusaram-se a enxergar a figura máxima daqueles dias, do ponto de vista jesuítico - para que ele, Euclides da Cunha, se sentisse reconciliado com a Companhia de Jesus. Mas não nos antecipemos sobre este ponto.

Além de Orville Derby - que segundo Arrojado Lisboa teria fornecido a Euclides da Cunha notas valiosas sobre a geologia do Brasil (assunto em que o sábio norte-americano naturalizado brasileiro era mestre)- o autor d 'Os sertões teve em Teodoro Sampaio não só um colaborador mas um orientador no estudo de campo de geografia e de história geográfica e colonial do Nordeste; e talvez - me aventuro a acrescentar - um tradutor de trechos mais difíceis da língua inglesa, em cujo conhecimento parece que Euclides da Cunha era patrioticamente fraco. No seu "Terra sem história" (À margem da história, 1908, p. 21) surpreendo-o a traduzir drinking, gambling and lying por "bebendo, dançando, sambando". Tradução demasiado livre.

Um critico baiano, o sr. Carlos Chiacchio, destacou há pouco, em sugestivo ensaio - Euclides da Cunha, aspectos singulares (Bahia, 1940) - o auxilio prestado ao escritor d 'Os sertões por aquele seu amigo e, em certo sentido, mestre de geografia e de história - tanto quanto Orville Derby de geologia: Teodoro Sampaio. O próprio Sampaio recordara, em artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (Bahia, 1919, p. 252): "Levou-me [Euclides] algumas notas que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito na parte referente a Canudos e vale superior do Vaza-Barris, trecho do sertão ainda muito desconhecido, e eu lho forneci. . . " E para Sampaio é que Euclides da Cunha foi lendo depois, aos domingos, "os primeiros capítulos, os referentes à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo", escritos "naquela sua caligrafia minúscula". Poupou, talvez, ao mestre de geografia a leitura das páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos. Pedira ainda Euclides a Teodoro Sampaio "apontamentos históricos", que - diz Sampaio naquele seu artigo - "eu assim como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhos fornecia, resultando disso, por acaso, esse manuscrito da lavra de nós ambos que o instituto hoje possui, isto é, notas distribuídas em capítulos por mim escritos na primeira parte do livro, observações outras da lavra de Euclides, feitas com a mesma letra miudinha que ambos adotávamos para simples anotações". Das notas de Teodoro informa o sr. Carlos Chiacchio que se referem a "cartas régias, roteiros, alvarás, crônicas de jesuítas, biografias, manuscritos coloniais, múltiplos veeiros, em suma, codificados em Casal, Accioly, Pedro Taques, Araújo Porto Alegre, Alexandre Rodrigues Ferreira, pesquisas e documentos de institutos, bibliotecas, arquivos de Rio e Bahia, tudo isso esmerilhado, escoldrinhado, loteado e recolhido não em um ou dois ou três anos de afogadilho mas longamente, metodicamente, pertinacissimamente".

Juntando-se a colaboração do paciente pesquisador de geografia física e humana e de história colonial do Brasil que foi Teodoro Sampaio à do geólogo Orville Derby e, ainda, à orientação do psiquiatra Nina Rodrigues quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos fanáticos de Canudos o próprio esforço de pesquisa de Euclides nos arquivos da Bahia, e, de campo, no interior do estado, vê-se como é precária a posição dos que ingenuamente exaltam n'Os sertões um livro improvisado. Nem improvisado nem fácil. Nem tampouco caprichosamente individual, de quem tivesse se retraído dos especialistas seus amigos ou conhecidos para escrever sozinho um livro de tamanha complexidade.

Nas suas pesquisas de técnico, no extremo Norte, Euclides da Cunha teve outro bom colaborador, este seu primo e, como Teodoro, amigo íntimo: o engenheiro Arnaldo Pimenta da Cunha.

Do então jovem engenheiro Pimenta da Cunha é que escreveu a José Rodrigues Pimenta da Cunha - pai de Arnaldo e tio de Euclides - o médico da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus: "A parte técnica da comissão foi muito principalmente obra sua. Foi talvez o anjo tutelar do chefe. . . " De modo que colaborações técnicas de amigos não faltaram ao grande escritor.

É de Euclides esta caracterização de sua própria vida: "romance mal arranjado". Nesse "romance mal arranjado" um dos seus maiores consolos foi decerto o da amizade. Amizade que mais de uma vez se estendeu em colaboração ou em auxílio técnico dos amigos - dos mais jovens como dos mais velhos - nas pesquisas e nos trabalhos necessários a ensaios de modo nenhum improvisados. Raro o escritor, o artista ou o cientista que tenha tido amigos e colaboradores tão bons como os que Euclides da Cunha teve na Bahia e no Amazonas, em São Paulo e no Rio.

Nas suas viagens de aventura científica, à saudade dos filhos se juntou sempre a dos amigos: "as imagens dos amigos constantemente evocadas e cada vez mais impressionadoras à medida que se aumentam as distancias". E aos amigos - diz numa carta a Oliveira Lima - aos amigos "elejo-os sempre incorruptíveis confessores desta minha vida". A Vicente de Carvalho escreve meses antes de ser assassinado no Rio: "Tranqüiliza-me, homem! Imagina as atrapalhações em que vivo...."

O crítico baiano Carlos Chiacchio me parece acertar na interpretação da angústia de Euclides da Cunha, já fixada pelo sr. Elói Pontes, num livro que é um esforço admirável de reconstituição da personalidade do autor d 'Os sertões: a falta de um amor. Angústia atenuada pela constância dos amigos e pelos encantos da aventura científica nos ermos: "o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador.... o sertão.... e a vida afanosa e triste de pioneiro". E não a "Europa, o bulevar, os brilhos de uma posição". O que não o impediu de ter pensado muito na Europa - que teria sido para ele outra espécie de ermo. Nem de se apresentar candidato à Academia Brasileira de Letras.

Sente-se, na sua correspondência, que Euclides da Cunha procurou em vão a imagem que prolongasse na sua vida de adulto triste a da mãe morta quando ele tinha apenas três anos; e idealizada pelo órfão numa espécie de Nossa Senhora das suas dores de menino, das suas esperanças de adolescente, dos seus sonhos de adulto mal definido. Cuidou encontrar a imagem ideal na "República" - para ele e para o seu quixotismo quase pessoa, quase mulher, quase Dulcinéia: tanto que a confundiu com a figura de moça que mais o impressionou na mocidade. Mas a confusão durou pouco. A identificação do símbolo com uma figura particular de mulher não foi além do seu desejo. Nem era possível que esse sonho de homem romântico e talvez neurótico tivesse inteira realização.

Daí o narcisismo confundido com o apego à figura ideal de mulher que parece o ter acompanhado sempre: até em visões sob a forma de um "vulto branco de mulher" (Coelho Neto), de uma "dama branca" (Firmo Dutra), de uma mulher "de asas abertas, ora descerrando reposteiro escuro e pesado, em salão de luxo, vestida de túnica, ora envolvida em levíssimas vestes, toda de alvo, igualmente com asas, munida de trombeta e já agora numa espécie de bosque" (A. Pimenta da Cunha). Narcisismo, o seu, deformador de sua visão da natureza e dos homens dos sertões. Deformador, porém, no sentido de acentuar a realidade congenial. No sentido de estilizá-la. Deformador no sentido profundamente realista da arte só na aparência violentamente mórbida de El Greco.

Como tantos brasileiros do tempo do Império - o próprio imperador, talvez - e dos seus dias de homem feito - parece que o próprio Rio Branco - Euclides da Cunha foi um indivíduo que nunca se completou em adulto feliz ou em personalidade madura e integral, a quem a colaboração doce e inteligente, ou simplesmente a inspiração constante de uma mulher, tivesse acrescentado zonas de sensibilidade, de compreensão e de simpatia humana, que o homem sozinho não percorre senão angustiado; ou não percorre nunca.

É possível que do incompleto de sua vida tenha resultado o enriquecimento de sua obra e da nossa literatura, pela exploração e intensificação de zonas particularíssimas de sensibilidade e de compreensão da natureza e do homem tropical. Afinal, não é uma frase de efeito a que atribui à angústia, ou ao desajustamento do indivíduo ao meio, um singular poder criador. Aos homens de gênio como Robert Browning - que completado pela sua querida Ba foi o equilíbrio, a saúde, a alegria, a sociabilidade, a felicidade em pessoa - se opõem, mesmo fora do Brasil terrivelmente monossexual na sua formação, exemplos de indivíduos que produziram grandes obras à sombra de angústias enormes a eles impostas pela falta ou pelos erros de amor. Nos seus desajustamentos, como que se desenvolveram condições favoráveis à produção de obras intensas de arte, de ciência e de pensamento. Mas esses exemplos não nos devem fazer esquecer os daqueles que completos, integrais e felizes é que produziram grandes obras: obras de valor permanente e de significação universal. Esses são os grandes homens completos.

Euclides quase nada teve desses homens completos, bem equilibrados e saudáveis, de que Nabuco foi, no Brasil, uma expressão magnífica. O autor d'Os sertões foi um homem com uma grande dor, nem sempre disfarçada nas cartas aos amigos nem nos livros que escreveu. Retraído e calado, era um indivíduo triste para quem a vida tinha poucos encantos; a quem o mundo oferecia raras alegrias. Natural, portanto, que não gostasse de Nabuco: o Nabuco bonito, elegante, mundano, afrancesado, idéias e roupas à inglesa, que lhe parecia artificial tanto que numa de suas conversas com Oliveira Lima - dom Quixote gordo, com quem seu quixotismo de magro tinha tantas e tão profundas afinidades - comparou o autor de Minha formação a um "ator velho". Pelo menos a voz: voz de ator velho. Por sua vez Nabuco achava que Euclides como que escrevia com um cipó.

