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Extraído de: Freyre, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis.
2ª ed. aumentada. Rio de Janeiro, Record, 1987. p. 17-69
Euclides da Cunha
1. Engenheiro físico alongado em social e humano
Do nome de Euclides da Cunha ninguém sabe separar o do seu maior livro:
Os sertões. Mas daí não se deve concluir que Euclides
tenha sido um desses autores de obra única e gloriosa da qual se tornam,
pelo resto da vida e depois de mortos, uma espécie de maridos de professora.
Ele vive principalmente pela sua personalidade, que foi criadora e incisiva
como poucas. Maior que Os sertões.
Seria um erro ver na paisagem do grande livro de Euclides um simples capítulo
de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter escrito
com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza
pedagógica de exposição. A paisagem que transborda d 'Os
sertões é outra: é aquela que a personalidade angustiada
de Euclides da Cunha precisou de exagerar para completar-se e exprimir-se nela;
para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamente brasileiro em que
os mandacarus e os xiquexiques entram para fazer companhia ao escritor solitário,
parente deles no apego quixotesco à terra e na coragem de resistir e
de clamar por ela.
Resistir quando todos desistem. Resistir sempre. Clamar no deserto. Clamar
pelo deserto. De modo que é Euclides, mais do que a paisagem, que transborda
dos limites de livro científico d'Os sertões, tornando-o
um livro também de poesia, uma espécie daqueles romances de Thomas
Hardy em que a paisagem está sempre entre os personagens do drama, uma
como mensagem de profeta preocupado, como outrora os hebreus, com o destino
de sua gente e com as dores do seu povo. Preocupado com esse destino e com essas
dores através da paisagem sertaneja, para ele menos um tema de materialismo
geográfico que um problema do que hoje se chamaria ecologia humana. Também
um problema de política e de ética.
O sr. Afrânio Peixoto, em discurso acadêmico, definiu com nitidez
a paisagem fixada no livro pouco pedagógico de Euclides da Cunha: "...cenário
desmedido e grandioso, rude e magnífico, em que viveu, sofreu e pensou
a personagem silenciosa que não se descreve e está sempre presente
naquelas páginas... Não é livro de história, estratégia
ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões
sobre a alma de Euclides da Cunha".
O Euclides que em 1897 se defrontava com os sertões era ainda um adolescente
no incompleto da personalidade, no indeciso das atitudes. Um adolescente que
vinha do litoral e de sua civilização, cheio de mãos esquerdas
diante dos homens já feitos e das cidades já maduras da beira
do Atlântico. Precisando do ermo para sentir-se à vontade. Precisando
do deserto para acabar de formar-se no meio do inacabado da colonização
pastoril, sem se sentir olhado, observado ou criticado pelos escritores convencionais
do Rio de Janeiro. Estes que o aceitassem depois de formado a seu jeito - que
não seria decerto o deles, escritores demasiadamente à francesa
e à inglesa, una - os melhores; outros "gregos" ou "helenos";
ainda outros castiçamente portugueses, os ouvidos cheios de algodão
para não recolherem nenhuma estridência brasileira, nenhuma palavra
brutalmente viva que viesse da rua, ou dos restos de senzalas, ou dos sobejos
de índios que os compêndios de história do Brasil diziam
ter habitado um dia não só os sertões como o litoral brasileiro.
Era o tempo em que o velho Machado, escondendo-se por trás de personagens
sempre brancos, ioiôs sempre finos, se fazia adivinhar no humour
dos seus romances - talvez os mais profundos que já se escreveram na
língua portuguesa - quase um inglês tristonho desgarrado nos trópicos,
embora resignado à doçura da vida suburbana de chá com
torrada, partidas de gamão e modinhas ao piano, nos sobrados velhos e
nas chácaras cheias de escravos e de árvores do Rio de Janeiro
de dom Pedro 1l. 0 tempo em que Joaquim Nabuco ao retratar-se menino fidalgo
no terraço da casa-grande de Massangana, em páginas de saudade
profundamente viril que hão de ficar para sempre em nossa literatura,
arredava da vista do leitor, com um pudor de memorialista vitoriano, o que parecesse
mais cruamente brasileiro, só faltando fantasiar as jaqueiras exuberantes
e quase obscenas de Pernambuco de olmos ascéticos de algum recanto do
Norte, não do Brasil, mas da Inglaterra ou da Nova Inglaterra. O tempo
de Coelho Neto, de Olavo Bilac, de doutor Francisco de Castro, de B. Lopes,
de Domício da Gama, de Alphonsus de Guimaraens, da estréia de
Afrânio Peixoto, dos primeiros triunfos de Graça Aranha. O tempo
em que Afonso Arinos descrevendo cenas dos sertões mineiros não
conseguia se identificar com os aspectos mais antieuropeus da paisagem e da
vida sertanejas, permanecendo diante delas o mesmo simpatizante que Eduardo
Prado ou o visconde de Taunay.
Desgarrado do "equilíbrio helênico", do "humour
inglês", da "elegância renaniana", um ou outro Silvio
Romero com os seus modos reiúnas de matutão zangado, suas explosões
de mau gosto de bacharel em direito influenciado pelo "germanismo"
de Tobias, seu arrivismo de sergipano; mas ao mesmo tempo animado daquele "são
brasileirismo" que já levantara obra crua mas monumental: a História
da literatura brasileira. Um ou outro Raul Pompéia, arrepiando o
português acadêmico com arrojos de estilo menos castiço,
descasando substantivos e adjetivos convencionalmente unidos para juntá-los
em combinações quase escandalosas de novas. Um ou outro Alberto
Torres mais desembaraçado de doutrinas européias nos seus estudos
sobre a formação social do Brasil.
Ao helenismo do tempo, ao academismo renaniano, à imitação
do humour inglês - que em Machado foi assimilação
genial - Euclides não escaparia de todo. Há dele uma declaração
expressiva: que se sentia ao mesmo tempo tapuia, celta e grego. Mas já
era muito, em plena época de Coelho Neto e B. Lopes, admitir um escritor
vitorioso no Rio de Janeiro que fosse um terço tapuio, e não completamente
heleno.
O pretendido helenismo dificilmente se encontra em Euclides da Cunha. Se o
autor se faz sentir em tantas cenas d'Os sertões - quase no livro
inteiro - é pela sua identificação - esta, sim, profunda
- com a dor do sertanejo e com a tristeza - antes asiática ou norte-africana
do que européia - da vegetação regional; e nunca por superioridades
sutis de "grego" ou "heleno" perdido entre os mandacarus.
Aqueles mandacarus a princípio "tesos triunfalmente enquanto por
toda a banda a flora se deprime"; depois "constantes, uniformes, idênticos";
mas resistindo sempre à "ardência do sol" e dos "areais
queimosos" dos sertões. Mandacarus, xiquexiques, "cabeças
de frade" - estas uns "deselegantes e monstruosos melocactos de forma
elipsoidal" recortadas pelo estilista com requintes de purismo geométrico.