O brasileirismo intensamente concentrado, retorcido e agreste de Euclides da Cunha se apresenta melancolicamente incompleto em suas expansões e em suas afirmações. Ele foi o "celta", o brasileiro, o baiano raro que não riu: ou riu tão raramente que nunca o imaginamos rindo nem mesmo sorrindo. Ao contrário do brasileiro típico - isto é, o típico em cuja composição entrasse a quase totalidade dos subtipos regionais - não foi nenhum "homem cordial", de riso fácil e gestos camaradescos; nem nenhum guloso de mulheres bonitas ou simplesmente de mulheres, do gênero que se extremou em Maciel Monteiro e se vulgarizou em Pedro I, a quem as próprias molecas interessavam. Nem mesmo um simples guloso de doces, de bons-bocados, de quitutes feitos em casa. Varnhagen cozinheiro e Rio Branco regalão, curvados em mangas de camisa sobre alguma peixada à brasileira, devem lhe ter parecido ridículos. Varnhagen quituteiro - ridículo e até desprezível para a sua masculinidade convencional de he-man e para a sua temperança de caboclo ou "tapuio".

Teodoro Sampaio contou-me urna vez - por sinal que à sobremesa de um excelente jantar de peixe de coco em casa de Aníbal Fernandes, organizado e presidido pela artista ilustre do tempero e não apenas da pintura que é dona Fedora - que Euclides da Cunha era a tortura das donas-de-casa. Traço da personalidade do grande escritor que aquele seu mestre e amigo baiano já registrara em artigo na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (p. 253): "À mesa o Euclides era um torturado a quem as iguarias faziam mais medo do que as carabinas da jagunçada revolta. Comer fosse o que fosse era-lhe um tormento, por mais inocente que lhe parecesse a iguaria e isso notei-lhe sempre, antes como depois de sua visita a Canudos." E ainda: "Não tinha prazer à mesa, onde se assentava, de ordinário, conviva taciturno e desconfiado e neste estado de espírito tudo lhe servia de escusa aos obséquios e oferecimentos. - Que é que se há de oferecer a Euclides? Era a pergunta da dona da casa toda vez que se aguardava a visita do autor d'Os sertões. E o Euclides, a bem dizer, só se considerava tranqüilo à mesa, quando nada via de especial a se lhe oferecer."

Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas quedas-d'água dos rios de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclides da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica do centro de Goiás. Principalmente dos baianos - dos quais Euclides procedia, embora sua personalidade se enquadre menos no tipo regional do baiano do Recôncavo que no do sertanejo. "Raro na palestra se animava" - é a informação que nos dá, a esse respeito, Teodoro Sampaio, que acrescenta: "Não era verboso, nem álacre, nem causticante no discretear ordinário. Preferia pensar, refletir, ouvir antes que dizer, o que traía natural propensão mais para colher do que para dispartir as jóias do seu espírito."

Aqui se impõe um esclarecimento: causticante, Euclides da Cunha o era, e muito; parente, na mordacidade, daquele outro caboclo retraído mas bisbilhoteiro a seu jeito de songamonga, Capistrano de Abreu, do qual já se disse que se todas as suas cartas fossem publicadas dissolvia-se a Sociedade Capistrano de Abreu, Euclides foi às vezes terrível nessa outra forma de "discretear ordinário" que é a carta, a conversa, o gossip com o amigo distante, a correspondência. Que sirvam de amostra alguns trechos de cartas suas a Gastão da Cunha, conservadas no arquivo do diplomata mineiro, do qual Rodrigo M. F. de Andrade, em transcrições publicadas em 1926, n'O jornal, nos deixou entrever a natureza vulcânica. Esse pendor para o comentário vivo, às vezes agreste e até cruel às figuras do dia, não se manifesta sempre na correspondência de Euclides, da qual Venâncio Filho publicou recentemente, em livro, trechos interessantes. É nas cartas mais íntimas a amigos também causticantes - como Oliveira Lima e o já referido Gastão da Cunha - que o pendor de Euclides para aquela espécie de comentário ou de cavaco mais cru melhor se revela.

Como todo estudioso da formação brasileira, Euclides da Cunha teve de defrontar-se com a figura do missionário jesuíta e com a vasta obra de arquitetura social da Companhia de Jesus na América. Saliências da nossa história de uma sedução particular para quem tinha, como Euclides, a obsessão quase bizantina do escultural e, em arquitetura - material ou moral - o gosto dos arrojos verticais. E nesses arrojos o missionário jesuíta na América portuguesa excedeu ao colonizador. Quer nos seus planos, em parte realizados, de construção intelectual de elites e de segregação de indígenas dispersos, quer no sentido concretamente arquitetônico de edificações de pedra e cal, logo que lhes foi possível o emprego de material nobre no levantamento de igrejas e colégios.

No colonizador português o sentido de construção quase sempre se contentou com o "terrivelmente chato" da arquitetura "feia mas forte" das casas-grandes do interior e dos sobrados do litoral. Sentido que se exprimiu no horizontal monótono mas sólido que caracteriza as linhas da nossa chamada arquitetura colonial de preferência ao vertical dos palácios de Lima e das catedrais da América espanhola.

Não foi, entretanto, por influência dessas suas predisposições acentuadas para a admiração dos arrojos verticais de construção - quer no sentido real, quer no figurado - que Euclides se deixou "reconciliar" com a Companhia de Jesus, cuja história européia, lida talvez superficialmente, tanto lhe repugnara. E aqui nos surpreende o paradoxo que marca o humanismo do escritor a prevalecer sobre o seu verticalismo de geômetra: a "reconciliação" se operou através da figura lírica de Anchieta - o menos típico daqueles jesuítas dramáticos que enchem a história do Brasil de uma gravidade mais castelhana do que portuguesa. O menos dramático e o mais lírico. Foi entretanto o suficiente para que Euclides da Cunha descobrisse na Companhia de Jesus na América a negação maciça de sua ação na Europa, para ele repugnante nos aspectos políticos: "Incoerente e sombria, pregando, no século XVI, exageradamente, através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas intrigas - ela foi, na América, coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos do Evangelho." ("Anchieta", em Contrastes e confrontos, 3a ed., p. 128.)

O trecho é bem característico de Euclides da Cunha orador: passa de repente do tom quase maçônico de inimigo da companhia ao de panegirista da obra do jesuíta na América. Mas mesmo assim - repito - a generalização enfática nos deixa ver um Euclides superior, neste particular, em lucidez crítica, àqueles dois ensaístas seus contemporâneos - Joaquim Nabuco e Eduardo Prado - ainda mais que o autor d'Os sertões turvados, em algumas de suas páginas mais famosas de evocação do passado brasileiro, pela exaltação sentimental do missionário da S. J. ou pelo ardor apologético de entusiastas da companhia.

Há evidentemente nas páginas comovidas de Euclides sobre Anchieta o desejo de "fixar em bronze" - sempre o artista a querer pôr a estatuária simplificadora a serviço das complexidades da história ou da biografia - a figura enternecedoramente lírica do padre mestiço, que o escritor d'Os sertões - contra interpretações mais autorizadas e melhor documentadas - considerou típica dos ideais e da ação missionária dos inacianos no Brasil. E bem pouco do animo ou do espírito tranqüilamente crítico diante daqueles ideais e daquela ação em suas relações com o desenvolvimento do Brasil em nação mestiça e em cultura plural. Ânimo ou espírito de que se encontram melhores evidências noutros trabalhos do autor de A margem da história.

Não se compreenderia, aliás, dentro da crítica psicológica dos processos de acomodação de antagonismos sociais e de cultura (crítica que se mostra tão útil em completar a simplesmente histórica dos atos humanos), exceção tão considerável como a que Euclides sugere para a ação da companhia na América. Sociedade diversa na sua técnica de catequese e de política - uma na Europa, outra no Oriente, ainda outra na América - a Companhia de Jesus foi, e é ainda, por toda a parte, a mesma nos seus fins corajosamente militantes e agudamente combativos a favor de uma ortodoxia católica definida quase sempre a seu jeito pelos seus próprios e vigorosos teólogos; sempre a mesma, também, nos seus esforços de absorção de prestígio dentro e fora da Igreja. Esforços que no Brasil, como noutros países da América, levaram a companhia a conflitos com os governos, com o próprio rei, com os bispos, com as outras religiões ou ordens. E as "missões" ou "reduções", cuja sombra de obra monumental ainda hoje se projeta sobre a paisagem e a cultura do extremo Sul do Brasil, dificilmente podem ser apresentadas como exemplo de técnica persuasiva de evangelização e de método de assimilação lenta de uma cultura por outra.

Ao contrário: nelas se antecipou, do ponto de vista de pura experimentação sociológica de formas, a técnica moderna de sujeição por todos os meios - inclusive a reeducação da gente grande através das crianças - de grandes massas humanas a determinados modos de vida e a estilos improvisados de associação e de arte considerada social; de rápida arregimentação das massas em grupos operosos de artífices. Artífices quase sem tradições de grupo, por um lado, e sem espontaneidade individual na sua expressão artística e religiosa, por outro: a pessoa de cada um sacrificada ao interesse considerado geral; e esse interesse imposto quotidianamente ao todo pelos executores da ortodoxia sociológica desdobrada da teológica.

A "história dolorosa das reduções jesuíticas" a que se refere Euclides - tomando vicariamente por um instante as dores do indígena do qual ficou até hoje o grito romântico: "me mata mas não me reduz" - é, ainda, um capítulo a escrever na história antropológica dos primeiros contatos dos europeus com os ameríndios; e também um capítulo na história das grandes experiências sociológicas não só de economia como de cultura dirigida. E quando esse difícil capítulo da história da cristianização da América e da socialização do mundo moderno for escrito, é possível que se confirme a sugestão esboçada aqui: nas "reduções", os jesuítas se anteciparam em métodos de arregimentação de massas, empregados na civilização rápida de povos chamados naturais - métodos verdadeiramente admiráveis, na sua pureza técnica, como esforços de ordenação externa e até certo ponto interna da vida - a modernos experimentadores da Europa.

A atualidade da técnica dos jesuítas das "reduções" é vivíssima: na América eles tentaram há três séculos, com povos primitivos, o que agora se tenta na Europa com povos de cultura avançada. É certo que para Euclides da Cunha o resultado da obra jesuítica das "missões" ou "reduções" foi "matar", pelo menos, um povo: o paraguaio (À margem da história, p. 342). Conclusão que me parece tão exagerada quanto, no sentido contrário, aquela outra já citada: de que na América os jesuítas só fizeram seguir "a trajetória retilínea do bem", tendo sido todos uns Anchietas cândidos e seráficos.

Na história das grandes experiências sociais no sentido da planificação maciça da vida humana, os padres da companhia - repita-se - têm lugar de relevo entre os pioneiros, pela obra realizada na América com um vigor que muitas vezes contrariou o desenvolvimento do Brasil na nação mestiça e na cultura plural e democrática que é hoje: mas que foi, entretanto, obra monumental; e não só de destruição como de ordenação de vida. Mostraram aqueles padres - talvez mais "mágicos" do que "lógicos" - três séculos antes de Pareto, de Sorel, de Marx, o que se pode conseguir pela violência inteligentemente empregada e pela utilização de novos mitos, no sentido da despersonalização de homens e da sua socialização rápida. Uma experiência de enorme interesse para as ciências sociais. Pede um estudo à parte.

Vários críticos modernos, especializados no trato mais jornalístico do que científico de assuntos sociológicos e políticos, ao comentarem organizações atuais da Europa, não hesitam em filiá-las, talvez com precipitação, à tradição do método jesuítico de ação dissimulada e sinuosa, mas penetrante e eficaz (tradição limitada arbitrariamente por Euclides da Cunha à história européia da companhia): tal o caso de Elizabeth Wiskemann, em recente artigo no The spectator, de Londres (12 de janeiro de 1940), intitulado "The Jesuits to-day". E o professor Harold Laski, cujo nome reúne à responsabilidade de escritor a de mestre respeitado, em universidades inglesas e americanas, de direito público, no livro Communism (Home University Library, 1927), compara os comunistas russos, no seu uso alternado de persuasão e de força externa, com os jesuítas. Com os jesuítas na Espanha e com os jesuítas na América do Sul.

A verdade é que os S. J. na América do Sul não foram todos os homens cândidos da generalização de Euclides da Cunha, mas, vários deles, astutos e sutis; e alguns duros e até violentos. Dificilmente se imagina um Antônio Vieira - intrigante como ele só e tipo por excelência do "diplomata secreto", tantas vezes às voltas com hereges e em confabulações quase idílicas com judeus ricos de que o historiador João Lúcio de Azevedo pode surpreender traços interessantíssimos - dentro da classificação de "cândido misticismo". Nem era tão cândido o próprio Anchieta que desconhecesse a necessidade realisticamente pedagógica de empregar no trato com os índios do Brasil e na sua educação a palmatória ou a vara.

A ação da Companhia de Jesus na América colonial - e dizemos na América porque ela primou em ser transnacional, na América do Sul identificando-se de preferência, mas sempre de acordo com suas necessidades e aspirações, com o interesse espanhol, contrariando mais de uma vez o dos portugueses - é fenômeno diante do qual o estudioso ou o observador encontra hoje imensa dificuldade em conservar-se calma e objetivamente crítico. Nada mais ridículo nem mais irritantemente vulgar que a atitude dos que, em face da capacidade revelada pelo jesuíta, na América como na Europa e no Oriente, para levantar obras verdadeiramente monumentais, se fecham maçonicamente a toda admiração que o esforço extraordinário dos padres da companhia desperta. Mas no Brasil o extremo oposto é que tem prevalecido; de modo que o menor esboço de crítica à ação jesuítica entre nós - crítica histórica completada pela crítica psicológica - ou a menor tentativa de interpretação sociológica daquele esforço, ainda que simpática à companhia e até impregnada de admiração pelos seus grandes missionários, toma o ar de um ataque ou de uma oposição sistemática à S.J.

De Euclides da Cunha não se pode dizer que, no seu artigo cheio de ternura por Anchieta, nos tenha deixado um esboço sequer de interpretação crítica da Companhia de Jesus nas suas relações com o Brasil, com o ameríndio, com o mestiço, com o africano. Nada que se aproxime da análise iniciada por Gonçalves Dias, o indianista de quem o exagero indianófilo fez um agudo observador da ação jesuítica na América lusitana, sensível aos aspectos - geralmente esquecidos - da opressão do índio em algumas das "missões" e de sua artificialização em cristãos in vácuo.

Análise esboçada na obra em que o poeta maranhense revelou cultura científica ao lado de uns começos de humanismo sociológico e de um brasileirismo amplamente cultural - e não apenas político ou estreitamente cívico - surpreendentes para a época. Dentro de semelhante orientação, teria de encontrar, como de fato encontrou, aspectos da obra jesuítica em conflito com os interesses autenticamente brasileiros de organização social democrática e de cultura pluralista.

É pena que justamente o manuscrito do estudo especializado de Gonçalves Dias sobre os jesuítas no Brasil tenha desaparecido. Mas o que nos deixou a respeito daqueles missionários e de suas relações com os indígenas é fortemente sugestivo. O maranhense se antecedeu a Euclides na fixação de pontos de partida importantes para o estudo do pluralismo cultural brasileiro, cujo inicio o jesuíta, com seus planos de segregação de uma raça inteira para seu aperfeiçoamento em devotos da companhia, contrariou poderosamente, ainda que sob a influência de boas e piedosas intenções evangélicas .

Logicamente é quem devia ter continuado o trabalho de Gonçalves Dias, sobre as relações dos missionários com os indígenas: Euclides da Cunha. O trabalho de Gonçalves Dias e o de Couto de Magalhães. Não o continuou. Deixou-nos, apenas, sobre o assunto, alguns reparos críticos de rara lucidez, entre generalizações perigosamente enfáticas. Não digo reparos de absoluta objetividade porque Euclides da Cunha tinha o seu ponto de vista: o da formação brasileira. E o ponto de vista é, num estudioso de assunto histórico - social, aquele "aspecto subjetivo" da definição de Farris da personalidade com relação à cultura.

A história da Companhia de Jesus no Brasil não se fará nunca, sem que à obra de um padre Serafim Leite - notável pela abundância de sua documentação, reunida, selecionada e interpretada do ponto de vista jesuítico - corresponda o alongamento e o aprofundamento dos estudos de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães e João Lúcio de Azevedo. Entre esses estudos, as páginas de Euclides ligadas ao assunto vivem pela intensidade do "são brasileirismo" que as anima. "São brasileirismo" creio que para o criador da expressão - Sílvio Romero - terá incluído "espírito crítico"; e este nem nas páginas mais subjetivas, pessoais e nacionalistas do autor d 'Os sertões, desaparece de todo. É o que explica o fato do enternecimento pela figura de Anchieta não ter feito dele o louvador sem discriminação nem reserva do jesuíta na América que foi Eduardo Prado.

Aliás, a própria atitude dos que hoje se aproximam do assunto do ponto de vista jesuítico mas com espírito crítico e, tanto quanto possível, científico - o caso do erudito autêntico que é o padre Serafim Leite - já se vai tornando, em Portugal e no Brasil, aquela atitude de discriminação característica de toda análise de história social orientada cientificamente. Digo em Portugal e no Brasil, porque noutros países semelhante atitude já não é novidade nenhuma entre os padres que se ocupam com seriedade de assuntos históricos; e em 1933 um ilustre jesuíta, o padre H. Heras, estudioso da história da companhia na Índia, pôde escrever, em resposta a críticas do historiador Bóies Penrose aos métodos de conversão empregados pelos S. J. no Oriente - críticas que constam da introdução escrita por Penrose a documentos do século XVII reunidos no livro Sea fights in the East Indies in the years 1602-1639 (Harvard University Press, 1931) - palavras que aqui soariam escandalosas: "O autor é ele próprio jesuíta, mas o primeiro a reconhecer os defeitos dos seus confrades, desde que bem sabe que embora todos eles se esforcem para adquirir santidade, nem todos são santos, e conseqüentemente podem errar e têm efetivamente errado em muitas ocasiões." Palavras que no original inglês se encontram à página 2 da introdução do padre Heras ao seu ensaio The conversion policy of the Jesuits in Índia (Bombaim, 1933). Fixam uma atitude que é hoje, entre nós, brasileiros e portugueses, a do padre Serafim Leite; mas ele quase sozinho entre os jesuítas brasileiros, portugueses e indianos; e, principalmente, entre os seus apologistas leigos menos letrados, constituídos numa espécie de seita que um malicioso já chamou de afro-brasileira, tal o seu simplismo intelectual. São extremistas que pretendem fazer do passado da companhia na América história sagrada, da qual só se possa e se deva dizer bem.