Era natural que nos "areais queimosos" dos sertões Euclides
parasse para se retratar ossudo e romântico ao lado dos mandacarus, dos
xiquexiques, das "cabeças de frade": o seu "reino"
era aquele. O "reino" a que ele próprio se havia de referir
uma vez, falando meio desdenhosamente de poetas. Dessas suas palavras se serviria
um tanto irônico o geólogo John Casper Branner, com o aplauso do
sr. Afrânio Peixoto, para fazer o elogio do poeta d 'Os sertões
e a crítica incisiva do seu livro: "o poeta é soberano no
pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia".
Os sertões foram, na verdade, o reino do poeta Euclides da Cunha.
Sua Pasárgada, como diria Manuel Bandeira. Antes de Euclides a paisagem
brasileira tivera entre os poetas e os romancistas os seus simpatizantes e até
entusiastas: o maior deles José de Alencar. O autor d 'Os sertões
foi o primeiro caso de verdadeira empatia. Simpatia só, não: empatia.
Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou
os sertões para sempre à sua personalidade e ao "caráter
brasileiro", de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma
espécie de mártir.
Foi nos sertões que as centenas de mãos esquerdas do magricela
desajeitado que já entortara uma espada num instante de fúria
- e talvez centenas de penas noutros momentos de raiva menos espetaculosa -
começaram verdadeiramente a se disciplinar sob uma vocação
poderosa: a de escritor em função da "paisagem brasileira"
que ficou sendo para ele mais do que a "imagem da República"
- que também teve para Euclides um sentido místico - uma espécie
de prolongamento da imagem materna e ao mesmo tempo da própria.
Impossível separar Euclides dessa paisagem-mãe que se deixou
interpretar por ele, e pelo seu amor e pelo seu narcisismo, como por ninguém.
Na descrição dos sertões, o cientista erraria em detalhes
de geografia, de geologia, de botânica, de antropologia; o sociólogo,
em pormenores de explicação e de diagnóstico sociais do
povo sertanejo. Mas para o redimir dos erros da técnica, havia em Euclides
da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais.
O Euclides que descobrira na paisagem e no homem dos sertões valores
para além do certo e do errado da gramática da ciência.
O poeta viu os sertões com um olhar mais profundo que o de qualquer
geógrafo puro. Que o de qualquer simples geólogo ou botânico.
Que o de qualquer antropologista.
O profeta clamou pelos sertões: deu-lhe um significado brasileiro,
ao lado do puramente paisagístico, do indistintamente humano.
O artista os interpretou em palavras cheias de força para ferir os
ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com
o som de uma voz moça e às vezes dura, clamando a favor do deserto
incompreendido, dos sertões abandonados, dos sertanejos esquecidos.
Porque ele foi a voz do que clamou a favor do deserto brasileiro: endireitai
os caminhos do Brasil! (O Brasil era o seu "Senhor"). Os caminhos
entre as cidades e os sertões. Esta foi a grande mensagem de Euclides:
que era preciso unir-se o sertão com o litoral para salvação
- e não apenas conveniência - do Brasil. O sertão era "salvador":
salvador dele, Euclides, e salvador do Brasil. Mensagem transmitida aos homens
da República de 89 em palavras de artista interessado pela política.
Mensagem deformada depois pelos que fizeram dos sertões em si - e não
de sua comunicação com o litoral agrário - quase uma mística,
uma espécie de seita protestante que acredita poder salvar o Brasil com
a água dos açudes do Nordeste - nos quais se têm talvez
empregado somas em desproporção com o seu valor social para a
nação brasileira.
Nem o poeta, nem o profeta, nem o artista me parece que turvam n Os sertões
ou noutro qualquer dos grandes ensaios de Euclides da Cunha-as qualidades essenciais
de escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900 que ele foi: escritor
fortalecido pelo traquejo científico, enriquecido pela cultura sociológica,
aguçado pela especialização geográfica.
Aquelas qualidades científicas, quem às vezes as diminui no
autor d Os sertões comprometendo-as na sua essência, é
o orador perdido de amor - amor físico - pela palavra simplesmente bonita
ou rara; o orador que a formação científica de Euclides
da Cunha não conseguiu esmagar nunca no grande sensual das frases sonoras,
deslumbrado desde os dias de colégio, desde o tempo de menino criado
em fazenda - quando, informa o sr. Elói Pontes, discursava aos bois no
fim das tardes quietas do Rio de Janeiro - pelo efeito das frases, das palavras,
dos polissílabos, primeiro sobre os ouvidos, depois sobre os olhos pervertidos
em ouvidos. Daí a exagerada sensualidade verbal, a ênfase anticientífica
e também antiartística em que às vezes se empasta sua palavra
nem sempre a serviço fiel dos seus olhos: traindo-os às vezes
para seguir os ouvidos ou a imaginação de adolescente.
Em Euclides, a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar
- como nas óperas - as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres,
as instituições com que se identificava. Engrandecer, alongando:
à sua imagem, talvez. Menos, porém, ao herói individual
que ao tipo heróico. Principalmente o tipo heróico em função
da paisagem brasileira do centro. O vaqueiro, o sertanejo, o seringueiro, o
próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões -
sobrevivência do quilombola colonial - sai engrandecido de suas páginas
.
Nesse gosto de fixar tipos heróicos em função das paisagens
- ou antes, da "paisagem", para ele como que mística do Brasil
mediterrâneo - ninguém o excede. Espera o instante de tensão
heróica, o momento extremo de sacrifício ou de agonia, para surpreender
no brasileiro anônimo, no sertanejo vulgar, até no caboclo desconhecido,
"as linhas terrivelmente esculturais" em que a resistência ao
sol, à coragem, à dor, à doença ou simplesmente
à fome os alongue em figuras de grandes de Espanha. Exagera então
os alongamentos, os ângulos, os relevos. Ao sertanejo, espera quase voluptuosamente
que se empertigue, que estadeie todos os seus relevos e todas as suas linhas,
que corrija "numa descarga nervosa instantânea todos os efeitos do
relaxamento habitual dos órgãos" para exaltar na "figura
vulgar do tabaréu canhestro" - afidalgada por aquele instante de
tensão escultural - "o titã acobreado e potente". Ao
cavalo do alferes Vanderlei, surpreende-o morto, com todos os relevos de cavalo
ossudo de dom Quixote. Da moça sertaneja alongada pela fome e dramatizada
pela dor, que encontra em Canudos, delicia-se em destacar o perfil anguloso:
"uma beleza olímpica.... na moldura firme de um perfil judaico,
perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos
ossos apontados duramente no rosto emagrecido...." "Perturbados embora",
mas sem essa perturbação, teriam merecido o interesse do estilista
obcecado pelo gosto da angulosidade, para ele como que identificada com a altivez,
a nobreza, o brio - com ele próprio, Euclides da Cunha?
Mais ainda: de um negro, capanga do Conselheiro, faz um mártir; e um
mártir de proporções monumentais que, com música
de ópera daria uma figura wagneriana. Coerente com a sua técnica,
o seu método, o seu gosto de literatura escultural e de música
dramática, espera que o preto desconhecido morra ao laço para
o surpreender já "feito estátua" - símbolo de
uma raça inteira e expressão de protesto contra quatro séculos
de civilização escravocrata. Fixa então o preto em toda
a glória de sua "plástica estupenda": "...viriam
transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício.
Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas
murchas, despontaram repentinamente linhas admiráveis - de uma plástica
estupenda. Um primor de estatuária modelado em lama. Retificara-se de
súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida,
numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre
os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto
desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe
a fronte Surgiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura
gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito
estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro
séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de
Canudos".
Sente-se aí, como noutros arrojos de síntese do autor d'Os
sertões, aquele encanto pela técnica da escultura que ele
próprio confessa: "é que a escultura, sobretudo a escultura
heróica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de
par com a sucessão rítmica da poesia ou da música".
Mas para isso - salienta Euclides no seu ensaio "A vida das estátuas"
- o escultor - e poderia ter acrescentado: o escritor que imita o escultor na
sua técnica - não deve destacar nas figuras "um caráter
dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento
dominante e generalizado". A tendência para o monumentalismo que
quase nunca o abandona. Da paisagem quase sem relevo dramático nenhum,
nem traço monumental dos canaviais da vizinhança de Pojuca ele
recorta apenas as "miríades de folhas refletindo ao sol com um brilho
de aço antigo"; a casa-grande, mal a observa, desinteressado talvez
do gordo, do "terrivelmente chato", do liricamente brasileiro, do
acachapadamente patriarcal de sua arquitetura.
Toda a obra de Euclides está cheia de flagrantes de atitudes heróicas
oferecidos pelos homens e até pelos animais e pelas árvores nos
seus momentos de resistência, de dor, de sacrifício, de fome. Flagrantes
surpreendidos pelo olhar arregalado do estilista mais dominado pelo sentido
escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no
Brasil e talvez em língua portuguesa. Flagrantes e idealizações.
Idealizações sob a forma - que chega a sugerir certo narcisismo
mórbido - de alongamentos grecóides. Aliás, ele chega a
parecer um irmão mais novo e desgarrado na literatura não só
de El Greco como de Alonso Berruguete: o Berruguete que na Espanha do século
XVI quis exprimir em escultura "toda a força das emoções
fundamentais", acentuando a ossatura dos membros, as cabeças das
falanges dos dedos, os ligamentos que só o anatomista conhece nas mãos
e nos pés dos homens.
A Euclides como que repugnava na vegetação tropical e na paisagem
dominada pelo engenho de açúcar o gordo, o arredondado, o farto,
o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento
da terra; a doçura do massapê. Atraía-o o anguloso, o ossudo,
o hirto dos relevos ascéticos ou, quando muito, secamente masculinos
do "agreste" e dos "sertões". Dos tipos e dos cenários
sertanejos, ele destaca os relevos mais duramente angulosos, em palavras também
duras, quase sem fluidez nenhuma e como que assexuais. Palavras às vezes
enfeitadas de arabescos glorificadores, exageros de idealização
monumental, lugares-comuns de geometria oratória: "beleza olímpica",
"primor de estatuária", "linhas ideais de predestinado",
"olhar, num lampejo viril, iluminando-lhe a fronte". Nunca porém
sem seu relevo. Sempre impressionantes e quase sempre vigorosos - de um vigor
novo na língua: um vigor escultural.
Porque ele é, na verdade, uma espécie de El Greco ou de Alonso
Berruguete da prosa brasileira: tira das palavras o máximo de recursos
esculturais, embora com sacrifício, mais de uma vez, de qualidades de
discriminação e de inflexão - as grandes qualidades, entre
os mestres brasileiros seus contemporâneos, de Machado, de Nabuco e do
próprio Pompéia. Qualidades quase impossíveis dentro do
gosto do brônzeo, do escultural, do geométrico, do hirto, do anguloso,
em que Euclides se requinta como sob o domínio de uma obsessão
quase mística: a de evitar a carne, suas curvas, sua inconstância,
o momento que passa, a banalidade quotidiana.
Precisamente no Diário de uma expedição, com que
o editor José Olímpio iniciou a publicação, em volumes
da Coleção Documentos Brasileiros, de crônicas, apontamentos,
cartas e até versos do grande escritor brasileiro, inéditos ou
dispersos pelos jornais, é que Euclides se revela menos escultural na
técnica de escrever e de interpretar tipos e cenários nos seus
momentos grandiosos e nos seus aspectos heróicos; e mais fluido, ao mesmo
tempo que o menos intolerante do quotidiano.
Porque mesmo nessas notas de repórter ele se mostra o escritor que
procura fazer parar as figuras nos seus momentos artística ou, antes,
esculturalmente mais expressivos e também mais dramáticos, para
os descrever parados e em plena pompa de suas linhas. Que procura fazer parar
o próprio sol dos sertões; descrevê-lo como que parado:
"reverberando nas rochas expostas, largamente refletido nas chapadas desnudas,
sem vegetação, ou absorvido por um solo seco e áspero de
grés" num daqueles meios-dias sertanejos "mais silencioso e
lúgubre que as mais tardias horas da noite".
As palavras saem-lhe, porém, nas cartas e nas crônicas, mais
soltas; e com umas sem-cerimônias, uns à-vontades, uns abandonos
que faltam às páginas como que acabadas, completas, definitivas
d'Os sertões. Sente-se nas crônicas um gosto diverso do
da obra madura e quase monotonamente lapidar: um gosto com a sua ponta de verde,
o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum, de improvisação.
Porque com o sr. Rosário Fusco - em recente artigo sobre o Diário
de uma expedição - e contra o escritor cintilante mas às
vezes arrebatado que é o sr. Agripino Grieco, não acredito na
improvisação destas notas, muito menos na d'Os sertões:
improvisação afetada por Euclides com certa pacholice de dom-juan
que ostentasse sucessos fáceis; com certa gabolice de adolescente. O
adolescente ao mesmo tempo acanhado e tonitruante, incompleto e enfático,
que não morreu de todo no autor de Canudos. Nem no escritor nem,
talvez, no homem. Mas isto é outra história, como diria Kipling.
O que desejo salientar aqui e o que me parece ponto inteiramente tranqüilo
na personalidade de Euclides da Cunha é "a dificuldade tremenda"
que, segundo um observador atento, "ele tinha em redigir". João
Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de estilista redigindo com um vagar de
quem fizesse renda um artigo para o Jornal do comércio: "levou
aquilo mais de três horas para ocupar no dia seguinte um resumido espaço
no jornal".