Euclides da Cunha, pelos seus reparos à ação dos jesuítas, não só na Europa como na América, é dos que os expoentes de semelhante extremismo - se lhe conhecessem bem a obra - colocariam entre os "inimigos da Igreja" e até do Cristo. Não porque faltasse a Euclides admiração pelo esforço dos jesuítas; mas porque essa admiração não foi absoluta. Quando a verdade parece ser que Cristo teria aprovado antes a política de contemporização com as culturas indígenas dos portugueses na América e dos próprios jesuítas no Oriente - política de que resultou, no continente americano, o Brasil vasto, pluralista e democrático de hoje - do que a de segregação, dos mesmos jesuítas - no Paraguai, nos Sete Povos e no Grão Pará - e da qual, evidentemente, não teria resultado o Brasil nosso conhecido . Quando muito alguns Brasis isolados, uns inimigos dos outros. Aqui entra o subjetivismo brasileirista na interpretação da história da companhia e da história do Brasil. Desse subjetivismo a obra de Euclides está impregnada.

Dentro desse subjetivismo de brasileiro, mas, ao mesmo tempo, com objetividade na análise particular de assuntos sociais, é que Euclides da Cunha dedicou tão grande atenção ao problema da terra e do homem do Brasil. Ora temendo a incapacidade do mestiço para progredir dentro dos padrões de progresso da nossa época e num meio físico como o do Brasil tropical - meio quase tão hostil ao mestiço e ao próprio indígena quanto ao branco pela "copiosa exuberância de vida vegetal".... "favorecida por um ambiente impróprio à existência humana"; ora otimista e desanuviado de "temores vãos", proclamando as virtudes - até contra possíveis tentativas de ocupação militar do país - dos "destemerosos sertanejos dos estados do Norte, que há vinte anos estão transfigurando a Amazônia" ("Contra os caucheiros", Contrastes e confrontos, p. 233) e apontando ao Brasil a necessidade da "redenção maravilhosa dos territórios", pelo emprego, por nós próprios e numa obra que se poderia chamar hoje de autocolonização, das técnicas desenvolvidas nos trópicos pelos povos imperialistas em "milagres" - a expressão é de Euclides - "da engenharia e da biologia industrial". ("Plano de uma cruzada", Contrastes e confrontos, p . 177)

Poderia ter acrescentado - da higiene, da administração, da saúde pública, da medicina social. Que tudo isso pode e deve ser mobilizado a favor da redenção dos territórios e dos povos considerados inferiores de modo absoluto quando sua inferioridade é afinal relativa. Redenção, no caso dos nossos territórios e das nossas populações indígenas e mestiças mais desprezadas, não só de largo sentido humano, cultural e social, mas brasileiro.

Este último sentido nunca faltou ao engenheiro social animado de ideal político que foi Euclides da Cunha. Para ele, a assistência àquelas populações e a redenção daqueles territórios não eram obras inspiradas numa vaga piedade humana, por um lado, nem numa mística de progresso material ou de tecnicismo puro, por outro. Quando se refere, por exemplo, à região entre o Madeira e o Javari como "remotíssimo trecho da Amazônia onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas" nem o que chama "a absorvente atividade meio evangelizadora, meio comercial dos jesuítas" ("Entre o Madeira e o Javari", Contrastes e confrontos, p. 234), trecho de território brasileiro agitado depois - nos últimos trinta anos do século XIX - por "vertiginoso progresso", é para salientar a necessidade da engenharia e da técnica serem utilizadas a favor da unidade brasileira, não deixando o Brasil zonas como aquela, remotas mas progressistas, isoladas do resto do país: acabariam destacando-se de nós. A preocupação brasileira. O ponto de vista brasileiro. O sentido brasileiro dos problemas de geografia e de sociologia. A mística da unidade brasileira a inundá-lo de uma ternura especial pelo indígena, pelo caboclo, pelo nativo, pelo Amazonas, pelo Acre, pelo Ceará, por Anchieta, por Diogo Antônio Feijó, por Floriano Peixoto, pela viação férrea, pelo telégrafo, pelo barão do Rio Branco. Brasileirismo que foi o principal "aspecto subjetivo" da obra de Euclides da Cunha: a marca mais forte de sua personalidade em relação com a cultura científica e técnica do seu tempo e com a academicamente humanista e aristotélica ou platônica do passado, pelo qual se alongou sua análise de estudioso de problemas sociais.

O seu socialismo não o desprendeu do Brasil. Não foi nunca, é certo, um nacionalista estreito. Mas não seguiu o conselho daquele espanhol, adepto do amor livre, que recomendava às novas gerações a adoção dessa e de outras liberdades mais ou menos sedutoras: mas pelas filhas dos outros; não pelas suas. Atitude muito de certos teóricos do socialismo, por um lado, e do cientificismo, sociológico e histórico, por outro: recomendam a objetividade absoluta aos outros - principalmente aos literatos dos países pequenos. Eles, porém, conservam-se terrivelmente subjetivistas com relação às suas poderosas pátrias ou semipátrias; ou aos seus sistemas ideológicos ou semi-ideológicos.

2. Revelador da realidade brasileira

De Euclides da Cunha se pode hoje afirmar que é um dos escritores brasileiros que maior influência vêm exercendo sobre a gente do seu país e maior atenção da parte de estrangeiros vêm atraindo para a cultura, em geral, e para as letras, em particular, de um ainda obscuro Brasil. Dois seriam hoje seus rivais, mais nessa espécie de influência do que nesse poder de sedução sobre estrangeiros: José de Alencar e Machado de Assis. Ambos menos carismáticos que o autor d'Os sertões. O que é certo também dos poetas nacionais que até hoje têm alcançado maior irradiação dentro e fora do Brasil: nenhum deles parece igualar o estranho ensaísta em carisma ou o exceder em influência.

É difícil de explicar a constância dessa influência de Euclides. Difícil de explicar a irradiação do carisma ou do quase-carisma que vem assinalando a presença de Euclides da Cunha tanto na vida como nas letras do nosso país. Pois se há escritor brasileiro de quem se possa dizer que é carismático, esse escritor é o autor d'Os sertões: artista difícil, como nenhum, de ser separado da sua condição de homem e da sua especialidade de técnico. Seu perfil anguloso de homem terrivelmente magro emerge há anos das ilustrações dos compêndios de literatura brasileira com alguma coisa de ascético e de profético a acentuar-lhe o prestígio e a marcar-lhe a sedução que suas letras e o drama da sua vida e a tragédia da sua morte vêm exercendo sobre a imaginação de já mais de duas gerações de brasileiros; e, ultimamente, até sobre estrangeiros voltados para literaturas exóticas do sabor ainda indefinido da brasileira.

Entretanto, é escritor difícil, este: ouriçado de adjetivos que antes o afastam que o aproximam do leitor moderno. Difícil e arrevesado. Discípulo, a seu modo, do Gracián que foi o ibero até hoje de maior influência sobre os pensadores germânicos, chega às vezes a um preciosismo que quase se confunde com o dos escritores além de cientificistas, pedantes: de um cientificismo pedante e irritante.

A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. Transpôs para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu num estilo não só barroco - esplendidamente barroco - como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico. Que o teriam tornado outro Coelho Neto.

É um escritor cujo gosto, sem ser o convencionalmente bom, dos clássicos medidos e claros, nos dá a idéia de estar sempre em perigo: o perigo de tornar-se absolutamente mau. Mau segundo todos os padrões: os clássicos e os anticlássicos. Apenas esse risco nunca se realiza de todo. Nunca passa inteiramente de risco à desgraça literária. O autor d 'Os sertões nunca chega a ser catastrófico em seus colapsos de má eloqüência. Euclides da Cunha não nos desaponta em momento algum com uma só expressão de inconfundível mau gosto; ou de indiscutível preciosismo; ou de absoluto gongorismo. O que nele é freqüente é o gosto duvidoso, ambíguo e, por conseguinte, discutível.

Talvez por aí se explique a sedução ou o encanto com que ele vem há mais de meio século envolvendo tanto o leitor brasileiro de elite - que se inquieta com aqueles riscos mas se regozija com o quase constante triunfo do autor d 'Os sertões sobre os inimigos das suas virtudes literárias - como o leitor simplesmente atraído pelo que há de menos nobre nos jogos estilísticos do verbo às vezes quase execravelmente oratório do grande escritor; na sua eloqüência por vezes enfática; na sua adjetivação quase sempre crespa, estridente, mais aguda do que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrências de efeitos teatralmente musicais.

Euclides foi escritor que escreveu quase sempre declamando: às vezes declamando tão alto que se tornou uma espécie de Hall Caine - o Hall Caine de quem dizia Oscar Wilde que falava tão alto que não se fazia entender direito: era apenas ouvido. Ouvido, Euclides vem sendo há mais de cinqüenta anos por muitos dos que o vêm lendo; entendido por outros tantos; admirado por quase todos. Pois é escritor dos que, mesmo quando não são plenamente entendidos, são agradáveis de ser ouvidos através do que escrevem. Escritores nascidos com boa voz. Nascidos escritores sonoros e que potentemente sonoros se consservam, mesmo quando suas mensagens perdem a potência intelectual.

Carlyle foi escritor desse feitio, e sua voz ainda hoje é ouvida com entusiasmo por muitos dos que o lêem. Macaulay, também. E, em língua francesa é não só o caso extremo de um Victor Hugo ou de um Chateaubriand como, sobretudo, o de um superior Jean-Jacques Rousseau, cujas próprias e pungentes confissões nos chegam aos olhos, ferindo-nos os ouvidos de modo tão saborosamente persuasivo que perdoamos sem esforço ao pecador os pecados que confessa em voz tão bela e em palavras tão lúcidas.