Aliás o próprio Euclides em página do Diário
(Bahia, 21 de agosto) confessa, senão a tortura no escrever, o trabalho
penoso de recolher dados pelos arquivos baianos: um "investigar constante
acerca do nosso passado vindo intacto quase aos nossos dias, dentro desta cidade
tradicional como de uma redoma imensa". Acrescentando: "A poeira
dos arquivos de que muita gente fala sem nunca a ter visto, surgindo tenuíssima
de páginas que se esfarelam ainda quando delicadamente folheadas, esta
poeira clássica - adjetivemos com firmeza - que cai sobre tenazes investigadores
ao investirem contra longas veredas do passado, levanto-a diariamente. E não
tem sido improfícuo o meu esforço". Confissão sincera
e até corajosa para uma época em que, mais do que hoje, o "homem
de talento" no Brasil devia afetar, acima de tudo, capacidade de improvisação;
isso de se sujar de poeira pelos arquivos, entre livros podres e papéis
velhos, era só para os medíocres, para os antiquários,
para os desembargadores de província. Confissão que, de certo
modo, contradiz o bravado de adolescente, em "caderno íntimo"
de que o Grêmio Literário Euclides da Cunha, em sua revista, e
a revista de estudantes do Recife, Universidade, em seu número
de junho de 1938, publicaram trechos curiosos. Inclusive este: "Escrevi-o
[Os sertões] em quartos de hora, nos intervalos de minha engenharia
fatigante e obscura". No que talvez tenha se baseado o sr. Agripino Grieco
para se referir com entusiasmo às cartas enviadas por Euclides da Cunha
para O estado de São Paulo: "escritas sem elementos de consulta,
na barafunda da campanha, aos primeiros jatos da emoção tumultuosa".
Uma ou outra nota se destaca daquelas cartas pela "emoção
tumultuosa" que verdadeiramente acuse a reportagem pura, em vez da estilização
pachorrenta. Assim os oitenta soldados feridos que em carta de 12 de agosto
Euclides escreve ter visto saltar do trem na estação de Calçada.
Ao estilista como que faltou tempo para fazer parar toda aquela gente ferida
em figuras esculturais - embora não esqueça de salientar as "apófises
dos ossos" a apontarem dos "corpos depauperados" dos "heróis
obscuros". Coxeando, arrastando-se, os oitenta soldados desconhecidos saltam
do trem e desaparecem, deixando-se apenas esboçar a lápis pelo
repórter emocionado, mas como que frustrado nas suas intenções
de síntese, quando não de glorificação escultural
daqueles homens já tão sem carne: quase só ossos.
É certo que glorificando tipos em estátuas, Euclides raramente
sacrifica neles a verdade essencial: quase sempre acentua-a, simplificando-a
ou exagerando-a nas linhas das sínteses arrojadas. Mas esse talento o
abandona, quase sempre, diante da interpretação das personalidades
isoladas e dos próprios tipos sociais mais densos e mais rebeldes à
simplificação. E toda vez que se sente fraco diante de problemas
complexos de interpretação de personalidades ou de tipos Euclides
resvala no seu vício fatal: a oratória.
A uma frase que faça desaparecer de uma personalidade ou de um tipo
curvas indecisas, sob o traço único e imperial de uma generalização
ou de uma síntese, ele sacrifica às vezes as contradições,
as transições, os contrastes que se agitam dentro de um problema
complexo e sutil d psicologia ou de história. Principalmente quando esse
problema é o que oferece a psicologia ou a história de uma personalidade
ou de um tipo social mais denso. Daí a fraqueza de suas tentativas de
caracterização da cidade da Bahia, por exemplo, ao lado de suas
sínteses magníficas de paisagens largas e de tipos menos complexos:
o do sertanejo ou o do seringueiro.
Seus ensaios sobre personagens isoladas, sobre tipos complexos, concentrados
no tempo ou no espaço, não têm a força nem a riqueza
psicológica dos outros: sobre assuntos menos definidos. Porque ninguém
como Euclides ilustra aquele reparo surpreendente mas exato de um crítico:
"É mais fácil não nos enganarmos sobre um país
inteiro que sobre uma só personagem."
Euclides está cheio de generalizações violentas: mesmo
quando faz o elogio da análise. Assim: "Roosevelt é um estilista
medíocre.... Não escreve, leciona. Não doutrina, demonstra.
Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos
brilhantes de uma teoria; analisa, disseca, induz friamente, ensina." Mas
nunca ninguém pretendera exaltar no primeiro Roosevelt o estilista. Nem
as demais afirmativas se ajustam ao famoso político americano que não
foi nenhum mestre da análise, nem da indução, nem da demonstração
fria mas, ao contrário, antes um intuitivo que um lógico; principalmente
um voluptuoso da ação; e na expressão literária
- se chegou a ter expressão rigorosamente literária - um orador
às vezes lamentavelmente enfático. Os mesmos limites Euclides
revela diante de personalidades menos distantes: o seu Moreira César,
o seu Carlos Teles, mesmo o seu Floriano, nenhum deles tem o vigor ou a verdade
do seu sertanejo ou do seu seringueiro.
Outro dos seus contemporâneos, de quem o ensaísta pretendeu fixar
a psicologia, ao lado da de Theodore Roosevelt, e fez apenas a caricatura, foi
Guilherme II, em frases sonoras que tanto agradariam a Tristão de Araripe
Júnior - um crítico literário que lia com os ouvidos e
prejulgava com a vista como certos glutões comem com os olhos e prejulgam
com o olfato. Frases que não escondem de um leitor menos sensível
aos encantos do verbalismo, uma incapacidade surpreendente, em escritor tão
poderoso, para a caracterização - neste caso não só
do particular, do definido, do único - a personalidade de Guilherme II
- como do geral: o povo alemão. Porque é de uma gente da formação
delirantemente romântica e até mística do alemão,
que Euclides pretende fazer "a terra clássica do bom senso equilibrado";
do Kaiser, isto é, de Guilherme II - um "neto retardatário
das Valquírias" que tivesse subjugado, como por mágica, toda
aquela massa formidável de "bom senso equilibrado". Frases
de orador que lembram expressões pomposas do grande poeta - também
turvado pela oratória - que foi Castro Alves. Grande poeta um tanto desdenhado
por Euclides ao se confessar atônito ante aquela "espécie
de Carlyle da rima" que "nos abala poderosamente em cada verso, mas
cuja ação é infinitamente breve, como a de uma pancada
percutindo e morrendo ao fim dos hemistíquios".
A Euclides se poderia talvez fazer reparo semelhante ao que ele opôs
ao poeta baiano. Em vários dos seus ensaios e em alguns trechos menos
felizes d'Os sertões, o lógico, o intuitivo, o poeta dramático
e às vezes trágico - raramente lírico - se deixa vencer
pelo orador simplesmente impressionante nos seus arrojos verbais e por isso
mesmo de "ação infinitamente breve" sobre os quais os
que o lêem menos com os ouvidos do que com a inteligência. A inteligência
prevenida contra as sínteses sonoras, as generalizações
grandiosas, as sentenças maciças, sem um "talvez", sem
um "a não ser que", sem um "entretanto" a quebrar-lhes
em curvas - curvas irônicas, às vezes irritantes, mas sempre necessárias
- a imponência das retas, tão de sua predileção de
construtor de frases imperiais .