Euclides da Cunha não nos confessou em página alguma os próprios pecados: denuncia com voz às vezes bíblica e de profeta mais do Velho que do Novo Testamento - os crimes de alguns dos - brasileiros, seus contemporâneos; e opressões, a seu ver, sofridas de seus próprios patrícios por outros brasileiros, com os quais se identificou de algum modo o escritor um tanto quixotesco em seus rasgos empáticos. É que tendo se sentido vítima ou mártir, ele próprio, da elite política, social, econômica, literária, dominante na jovem República de 1889, fácil foi a Euclides identificar esse seu personalíssimo sentimento com o dos sertanejos da Bahia revoltados contra a civilização do litoral. Revolta justa, segundo ele. Tanto que para justificá-la chegou ao extremo de diminuir as virtudes dos militares da República.

E certo de terem sido os sertanejos de Canudos vítimas ou mártires de uma elite desorientada-a dos homens do litoral - é que Euclides da Cunha escreveu suas páginas mais vibrantes de revelação de um Brasil - o sertanejo - quase ignorado pelos próprios brasileiros: os da capital federal, os de São Paulo, os de Salvador, os do Recife, os de Porto Alegre, os de Belém.

Precisamente a propósito de Canudos, apareceu em 1958, no Rio de Janeiro, uma "análise reivindicatória da campanha de Canudos", intitulada A verdade sobre "Os sertões" que talvez deva ser considerada, em vários pontos, retificação essencial à parte não só convencionalmente histórica como sociologicamente interpretativa da obra máxima de Euclides. É um livro em que o sr. Dante de Melo considera a ação do Exército de Canudos de modo um tanto diferente do que levou Euclides da Cunha a escrever o seu grande livro-protesto .

E possível que o novo ensaio seja mais reivindicatório do que analítico. Nem por isto deixa de ser obra interessante e necessária: sobretudo nas páginas em que procura restituir aos seus exatos relevos fatos que a retórica vem desfigurando há anos. Pois não há dúvida de que o livro-protesto de Euclides concorreu para que a glorificação do sertanejo se consolidasse entre nós à custa de excessivo desapreço pelo homem do litoral: inclusive o simples, porém bravo, soldado do Exército. Talvez exagere o autor da "análise reivindicatória" ao escrever do Exército que foi "a entidade mais honesta e mais sacrificada na luta", isto é, na "guerra de Canudos". Mas parece certo ter o mau estadualismo, inaugurado no Brasil pela República de 1889, criado uma situação desfavorável à ação do Exército - que era uma ação federal, nacional, supra-estadual - e favorável a insurgentes cujo desenvolvimento em força quase-política se verificou em grande parte em conseqüência daquele estadualismo.

O sr. Vítor Nunes Leal - jurista brasileiro dedicado à análise de problemas nacionais de sociologia política - talvez devesse ter estendido seu estudo do fenômeno republicano do "coronelismo" ao episódio de Canudos onde Maciel, a despeito do seu monarquismo, parece ter sido uma das primeiras criações do estadualismo republicano. Estadualismo que foi tornando necessário aos governadores dos estados se apoiarem em "coronéis" ou equivalentes de "coronéis", fortes e privilegiados.

Sendo assim, o Exército teria sido de algum modo vítima, em Canudos, do próprio Exército: do Exército criador da República perigosamente estadualista de 1889. É um aspecto político do problema que não vem destacado naquele sugestivo livro sobre Canudos; e que está a exigir a atenção de um moderno homem de estudo que se especialize na análise do aspecto político do chamado "drama sertanejo". Drama em que parece ter explodido, além de um conflito entre culturas sub-regionais, semelhante ao do Pedra Bonita, um terrível desajustamento dentro do recém-inaugurado sistema de relações políticas dos novos estados com o poder central.

Desse aspecto de sociologia política do problema de Canudos não cuidou Euclides sem que, entretanto, se possa dizer do seu livro que pelos exageros e pelas omissões deixe de ter valor sociológico para apresentar-se como simples obra-prima de jornalismo literário. A verdade é que é livro complexo: notável como literatura e notável como ciência: ciência ecológica e ciência antropológica e até sociológica. Mas sobretudo obra de literatura. Obra de revelação .

Revelação, acentue-se bem; e não simples descrição. Só o escritor com alguma coisa de poético no seu modo de ser escritor é capaz de revelar de uma paisagem ou de uma época, de uma sociedade ou de uma personalidade complexa, os seus característicos profundos e os seus traços decisivos. Os puros cientistas não vão além da descrição - quantitativa, matemática, estática - quando muito completada pela explicação, de qualquer dessas realidades. Só um escritor daquele tipo mais alto, de que Gracián foi até hoje uma das expressões mais vigorosamente sutis - o vigor ibérico acrescentado de argúcia jesuítica - consegue, além de revelar, interpretar o complexo que qualquer dessas realidades contenha. Dentre os modernos, só um Hudson que escreva Green mansions. Ou um Joyce que se reconstitua em Stephen. Ou um Proust que escreva A la recherche du temps perdu. Ou um Mann que interprete o drama de um adolescente. Ou um Strachey que ressuscite a rainha Vitória. Ou um Ganivet que evoque Granada la bella. Escritores ao mesmo tempo líricos e analíticos: combinação raríssima em qualquer língua ou em qualquer literatura.

Vários foram os brasileiros da época de Euclides da Cunha que descreveram e até explicaram, alguns já se servindo de números e estatísticas, aspectos importantes da realidade brasileira em obras de considerável valor científico: Couto de Magalhães, Nina Rodrigues, Sílvio Romero, José Veríssimo, o visconde de Taunay, Teodoro Sampaio, o barão do Rio Branco, Clóvis Beviláqua, Martins Júnior. O que destacou de modo tão vigoroso a literatura de Euclides da classes outros brasileiros, homens de estudo, sobre temas rasgadamente nacionais - e até da própria literatura semi-sociológica de .Joaquim Nabuco, de Eduardo Prado, de Oliveira Lima e de Graça Aranha: quase-sociólogos, notáveis não só pela sua quase-sociologia como pelas suas virtudes literárias de expressão - foi o caráter de obras não apenas descritivas, ou somente evocativas, mas de revelação e de interpretação do Brasil, dos ensaios que escreveu o autor de Os sertões. Não só Os sertões como Contrastes e confrontos, À margem da história. Ensaios de quem se aproximou de temas brasileiros com espírito científico e com preparação técnica: a própria e a de amigos que foram eminências pardas do escritor absorvente, em relação com alguns aspectos mais turvos daqueles mesmos temas. Mas não só com esse espírito nem apenas com essa preparação: também com o gênio capaz de revelar dos assuntos analisados seus traços mais significativos. - Que nessa obra de revelação é que se define o autêntico, o genuíno, o grande escritor; nela é que se afirma sua superioridade sobre os puros especialistas, por mais perfeitos na sua ciência; ou sobre os puros técnicos, por mais exaustivos, no seu saber apenas empírico do assunto versado.

Vários são hoje, na Espanha, os filólogos especializados magistralmente no conhecimento técnico e no saber científico da língua espanhola. Vários os arabistas espanhóis Vários os orientalistas. Mas a um tempo especialista no seu saber de filólogo e generalista no seu domínio sobre assuntos ibéricos de cultura, só um Américo Castro nos vem revelando dessa língua, nem sempre latina no seu espírito, formas de expressão em que a cultura árabe e a cultura israelita se juntam hoje quase em segredo, como se ainda se escondessem mourisca e israelitamente dos dominicanos da Inquisição para animar a mais moderna cultura hispânica de possibilidades, únicas em cultura européia, de comunicação com algumas das emergentes ou ressurgentes culturas extra-européias, em rápida e surpreendente ascensão no mundo dos nossos dias: um mundo de tal modo diverso do de há um século - o de exclusivo e imperial domínio da civilização européia sobre as demais civilizações - que e quase uma negação do seu antecessor.

Foi dessa espécie de obra de revelação que Euclides da Cunha - também especialista no seu saber de engenheiro aplicado ao estudo ou ao conhecimento de problemas brasileiros mas generalista no seu domínio sobre assuntos nacionais de cultura - realizou de modo genial. Revelação dos sertões aos brasileiros do litoral e revelação do Brasil a estrangeiros por este ou por aquele motivo curiosos a respeito do nosso país, e nem sempre satisfeitos com as respostas, à sua curiosidade, dos geólogos, dos geógrafos, dos economistas, dos historiadores, dos sociólogos, dos juristas; ou das estatísticas, dos mapas, dos diagramas.