O professor Afrânio Peixoto já observou de Euclides da Cunha
que "não tinha matizes nem inflexões"; que desconhecia
"os meios-tons e as transições insensíveis".
Pior ainda: que cultivava "esse mau gosto nacional, espécie de gongorismo
retardado, que o povo chama, avisadamente, falar difícil".
Wagnerismo literário.
Donde aquele seu vício de adolescente de tomar notas nos punhos da
camisa de palavras estranhas e arrevesadas, boas para as grandes orgias dos
olhos e dos ouvidos. Orgias às vezes masoquistas: palavras duras, termos
requintadamente científicos, expressões terrivelmente técnicas
que doessem bem nos olhos e nos ouvidos dos voluptuosos, machucando-os e ferindo-os
mas deleitando-os.
Noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades
são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais
para qualquer escritor menos vigoroso.
Quem nos deixou, como Euclides da Cunha, páginas que saltam intuições
verdadeiramente geniais, não precisa de condescendência de crítico
algum. O vulto monumental que levantou de Antônio Conselheiro - não
da pessoa do místico, mas do seu tipo de sertanejo isolado da civilização
do litoral, de vítima desse isolamento, de monge quase mal-assombrado
cercado de beatas, de velhas, de doentes, de brancos, de negros, de caboclos,
de centenas de brasileiros pervertidos pelo mesmo isolamento que ele, de asceta
terrível dando as costas às mulheres moças e às
paisagens macias do lado do mar - permanece obra-prima na literatura brasileira.
Mais do que isso: obra-prima de síntese sociológica na língua
portuguesa. Seus estudos de problemas de formação territorial,
social e política do Brasil vieram esclarecer aspectos importantíssimos
de nossos antecedentes e da nossa atualidade. Suas caracterizações
da paisagem brasileira dos sertões - paisagem física, paisagem
cultural - ilumina-as um seguro critério ecológico, ao lado do
senso dramático dos antagonismos que turvam a unidade brasileira.
Da história, como da geografia, ele teve a visão mais larga,
que é a social, a humana. Seu mestre Carlyle não o afastou do
amor fraternal dos homens, simplesmente homens, para o tornar um devoto exagerado
dos heróis. Nos heróis como nos jagunços ele nunca deixou
de sentir homens; em Antônio Conselheiro, não deixou de ver o brasileiro
nem de sentir o irmão. Nos documentos que estudou, que interpretou, que
esclareceu foi sempre o que o interessou mais profundamente: a nota humana,
a expressão social, a significação brasileira.
Se tivesse hoje vinte, trinta ou quarenta anos, qual seria a posição
de Euclides na vida brasileira e diante dos problemas do nosso tempo? Num "ensaio
de revisão" é ponto a que dificilmente se pode fugir. A sra.
Carolina Nabuco, em conferência, na Faculdade de Direito do Recife, afirmou
daquele grande pernambucano - seu pai - na velhice tão olímpico
e tão glorificado por todos mas que na mocidade - e mesmo depois dos
trinta anos - fora considerado "agitador", "inimigo do clero"
e até "republicano" perigoso: "Meu pai, se fosse moço,
hoje, certamente advogaria reformas sociais..." Atalhando, porém,
com delicadeza de moça e doçura de brasileiro: "...mas nunca
insuflando ódios de classe ou agindo com armas que não fossem
a própria convicção dos espíritos". E transcreve
de Joaquim Nabuco estas palavras que apesar da expressão "futuro
remotíssimo" seriam consideradas hoje pela gente mais tomada de
pânico diante do socialismo, terrivelmente radicais: "Só há
uma coisa certa, é que num futuro remotíssimo, o proprietário
de terra será um ente tão mitológico quanto o proprietário
de homens. "
Euclides - que escolheu do Brasil e da vida uma "paisagem" tão
diversa da de Nabuco - encara o assunto num dos seus ensaios mais eloqüentes
- "Um velho problema" - em que se levanta contra o que chama o "egoísmo
capitalista" em tom quase de panfletário. É desse trabalho
a página pouco original e até rala na idéia mas caracteristicamente
euclidiana pelo vigor de expressão - o estilista tira aí todo
o partido poético e estético da terminologia físico-química
- de confronto do operário moderno - "esverdinhado pelos sais de
cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos
de mercúrio, asfixiado pelo óxido carbônico, ulcerado pelos
cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez
petrólica ou fulminado por um coup de plomb" - com "a
máquina... íntegra e brunida". Confronto em que se revelaria
"a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava"
e no qual estaria "em grande parte a justificativa dos socialistas não
chegarem todos ao duplo princípio fundamental: socialização
dos meios de produção e circulação; posse individual
somente dos objetos de uso".
Tudo indica que tanto Euclides como Nabuco, se fossem homens de trinta anos
diante dos problemas de hoje e no Brasil dos nossos dias, estariam entre os
escritores chamados indistintamente da "esquerda", embora nenhum deles
fosse por temperamento ou por cultura inclinado àquela socialização
da vida ou àquela internacionalização de valores que importassem
em sacrifício da personalidade humana ou do caráter brasileiro.
Ao contrário: aos olhos dos cientificistas do socialismo eles seriam
dois formidáveis românticos, cada qual a seu jeito. Românticos
principalmente neste ponto: no respeito pela pessoa humana, a ser defendida
contra todos os seus inimigos. Sobre os dois - sobre Nabuco e sobre Euclides
- atuaram nesse sentido influências inglesas que não devem ser
esquecidas .
Aliás convém salientar que, atraído por afinidades de
temperamento e, ao que parece, sob o domínio de tendências ou predileções
comuns, o escocês Cunningham Graham traduziu para o inglês, no seu
A Brazilian mystic, trechos inteiros d 'Os sertões, alguns
dos quais, vertidos àquela língua por um romântico como
Graham, nos dão a idéia de terem regressado à sua pátria.
No caso, não tanto pátria intelectual, como, em certo sentido,
moral, psíquica.
Além do que me parecem evidentes em Euclides da Cunha-o Euclides das
cartas sobre a expedição a Canudos - traços de influência
daquele tipo profundamente inglês ou escocês, não sei se
diga de literatura - o "diário de militar". O diário
do militar que cumpre liturgicamente o seu dever de soldado mas não renuncia
à sua consciência de protestante inquieto a refugiar-se no "diário"
como o católico no confessionário. Quando o protestante é
escocês, à necessidade de confessar-se aos outros se junta aquele
gosto de frase que um crítico nos diz, em estudo recente, ser o característico
de "celta presbiteriano". Euclides, que se sentia não só
"tapuia" e "grego" como "celta", talvez pudesse
ter acrescentado "celta presbiteriano". Mas nenhuma influência
estrangeira que se venha a precisar em Euclides, nenhuma coincidência
de orientação, de temperamento, de técnica, de atitude
mental ou de consciência que se venha a estabelecer entre ele e mestres
europeus, antigos ou seus contemporâneos, afetará no grande escritor
a originalidade essencial, feita do profundo brasileirismo e da força
incisiva de personalidade que marcam tudo que ele fez e escreveu.
Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre
a formação social do Brasil, concede importância exagerada
ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a extensão
e a profundidade da influência da chamada "economia agrário-feudal"
sobre a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário
e escravocrata na análise da nossa patologia social; e exalta a importância
do processo biológico - a mistura de raças - como fator, ora de
valorização, ora de deterioração regional e nacional
.
São recentíssimos, aliás, os estudos que vão estabelecendo
o primado do fator cultural - inclusive o econômico - entre as influências
sociais e de solo, de clima, de raça, de hereditariedade de família,
que concorreram para a formação da sociedade brasileira, em geral
e, particularmente, para as suas formas agrárias ou pastoris caracterizadas
pelo latifúndio, pela exclusividade de produção e pelo
trabalho escravo ou semi-escravo, com todos os seus concomitantes psicológicos
de agricultura sem amor profundo à terra.
Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha-a quem faltavam estudos
rigorosamente especializados de antropologia física e cultural ainda
mais que os de geologia, nos quais nos informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim
e a Rodrigo Melo Franco de Andrade, ter o autor d 'Os sertões
recebido forte auxílio técnico de Orville Derby - impressionasse
de modo particular o aspecto étnico, ou ostensivamente étnico,
da geografia humana do Brasil. Nem que, nos seus ensaios resvalasse como resvalou,
em mais de uma página eloqüente, no pessimismo dos que descrêem
da capacidade dos povos de meio-sangue - ou de vários sangues - para
se afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas
de economia, de governo e de caráter nacional. Descrença baseada
em fatalismo de raça. Em determinismo biológico.
Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides
da Cunha, o próprio Nina Rodrigues, com estudos especializados de antropologia
(e cujo diagnóstico de psiquiatria do caso do Conselheiro, Euclides seguiu
muito de perto), não escapou a exageros etnocêntricos na análise
e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos
por largos anos, quase sem retificação, por vários discípulos
do sábio maranhense; e retomados pelo professor Oliveira Viana em obra
erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já se esboçara,
com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo professor Roquete Pinto,
no sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vitima
de preconceitos cientificistas com aparência de verdades antropológicas.
Tais preconceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às
vezes o próprio Sílvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias
está cheia de contradições. Só uma exceção
se impõe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre nós,
a citar o professor Franz Boas e suas pesquisas sobre raças transplantadas.
Outra exceção: a de Manuel Bonfim, turvado, entretanto, nos seus
vários estudos, por uma como mística indianista ou indianófila
semelhante à de José de Vasconcelos, no México.
Daí não nos surpreender o pendor melancólico de Euclides
para o fatalismo de raça. Aquele seu - "ante as conclusões
do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça
superior, repontam vivíssimos estigmas da inferior... de modo que o mestiço
é, quase sempre, um desequilibrado... um decaído sem a energia
física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ascendentes
superiores" (Os sertões, 3a ed., p. 109) é bem característico
dos seus momentos de fatalismo étnico. Vê-se que Euclides da Cunha
se viu às vezes arrastado pelo que considerava a antropologia científica
na sua expressão única e definitiva, a acreditar na incapacidade
do mestiço: incapacidade biológica, fatal.
Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer
teoria de superioridade de raça. O perfil que traça do sertanejo
não é de um devoto absoluto de tal superioridade. Nem é
fácil de conceber que um homem como Euclides da Cunha, animado do culto
da personalidade humana tanto quanto do entusiasmo pelos planos arrojados de
socialização dos grupos regionais ou nacionais, pudesse ser hoje
o etnocentrista desdobrado em totalitarista que entrevêem nele alguns
críticos de belas-letras, para quem a caracterização psicológica
dos indivíduos e dos povos é um jogo fácil, ao sabor de
caprichos de momento ou de entusiasmos doutrinários de ocasião.
Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não
foi absorvente. Não o afastou de todo da consideração e
da análise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra
se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia
e de vida já mortas na Europa ocidental; traços aparentemente
cacogênicos mas, na realidade, de patologia social, que o isolamento de
populações, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral,
conservaria até os nossos dias. Aqueles fazendeiros de sertão
que o escritor conheceu a usufruírem "parasitariamente as rendas
das terras dilatadas, sem divisas fixas", eram bem o prolongamento, no
espaço e no tempo, dos sesmeiros da colônia. Uns e outros, senhores
de escravos ou de semi-escravos "perdidos nos arrastadores e mucambos".
Semi-escravos, os dos sertões, "cuidando a vida inteira, fielmente,
os rebanhos que lhes não pertencem". (Os sertões,
3a ed., p. 122.)
Aliás, é possível que o movimento messiânico de
Antônio Conselheiro tenha tido alguma coisa da revolta de oprimidos, entrevista
apenas por Euclides. Foi assim que Canudos ficou para a opinião européia
mais aguçada no diagnóstico de revoluções exóticas:
como revolta de classe oprimida. A resenha do Hachette, de Paris, para o ano
de 1897, pode ser considerada típica daquele diagnóstico quando
faz do Conselheiro - um dos raros sul-americanos que alcançaram então
fama mundial - curiosa figura de profeta que pregava "le communisme
en même temps que le rétablissement de la monarchie..."
O aspecto "comunista" e ao mesmo tempo "monarquista" encontra-se
noutros movimentos brasileiros do século XIX, classificados vagamente
como surtos de misticismo doentio entre grupos isolados: sertanejos do Nordeste,
restos de quilombolas, "fanáticos" do Contestado, europeus
mal assimilados pela civilização brasileira do litoral. Entre
os últimos, os colonos alemães e os descendentes de alemães
que, ainda sob a monarquia, esboçaram, perto de São Leopoldo,
no Rio Grande do Sul, o seu Canudos ou a sua Pedra Bonita, o seu Quebra-Quilos
ou a sua guerra de Cabanos, tendo por profeta uma mulher: Jacobina Mentz E por
ideal de organização social, certo comunismo cristão a
que talvez não fossem estranhos sugestões dos mórmons e
restos de influência da tentativa de colonização socialista
do dr. Mure, em Santa Catarina .
O próprio aspecto de sebastianismo político do movimento de
Canudos - exagerado na época pelos devotos da República mas desprezado
hoje pelos estudiosos daquele capítulo dramático de história
brasileira - está a pedir a atenção de algum pesquisador
mais pachorrento que se disponha a acompanhar - tarefa difícil - a atividade
de agentes ou de simples amadores da restauração monárquica
no nosso país, nos fins do século passado e nos começos
do atual. Agentes ou amadores a quem a revolta do Conselheiro talvez tenha se
apresentado como forca de fácil utilização política.