Daí o triunfo alcançado em meios cultos do estrangeiro pelo livro revelador do Brasil que Euclides da Cunha escreveu, a propósito do drama de Canudos, como quem se definisse escritor mais de dentro para fora do que de fora para dentro do assunto versado no seu ensaio. Do assunto - um assunto teluricamente brasileiro - ele deixou de tal modo se impregnar, não apenas por simpatia, mas, por empatia profunda, que conseguiu comunicar essa sua identificação empática com o seu tema, ao próprio leitor estrangeiro. Pelo menos ao leitor em língua inglesa e ao leitor em língua espanhola d ' Os sertões. São línguas em que não há exagero em dizer-se que o leitor estrangeiro, a despeito do cientificismo por vezes arrevesado de livro tão diferente do comum dos livros, vem tomando conhecimento mais íntimo de uma literatura especificamente brasileira, que através de quantos outros livros de brasileiros, sobre temas nacionais, têm sido publicados em idiomas europeus: os de José de Alencar, os de Joaquim Nabuco, os de Machado de Assis, os de Rui Barbosa, os do visconde de Taunay, os de Graça Aranha, os de Mário de Andrade, os de José Lins do Rego, os de Jorge Amado, os de Érico Veríssimo. E a razão parece a alguns de nós ser principalmente esta: é um livro, a obra-prima de Euclides, em que o autor brasileiro não temeu ofender o leitor europeu com o seu tropicalismo; ou picá-lo com o seu brasileirismo. Ao contrário: ostentou-o. Exibiu-o quase escandalosamente. Não se fingiu de inglês, como, de certo modo, o apolíneo Machado de Assis; nem de francês, como até certo ponto o igualmente apolíneo Joaquim Nabuco, que até a um francês de longa experiência literária de Faguet enganou com as sutilezas de Pensées détachées.

Euclides da Cunha esplende de tropicalismo; arde de brasileirismo. É dionisíaco e até exuberante no seu modo de interpretar-se e de interpretar o Brasil aos olhos de outros brasileiros e aos olhos de estrangeiros voltados para o Brasil.

Compreende-se que, assim dionisíaco, tenha escandalizado não só puristas como um apolíneo da cabeça aos pés como foi, se não na mocidade, na idade provecta, Joaquim Nabuco, a quem os livros de Euclides teriam dado a impressão de escritos rudemente, agrestemente, com um cipó. Mas compreende-se, por outro lado, que essa literatura agrestemente brasileira tenha dado a europeus menos convencionais que tais quase-europeus ou subeuropeus nos seus gostos literários, a aventura de uma nova conquista de paladar: aventura dificilmente encontrada pelos mesmos europeus nos romances brasileiros de um Machado ou de um Graça Aranha ou de um visconde de Taunay. Romances nos quais vários desses europeus, em vez de novos sabores, têm candidamente confessado a amigos brasileiros haver encontrado apenas sabores já seus velhos conhecidos, com um ou outro salpico de tempero exótico. A verdade é que o tempero brasileiro é às vezes mais forte do que se pensa em alguns dos romances e, sobretudo, nos melhores contos de Machado. Mas são de uma força de tal modo sutil que às vezes desaparecem quase de todo nas traduções ao francês e ao inglês daquelas obras-primas brasileiras. Destino que dificilmente podem ter as cruezas tropicais e os ardores brasileiros de Euclides - do seu verbo eloqüente e das suas técnicas expressionistas de arte literária. São cruezas que se projetam nas próprias traduções, provocando arrepios e até repulsas da parte do europeu mais cartesiano, ou mais renaniano; mas acabando por se imporem ao paladar literário desses sofisticados como aventuras que lhes trouxessem novas sensações do mundo e novas visões do homem, através de uma arte literária diferente da européia; com outro ritmo; com outras sugestões de doçura dentro de outras sugestões de violência: as contraditórias sugestões de doçura e de violência que Euclides soube estilizar, encontrando-as tanto na natureza dos ambientes como no homem das terras quentes e tropicais mais do seu gosto: as regiões amazônicas, e as áridas ou sertanejas do Brasil.

Quem lê os ensaios de Euclides da Cunha não precisa buscar um autor que se escondesse naquela niebla de ausencia de que fala, em página recente, um crítico de língua espanhola a propósito de certo escritor sul-americano do tipo do brasileiro Machado. Euclides pertence ao número de autores que não se deixam buscar ou procurar pelo leitor: vêm ao seu encontro. Apresentam-se. Exibem-se. Nenhum escritor de língua portuguesa mais presente na sua literatura do que ele. Nenhum mais ostensivo na sua presença. Seu próprio brasileirismo, por vezes enfático, talvez fosse uma expressão do que o autor julgava ser, em si mesmo, presença ameríndia: tapuia. Admitia que fosse um "tapuio" modificado por outras presenças - pela "grega" e pela "celta". Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor com alguma coisa de não-europeu e até de antieuropeu em sua visão do ambiente nativo e em sua expressão ou em sua interpretação desse ambiente. Não só escritor: homem público. Daí seu nacionalismo ou, antes, brasileirismo: um brasileirismo difícil de ser separado do seu indigenismo. Era nos "admiráveis caboclos do Norte", por exemplo, que ele via o futuro da Amazônia brasileira: caboclos capazes de sobrepujarem "pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação e pelo garbo no se afoitarem com os perigos" quantos estrangeiros tentassem se estabelecer em terras de seringais. O que era preciso era que o "engenheiro" - Euclides era engenheiro, além de "caboclo" - amparasse, sob o comando de um governo consciente da sua missão, aqueles bravos, na sua obra de integração da Amazônia no conjunto nacional brasileiro; e os amparasse pondo-os em intimidade permanente com o resto do país "através de comunicações fáceis": além de estradas de ferro, "a aliança das idéias, de pronto transmitidas e traçadas na inervação vibrante dos telégrafos". É a mensagem sociológica que nos transmite o seu ensaio "Entre o Madeira e o Javari", incluído no livro Contrastes e confrontos (Porto, 1913).

O Euclides da Cunha preocupado com o futuro brasileiro da Amazônia era o mesmo Euclides da Cunha em quem o drama de Canudos despertara o mais intenso dos brasileirismos, reclamando dele um esforço construtivamente nacionalista em que ao "espírito caboclo" juntou-se a formação de engenheiro e a preocupação do sociólogo. Ou do ecologista social. Esses três aspectos da personalidade do autor d'Os sertões foram os aspectos básicos de sua ação: sua literatura está quase toda animada por estas três presenças. Ele nunca se contentou em ser nem beletrista nem subeuropeu: o escritor, em Euclides, incluiu sempre o engenheiro e implicou sempre viva e até vibrante solidariedade do autor com o indígena do Brasil. Com o caboclo. Com o "tapuio": um "tapuio" que dentro dele se conciliasse com o "celta" e com o "grego".

Compreende-se assim que o tenham entusiasmado aquelas páginas do primeiro Roosevelt nas quais o vigoroso político, misto, segundo Euclides, de rough rider e de quaker, fez o elogio das civilizações autênticas; e combateu as de empréstimo:

Essa espécie de regimen colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrante virtual, vivendo, estéril. no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo.

Para nós, brasileiros - pensava Euclides - é que pareciam feitas aquelas palavras porque

entre nós é que se faz mister repetir longamente e monotonamente, mesmo, que mais vale ser um original do que uma cópia... e que o brasileiro de primeira mão, simplesmente brasileiro, malgrado a modéstia do título, vale cinqüenta vezes mais do que ser a cópia de segunda classe, ou servil oleografia, de um francês ou de um inglês.

E outra de suas mensagens sociológicas que nos transmite aquele seu livro de pequenos mas vibrantes ensaios.

Nesse seu elogio ao primeiro Roosevelt, Euclides da Cunha como que resumiu o seu credo de brasileiro, inseparável do seu credo de escritor: o que ele desejava para o seu país era um Brasil corajoso de suas originalidades caboclas, mesmo modestas, que se realizassem mercê de modernas técnicas de engenharia que o Estado pusesse a serviço do desenvolvimento nacional; o que ele desejava para si próprio, Euclides da Cunha, era a coragem de desenvolver-se, em escritor diferente dos europeus: consciente de sua condição de "caboclo" - embora sem desprender-se da de "celta" e da de "grego"; capaz de juntar para proveito do Brasil, à sua literatura, sua engenharia; observador do Brasil, através do que fosse "empírico" no seu conhecimento sociológico da realidade brasileira, como "os arquitetos" das "fórmulas empíricas da resistência dos materiais". Assim se conformaria ele, por um lado, com os modernos triunfos da ciência empírica; por outro, com as melhores tradições, senão literárias, dinâmicas, da gente do seu e nosso país, certo como lhe parecia que "os nossos melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores da terra" os que "engenharam" - note-se o verbo caracteristicamente, narcisistamente, euclidiano - "as melhores leis e as cumpriram", "os homens de energia ativa e de coração que definiram com mais brilho a nossa robustez e o nosso espírito - todos sentiram, pensaram e agiram principalmente como brasileiros". É o que se lê num dos mais expressivos dos seus pequenos ensaios reunidos em Contrastes e confrontos: "O ideal americano" - apologia de quantos brasileiros antigos souberam engenhar brasileiramente o Brasil.

Assim agiram, sentiram e pensaram os próprios construtores daquela civilização patriarcal agrária e escravocrática que deu ao nosso país valores e originalidades que Euclides da Cunha - entusiasta sobretudo de bandeirantes e sertanejos - nunca demorou-se em apreciar ou admirar: viu-as apenas de soslaio. Noutro dos seus ensaios - "Entre as ruínas" - fixou a tristeza das ruínas dessa civilização, antes sedentária que andeja, sem muita simpatia pela "arquitetura terrivelmente chata" das casas-grandes de fazendas e dos engenhos antigos. Mas de qualquer modo, reconhecendo:

...malgrado o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares e amplas, sobranceando as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os casebres de agregados, e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos de pedra, que lhes sustentam os planos unidos dos terrenos, conservam o antigo aspecto senhoril.

Nenhuma palavra de lamentação para o desaparecimento da gente senhoril e da população servil que animaram solares; e que animando-as, criaram, mais que os bandeirantes, um Brasil autêntico em profundidade. Só o registro da decadência do agregado:

O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados, que lhe formam a linhagem obscura e heróica... uma ruína maior por cima daquela ruinaria da terra.