Tais agentes e amadores não só existiram como atuaram, às
vezes inteligentemente, a favor de sua causa. E sua atividade - se não
francamente política, de sondagem pré-política das condições
brasileiras e de colheita de dados para o que se pode hoje denominar de economia
ou sociedade planificada dentro da concepção monárquica
de reorganização da vida nacional (pois a tanto se estendeu o
preparo para a restauração do Império no Brasil na pessoa
do príncipe dom Luis, a quem não faltavam idéias moderníssimas
de governo junto com o senso político, o gosto de ação
e o entusiasmo pelas coisas brasileiras) - foi até ao interior do Brasil.
Foi até ao estudo meticuloso e literalmente germânico de zonas
remotas que somente agora estão interessando de novo aos responsáveis
pela política e pela administração do nosso país.
E foi até a tentativas francas ou sutis no sentido de atrair grandes
intelectuais do Brasil para a causa monárquica. Tentativas que alcançaram
Oliveira Lima - que chegou a ser convidado pelo príncipe para ministro
das Relações Exteriores de um possível governo monárquico
que da noite para o dia se estabelecesse no Rio de Janeiro - e se estenderam,
de modo muito vago, ao próprio Euclides.
Admitido o aspecto vagamente político de Canudos - aquela mistura de
"comunismo" com "monarquismo" - a verdade é que o
movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas:
a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e
parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama,
Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente
o da raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação
de alguns dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos
agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos.
A mesma lucidez afastou-o da exagerada idealização da atividade
missionária e política dos jesuítas - organizadores de
outros Canudos - na formação brasileira. Idealização
a que se entregaram com toda a alma Joaquim Nabuco e Eduardo Prado. A Euclides
foi preciso ter havido o Anchieta - o mesmo Anchieta no qual os historiadores
oficiais da expansão inaciana no Brasil colonial recusaram-se a enxergar
a figura máxima daqueles dias, do ponto de vista jesuítico - para
que ele, Euclides da Cunha, se sentisse reconciliado com a Companhia de Jesus.
Mas não nos antecipemos sobre este ponto.
Além de Orville Derby - que segundo Arrojado Lisboa teria fornecido
a Euclides da Cunha notas valiosas sobre a geologia do Brasil (assunto em que
o sábio norte-americano naturalizado brasileiro era mestre)- o autor
d 'Os sertões teve em Teodoro Sampaio não só um
colaborador mas um orientador no estudo de campo de geografia e de história
geográfica e colonial do Nordeste; e talvez - me aventuro a acrescentar
- um tradutor de trechos mais difíceis da língua inglesa, em cujo
conhecimento parece que Euclides da Cunha era patrioticamente fraco. No seu
"Terra sem história" (À margem da história,
1908, p. 21) surpreendo-o a traduzir drinking, gambling and lying por
"bebendo, dançando, sambando". Tradução demasiado
livre.
Um critico baiano, o sr. Carlos Chiacchio, destacou há pouco, em sugestivo
ensaio - Euclides da Cunha, aspectos singulares (Bahia, 1940) - o auxilio
prestado ao escritor d 'Os sertões por aquele seu amigo e, em
certo sentido, mestre de geografia e de história - tanto quanto Orville
Derby de geologia: Teodoro Sampaio. O próprio Sampaio recordara, em artigo
para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia
(Bahia, 1919, p. 252): "Levou-me [Euclides] algumas notas que eu lhe ofereci
sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele em 1878. Pediu-me
cópia de um meu mapa ainda inédito na parte referente a Canudos
e vale superior do Vaza-Barris, trecho do sertão ainda muito desconhecido,
e eu lho forneci. . . " E para Sampaio é que Euclides da Cunha foi
lendo depois, aos domingos, "os primeiros capítulos, os referentes
à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo",
escritos "naquela sua caligrafia minúscula". Poupou, talvez,
ao mestre de geografia a leitura das páginas mais acres de pessimismo
sobre os povos híbridos. Pedira ainda Euclides a Teodoro Sampaio "apontamentos
históricos", que - diz Sampaio naquele seu artigo - "eu assim
como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhos fornecia,
resultando disso, por acaso, esse manuscrito da lavra de nós ambos que
o instituto hoje possui, isto é, notas distribuídas em capítulos
por mim escritos na primeira parte do livro, observações outras
da lavra de Euclides, feitas com a mesma letra miudinha que ambos adotávamos
para simples anotações". Das notas de Teodoro informa o sr.
Carlos Chiacchio que se referem a "cartas régias, roteiros, alvarás,
crônicas de jesuítas, biografias, manuscritos coloniais, múltiplos
veeiros, em suma, codificados em Casal, Accioly, Pedro Taques, Araújo
Porto Alegre, Alexandre Rodrigues Ferreira, pesquisas e documentos de institutos,
bibliotecas, arquivos de Rio e Bahia, tudo isso esmerilhado, escoldrinhado,
loteado e recolhido não em um ou dois ou três anos de afogadilho
mas longamente, metodicamente, pertinacissimamente".
Juntando-se a colaboração do paciente pesquisador de geografia
física e humana e de história colonial do Brasil que foi Teodoro
Sampaio à do geólogo Orville Derby e, ainda, à orientação
do psiquiatra Nina Rodrigues quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos
fanáticos de Canudos o próprio esforço de pesquisa de Euclides
nos arquivos da Bahia, e, de campo, no interior do estado, vê-se como
é precária a posição dos que ingenuamente exaltam
n'Os sertões um livro improvisado. Nem improvisado nem fácil.
Nem tampouco caprichosamente individual, de quem tivesse se retraído
dos especialistas seus amigos ou conhecidos para escrever sozinho um livro de
tamanha complexidade.
Nas suas pesquisas de técnico, no extremo Norte, Euclides da Cunha
teve outro bom colaborador, este seu primo e, como Teodoro, amigo íntimo:
o engenheiro Arnaldo Pimenta da Cunha.
Do então jovem engenheiro Pimenta da Cunha é que escreveu a
José Rodrigues Pimenta da Cunha - pai de Arnaldo e tio de Euclides -
o médico da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus: "A
parte técnica da comissão foi muito principalmente obra sua. Foi
talvez o anjo tutelar do chefe. . . " De modo que colaborações
técnicas de amigos não faltaram ao grande escritor.
É de Euclides esta caracterização de sua própria
vida: "romance mal arranjado". Nesse "romance mal arranjado"
um dos seus maiores consolos foi decerto o da amizade. Amizade que mais de uma
vez se estendeu em colaboração ou em auxílio técnico
dos amigos - dos mais jovens como dos mais velhos - nas pesquisas e nos trabalhos
necessários a ensaios de modo nenhum improvisados. Raro o escritor, o
artista ou o cientista que tenha tido amigos e colaboradores tão bons
como os que Euclides da Cunha teve na Bahia e no Amazonas, em São Paulo
e no Rio.