Só o registro da decadência do caboclo das fazendas: simples comparsa de um drama que teve por personagens decisivos os senhores brancos e os escravos de cor. Por onde se confirma - um exemplo dentre vários - que foi constante, em Euclides, o afã de idealizar e romantizar o indígena; o ameríndio; o caboclo - isto é, o brasileiro mais próximo do escritor; mais seu irmão; mais do seu sangue, e mais da sua terra. Do mesmo modo que foi constante nele o critério de caracterizar paisagens, reduzindo-as não só a expressões de "resistência de materiais" - um critério de engenheiro - como a manifestações de violência do homem contra a natureza: um critério dc ecologista. Ecologista, engenheiro e caboclo repita-se que são presenças constantes no escritor Euclides da Cunha: nos seus temas; nas suas visões de terras e de populações brasileiras; no seu estilo. No seu famoso estilo cuja originalidade parece decorrer, em grande parte, da fusão desses três homens num só escritor: fusão que pela primeira vez aconteceu nas letras brasileiras realizada pelo autor d'Os sertões.

Não que antes dele não tivesse havido no Brasil quem procurasse pôr a engenharia a serviço do desenvolvimento nacional: foi no mais que se empenharam engenheiros como Rohan, Rebouças, Monteiro Tourinho, Pimenta Bueno, Buarque de Macedo, Bicalho, Pereira Passos, os dois Mamede. Nem escritor animado do afã de valorizar o indígena: José Bonifácio - foi o primeiro de uma série de indigenistas notáveis -, José de Alencar, Gonçalves Dias, Couto de Magalhães. Nem ecologista preocupado em harmonizar o brasileiro com a natureza do interior do Brasil: a Alexandre Rodrigues Ferreira se sucederam Azevedo Pimentel, Luís Cruls, Teodoro Sampaio. Eram, porém, afãs separados e da parte de homens de vocações diferentes. Em Euclides da Cunha esses afãs se uniram pela primeira vez dentro de um escritor de forte gênio verbal; e que foi, ao mesmo tempo, indigenista, engenheirista e ecologista nas suas principais constantes de sentimento, de pensamento e de ação. Dessa fusão resultou não só uma obra singular nas letras brasileiras como um estilo também novo, em língua portuguesa, por ter se desenvolvido como expressão de um novo tipo de personalidade criadora: uma personalidade complexa, na qual ao gosto pelos temas telúricos se juntava o entusiasmo pelas soluções técnicas as mais arrojadamente modernas.

De modo que é uma presença, a de Euclides da Cunha na vida e nas letras brasileiras, que inclui - repita-se - a presença de três homens diversos, mas, no seu caso, complementares, fundidos ou reunidos num só e grande escritor. Daí ser uma influência, a sua, que, complexa como é, talvez exceda em importância, em extensão e mesmo em profundidade a de qualquer outro intelectual brasileiro - sem nos deslembrarmos nem de José de Alencar nem de Machado de Assis; nem de Rui Barbosa nem de Joaquim Nabuco; nem de Gonçalves Dias nem de Castro Alves. Nenhum deles parece vir alcançando tantas zonas de sensibilidade ou de receptividade a influência de um escritor.

Isto sem entrarmos em avaliações ou comparações de mérito especificamente literário à base da influência de cada um: considerando-se o caso de Euclides da Cunha o caso complexo que foi e continua a ser dentro da cultura e da vida - e não apenas das belas-letras - nacionais. Só considerado assim - nessa sua complexidade - pode Euclides da Cunha ser estimado ou avaliado como influência, ainda hoje viva, entre seus compatriotas.

Influência nem sempre saudável. Ao exemplo do seu estilo se deve muito arrevesado de frase, na língua portuguesa do Brasil, em que, da imitação de um ritmo, de uma pontuação, de um vocabulário extremamente pessoais, resultou por algum tempo muita caricatura; e caricatura grotesca.

Por outro lado Euclides foi dos grandes escritores brasileiros um dos que mais deixaram à mocidade do seu país o exemplo de que ser um escritor homem de estudo metódico e homem de trabalho sistemático não significa escassear-lhe o talento ou faltar-lhe o gênio. Neste particular ele pertenceu ao número dos Rui Barbosa, dos Joaquim Nabuco, dos Machado de Assis. Em vez de ter valorizado a tradição do escritor boêmio e improvisador, valorizou a outra: a do escritor, homem de estudo. A do escritor, homem de trabalho. Com o que prestou um serviço imenso à cultura nacional, vítima, ainda hoje, do mito que associa ao escritor de gênio as boêmias de café ou as bebedeiras nas cervejarias.

Euclides - recordou uma vez do autor d'Os sertões o cronista João Luso, que o conhecia de perto - "escrevia com grande lentidão". Não só com "grande lentidão": também à base de conhecimento objetivo e de estudo honesto do tema que versasse. Era antes scholar que diletante: ele próprio comparou-se uma vez - informa João Luso -

com certos pássaros que para despedir o vôo precisam de trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de nada lhes servem as asas; e tem que ir por aí afora à procura do seu arbusto.

O seu arbusto, dizia Euclides que era "o Fato".

Foi outro exemplo que Euclides da Cunha deu aos seus compatriotas mais jovens: o de procurarem no conhecimento quanto possível vivo, direto, dos fatos brasileiros, matéria para a criação ou expressão literária. Estimulou assim o desenvolvimento, em nosso país, de uma literatura firmada na observação, no estudo, na análise de fatos caracteristicamente nacionais: os sertanejos e os amazônicos, principalmente. Por conseguinte, regionais. Dessa literatura se pode dizer que vem sendo ecológica ou sociológica nas suas tendências; mas salientando-se da de Euclides que, por ter sido ecológica ou sociológica e até nutrida da ciência ou da técnica do engenheiro de campo, que nunca deixou de ser arte; não deixou de modo algum de ser literatura. É que o escritor dirigiu, em Euclides da Cunha, a colheita, a seleção e a interpretação do material além de ecológico, sociológico, por ele utilizado como combustível de suas criações literárias. E o escritor em Euclides não foi um publicista apenas - o caso de Alberto Torres. Foi um artista. Foi um poeta. Foi escritor dos grandes: dos animados do gênio da revelação. Portanto escritor daquele tipo do qual escreve um crítico dos nossos dias, o professor Leo Lowenthal, que é quem retrata da realidade what is more real than reality itself. Só o escritor - acrescenta o professor Lowenthal no seu Literature and the image of man - sugestivo ensaio de sociologia da literatura - ou, antes, só a literatura, presents the whole man in depth... Foi o que conseguiu Euclides da Cunha: traçar do sertanejo um retrato em profundidade em que a figura do homem se integra de tal modo na paisagem que a ninguém é possível destacar o homem assim retratado do seu meio absorventemente materno. Só em literatura acontecem tais revelações e tais interpretações de paisagens e de homens porque só a literatura - voltemos a este ponto - é revelação. Só o escritor que seja também poeta no lato sentido alemão da palavra revela dos personagens, das paisagens das sociedades que a sua arte ressuscita ou surpreende ainda em movimento, as intimidades mais características. Só o grande escritor: nunca o pequeno nem sequer o médio. Só o grande escritor: nunca o cientista que sendo apenas cientista, escreva claro e correto; nem o especialista incapaz de transpor sua especialidade, não para invadir especialidades alheias, mas para dominar os assuntos que versa, como todos inter-relacionados. Daí, na caracterização da paisagem dos sertões, Euclides da Cunha ter realizado - mesmo resvalando em pequenos erros técnicos - uma revelação do caráter dessa paisagem que nem o geólogo Orville Derby nem o geógrafo Teodoro Sampaio - suas principais eminências pardas - teriam jamais conseguido sequer esboçar; menos, ainda, realizar. E ter levantado um perfil antropológico do sertanejo que nem três Ninas Rodrigues reunidos teriam sido capazes de levantar. Euclides da Cunha nunca nos põe diante de simples e perfeitas fotografias nem de sertanejos e de sertões; nem de seringueiros e de seringais - fotografias reunidas para que ele apenas as colorisse a mão; e assim coloridas, mas sem retoques nos seus traços, constituíssem o material científico de algum vasto gabinete de identificação que, em vez de policial, fosse sociológico. Mesmo porque seu forte nunca foi procurar acentuar as cores dos homens e das paisagens; e sim as suas formas. Foram precisamente os traços dos seus retratados que ele retocou e alterou, para neles acentuar características a seu ver essenciais. Nos seus ensaios, ele nos põe diante de retratos de homens e de interpretações de paisagens traçados por uma técnica singularmente sua em que ao impressionismo se acrescenta por vezes um expressionismo arrojado e personalíssimo: a intensificação na realidade do que nela o escritor encontrou de mais real. Foi intensificando e até exagerando na realidade o que dela lhe surgisse aos olhos e à sensibilidade como mais real que a realidade, que ele nos deixou, além de um retrato, hoje clássico, de sertanejo, vários retratos menores, mas igualmente significativos, de homens-símbolos. Não pode dizer-se conhecedor do Brasil quem ignore esses retratos e essas interpretações; e conheça apenas fotografias sociológicas ou geográficas dos homens e das paisagens que Euclides da Cunha retratou através daquele seu método menos impressionista que expressionista.

Destaque-se ainda de Euclides da Cunha que não se limitou a retratar indivíduos de uma só classe ou de um só grupo social mas de vários, embora seu brasileiro-ideal fosse evidentemente o sertanejo completado pelo seringueiro; e este, um meio-termo entre o burguês e o proletário, não podendo servir para símbolo de reivindicações de uma classe contra outra. Nem foi um drama de conflito de classes nem sequer de raças o que se verificou em Canudos, embora do verdadeiro caráter de luta entre soldados e jagunços o autor d'Os sertões não tenha se apercebido de todo: o caráter de um choque entre culturas. Daí resvalar por vezes, tanto quanto seu contemporâneo Sílvio Romero e, talvez, por influência do também seu contemporâneo Nina Rodrigues, em incertezas quanto à exata situação biológica do mestiço; o qual, biologicamente inferior, seria também sociologicamente incapaz de concorrer para o progresso brasileiro com que sonhava a engenharia de Euclides. É evidente que sua descrença no mestiço por preconceito cientificista era uma descrença que alcançava principalmente o mulato e o cafuzo; e não o ameríndio que tivesse apenas o seu toque de "celta" ou de "grego" e se conformasse, aos olhos de Euclides, à sua imagem talvez um tanto romântica do sertanejo ou do nortista desbravador da Amazônia. Mas não há dúvida de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o contraditório Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas contra mulatos e cafuzos, concorrendo, talvez, para o "arianismo" dos Oliveiras Vianas: seus sucessores imediatos nos estudos de homens e populações brasileiras. Resvalaram esses Oliveiras Vianas naquele preconceito, ao contrário dos Roquete Pinto que, entusiastas de Euclides e do seu sertanismo, retificaram-no sem demora neste particular, do ponto de vista antropofísico; e o fizeram, estando ainda quente a presença do autor d 'Os sertões nas letras nacionais. Do ponto de vista antropossocial ou antropocultural é que a retificação não só ao autor d 'Os sertões como a Nina Rodrigues só se faria, de modo decisivo, mais de um quarto de século depois da morte de Euclides da Cunha. Mas isto é outra história, como diria o inglês embora história não de todo estranha à avaliação que hoje se faça da influência do grande escritor não só sobre as letras como sobre os estudos antropológicos e sociológicos no seu país. Foram estudos que sua presença marcou de modo tão notável como marcou as letras nacionais: o ensaísmo literário que, sob a reorientação que ele deu a esse gênero de expressão ganhou novas perspectivas em língua portuguesa. Tão novas que talvez não haja exagero em falar-se de um tipo euclidiano de ensaio.

Diz-se da ciência que é a analítica teórica e impessoal, enquanto a arte é sintética, prática e pessoal, além de orgânica. Na obra de Euclides da Cunha predominaram as virtudes artísticas sobre as científicas. E sua própria maneira de ser cientista foi uma maneira hispânica ou ibérica, admitindo a presença do analista na obra de análise: maneira que Nietzsche parece ter aprendido dos espanhóis - sobretudo de Gracián - ao comunicar aos seus estudos filológicos alguma coisa de psicológico que terminou sendo alguma coisa de poético. Não erraria, quem dissesse do autor d 'Os sertões que foi, à sombra dessa tradição, mas excedendo-a, uma antecipação do moderno humanista científico: tipo de ensaísta que na língua inglesa vem se afirmando de Havelok Ellis a Julian Huxley, de Lawrence da Arábia a Bertrand Russell, de William James a Herbert Read. Esse humanismo científico ele o aplicou principalmente a temas brasileiros: à análise de homens ou de populações regionais e nacionais à qual acrescentou não só a revelação de intimidades características desses homens e dessas populações como a glorificação de valores por eles, a seu ver, encarnados. Nessa glorificação se expandiu seu pendor para o que fosse prático, orgânico e até pessoal nos mesmos temas, de preferência ao que neles se prestasse apenas a análises impessoais e a generalidades abstratas.

Há quem pense de Euclides da Cunha que, "embora nascido no estado do Rio", ficou "intimamente ligado à literatura nordestina, cuja civilização particularista estudou em suas páginas sensacionais". É a opinião do professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) à página 59 do seu Quadro sintético da literatura brasileira (Rio, 1956). A propósito do que acrescenta o eminente crítico:

A região nordestina no Brasil é tão típica, em seus costumes, como a região amazônica, a mineira, a gaúcha ou a do litoral central.

E lembra já haver outro crítico, o hoje acadêmico Viana Moog, "também romancista e ensaísta de valor", proposto uma "divisão da literatura brasileira baseada nessas idiossincrasias regionais". Com essas digressões - precedidas pelo reconhecimento de um "regionalismo" mineiro (Afonso Arinos) a que se teria juntado um "regionalismo" paulista (Valdomiro Silveira) sem que ao ilustre historiador do Quadro sintético tenha ocorrido a necessidade de desses regionalismos e do gaúcho e do mero "pernambucanismo" de Joaquim Nabuco ou do superficial "sertanismo" de Catulo da Paixão Cearense distinguir-se o muito mais complexo regionalismo em 1924 nascido no Recife - o professor Alceu Amoroso Lima enche a meia página em que deveria ter fixado seu julgamento sintético da obra de Euclides da Cunha. O que é pena pois nesse julgamento sintético de Euclides pelo mestre atual mais admirado e mais respeitado da crítica literária no nosso país teria se resumido a moderna atitude de toda uma elite intelectual - a dos críticos literários nacionais - com relação ao autor d 'Os sertões. Não se compreende que muito mais do que Euclides tenha merecido do professor Amoroso Lima, isto é, dos seus julgamentos sintéticos, Rui Barbosa, um tanto arbitrariamente apresentado pelo crítico-historiador como "porventura a mais internacional das nossas grandes figuras literárias, no sentido amplo do termo" (p. 47); primazia que evidentemente cabe antes a Euclides ou a Machado que a Rui. É uma ilusão, essa, da parte de numerosos brasileiros, de ser Rui Barbosa - que tanto significou, na verdade, para nós, seus compatriotas, e ainda significa, como invulgar jurista-político em quem às virtudes acadêmicas de grande erudito nessas matérias, nas letras clássicas e na filologia, se juntou o carisma de bravo homem de ação e de incansável doutrinador de liberalismo, por um lado e por outro, de casticismo - um brasileiro significativo para os meios cultos estrangeiros por qualquer motivo interessados no Brasil. É uma ilusão acreditar-se na importância da repercussão, no estrangeiro, de seus triunfos político-jurídicos e oratórios na Haia: muito maior foi, na mesma época, a repercussão das teses em prol do mestiço brasileiro defendidas em Londres, em congresso internacional de cientistas, pelo professor J. B. de Lacerda. É uma ilusão imaginar-se Rui sob o aspecto de "figura literária" brasileira que tenha impressionado ou impressione ou seduza hoje, estrangeiros, por suas virtudes literárias. Ao afirmá-lo, o crítico e professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) resvala num mito que por sua condição mesma de crítico deveria ser o primeiro a retificar. Pois semelhante repercussão de Rui no estrangeiro não existe senão em meios europeus ou americanos influenciados diretamente pelo culto brasileiro ao mesmo Rui.

Para Euclides da Cunha tem se voltado, da parte de estrangeiros interessados em literatura, ou nos trópicos, ou em gentes exóticas, em geral - e não apenas no Brasil - senão sempre uma admiração, uma curiosidade que talvez se explique pelo fato de ser a literatura do autor d'Os sertões, mais do que a de Rui Barbosa ou do que a de Joaquim Nabuco ou mesmo a de Machado de Assis, diferente das produções européias; tocada - ainda mais que a de José de Alencar: seu predecessor mais importante neste particular - por alguma coisa de agreste ou de tapuio em sua arte e em seus motivos combinados. Por conseguinte, uma literatura de sabor um tanto novo para o estrangeiro, a quem o próprio Machado de Assis desaponta quando seu humour é o subinglês dos seus romances e das suas crônicas - humour tão surpreendente para o paladar brasileiro - em vez de ser a graça já sutilmente carioca que caracteriza, mais do que os seus romances e as suas crônicas, os seus contos. E justamente pelos contos é que Machado de Assis vem competindo com Euclides da Cunha na sedução que os dois, muito mais do que Rui Barbosa, vêm exercendo sobre estrangeiros.

Em resumo: se é exato o que aqui se diz ou se sugere, compreende-se que à obra de Euclides da Cunha pareça destinada a missão de abrir para europeus e para outros estrangeiros caminhos à compreensão do Brasil através da literatura brasileira, que nenhum outro escritor já clássico do nosso país vem conseguindo sequer desbravar. Pareceu que Alencar o faria, completado pela propaganda que dele fez com não pequeno entusiasmo um inglês do prestígio de Burton. Mas a repercussão de Alencar na língua inglesa enlanguesceu cedo. Difícil tem sido igualmente aos brasileiros convencerem os estrangeiros da importância literária de Machado: a importância que nós, com inteira razão, lhe atribuímos, à base do que Machado trouxe para a literatura nacional, da literatura inglesa, acrescentando a essa difícil importação alguma coisa de discreta e sutilmente sua, quase impossível de ser transmitida aos estranhos através de traduções. A eterna história das conchas que retiradas da praia perdem quase todo o encanto, tornando-se tristes e inexpressivas.

De Euclides, se sabe que em certas línguas, como a sueca, vem sendo um fracasso absoluto. Na língua inglesa e na espanhola, porém, já atravessou a prova de sobreviver às primeiras edições. Vem se afirmando, mais que qualquer daqueles dois e do que Taunay ou Graça Aranha, escritor polivalente. Isto é, escritor quase tão fascinante dos leitores sob a forma de escritor traduzido - bem traduzido, é claro - quanto sob a forma de escritor na língua materna.


 

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