Nas suas viagens de aventura científica, à saudade dos filhos
se juntou sempre a dos amigos: "as imagens dos amigos constantemente evocadas
e cada vez mais impressionadoras à medida que se aumentam as distancias".
E aos amigos - diz numa carta a Oliveira Lima - aos amigos "elejo-os sempre
incorruptíveis confessores desta minha vida". A Vicente de Carvalho
escreve meses antes de ser assassinado no Rio: "Tranqüiliza-me, homem!
Imagina as atrapalhações em que vivo...."
O crítico baiano Carlos Chiacchio me parece acertar na interpretação
da angústia de Euclides da Cunha, já fixada pelo sr. Elói
Pontes, num livro que é um esforço admirável de reconstituição
da personalidade do autor d 'Os sertões: a falta de um amor. Angústia
atenuada pela constância dos amigos e pelos encantos da aventura científica
nos ermos: "o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador.... o sertão....
e a vida afanosa e triste de pioneiro". E não a "Europa, o
bulevar, os brilhos de uma posição". O que não o impediu
de ter pensado muito na Europa - que teria sido para ele outra espécie
de ermo. Nem de se apresentar candidato à Academia Brasileira de Letras.
Sente-se, na sua correspondência, que Euclides da Cunha procurou em
vão a imagem que prolongasse na sua vida de adulto triste a da mãe
morta quando ele tinha apenas três anos; e idealizada pelo órfão
numa espécie de Nossa Senhora das suas dores de menino, das suas esperanças
de adolescente, dos seus sonhos de adulto mal definido. Cuidou encontrar a imagem
ideal na "República" - para ele e para o seu quixotismo quase
pessoa, quase mulher, quase Dulcinéia: tanto que a confundiu com a figura
de moça que mais o impressionou na mocidade. Mas a confusão durou
pouco. A identificação do símbolo com uma figura particular
de mulher não foi além do seu desejo. Nem era possível
que esse sonho de homem romântico e talvez neurótico tivesse inteira
realização.
Daí o narcisismo confundido com o apego à figura ideal de mulher
que parece o ter acompanhado sempre: até em visões sob a forma
de um "vulto branco de mulher" (Coelho Neto), de uma "dama branca"
(Firmo Dutra), de uma mulher "de asas abertas, ora descerrando reposteiro
escuro e pesado, em salão de luxo, vestida de túnica, ora envolvida
em levíssimas vestes, toda de alvo, igualmente com asas, munida de trombeta
e já agora numa espécie de bosque" (A. Pimenta da Cunha).
Narcisismo, o seu, deformador de sua visão da natureza e dos homens dos
sertões. Deformador, porém, no sentido de acentuar a realidade
congenial. No sentido de estilizá-la. Deformador no sentido profundamente
realista da arte só na aparência violentamente mórbida de
El Greco.
Como tantos brasileiros do tempo do Império - o próprio imperador,
talvez - e dos seus dias de homem feito - parece que o próprio Rio Branco
- Euclides da Cunha foi um indivíduo que nunca se completou em adulto
feliz ou em personalidade madura e integral, a quem a colaboração
doce e inteligente, ou simplesmente a inspiração constante de
uma mulher, tivesse acrescentado zonas de sensibilidade, de compreensão
e de simpatia humana, que o homem sozinho não percorre senão angustiado;
ou não percorre nunca.
É possível que do incompleto de sua vida tenha resultado o enriquecimento
de sua obra e da nossa literatura, pela exploração e intensificação
de zonas particularíssimas de sensibilidade e de compreensão da
natureza e do homem tropical. Afinal, não é uma frase de efeito
a que atribui à angústia, ou ao desajustamento do indivíduo
ao meio, um singular poder criador. Aos homens de gênio como Robert Browning
- que completado pela sua querida Ba foi o equilíbrio, a saúde,
a alegria, a sociabilidade, a felicidade em pessoa - se opõem, mesmo
fora do Brasil terrivelmente monossexual na sua formação, exemplos
de indivíduos que produziram grandes obras à sombra de angústias
enormes a eles impostas pela falta ou pelos erros de amor. Nos seus desajustamentos,
como que se desenvolveram condições favoráveis à
produção de obras intensas de arte, de ciência e de pensamento.
Mas esses exemplos não nos devem fazer esquecer os daqueles que completos,
integrais e felizes é que produziram grandes obras: obras de valor permanente
e de significação universal. Esses são os grandes homens
completos.
Euclides quase nada teve desses homens completos, bem equilibrados e saudáveis,
de que Nabuco foi, no Brasil, uma expressão magnífica. O autor
d'Os sertões foi um homem com uma grande dor, nem sempre disfarçada
nas cartas aos amigos nem nos livros que escreveu. Retraído e calado,
era um indivíduo triste para quem a vida tinha poucos encantos; a quem
o mundo oferecia raras alegrias. Natural, portanto, que não gostasse
de Nabuco: o Nabuco bonito, elegante, mundano, afrancesado, idéias e
roupas à inglesa, que lhe parecia artificial tanto que numa de suas conversas
com Oliveira Lima - dom Quixote gordo, com quem seu quixotismo de magro tinha
tantas e tão profundas afinidades - comparou o autor de Minha formação
a um "ator velho". Pelo menos a voz: voz de ator velho. Por sua vez
Nabuco achava que Euclides como que escrevia com um cipó.
O brasileirismo intensamente concentrado, retorcido e agreste de Euclides
da Cunha se apresenta melancolicamente incompleto em suas expansões e
em suas afirmações. Ele foi o "celta", o brasileiro,
o baiano raro que não riu: ou riu tão raramente que nunca o imaginamos
rindo nem mesmo sorrindo. Ao contrário do brasileiro típico -
isto é, o típico em cuja composição entrasse a quase
totalidade dos subtipos regionais - não foi nenhum "homem cordial",
de riso fácil e gestos camaradescos; nem nenhum guloso de mulheres bonitas
ou simplesmente de mulheres, do gênero que se extremou em Maciel Monteiro
e se vulgarizou em Pedro I, a quem as próprias molecas interessavam.
Nem mesmo um simples guloso de doces, de bons-bocados, de quitutes feitos em
casa. Varnhagen cozinheiro e Rio Branco regalão, curvados em mangas de
camisa sobre alguma peixada à brasileira, devem lhe ter parecido ridículos.
Varnhagen quituteiro - ridículo e até desprezível para
a sua masculinidade convencional de he-man e para a sua temperança
de caboclo ou "tapuio".
Teodoro Sampaio contou-me urna vez - por sinal que à sobremesa de um
excelente jantar de peixe de coco em casa de Aníbal Fernandes, organizado
e presidido pela artista ilustre do tempero e não apenas da pintura que
é dona Fedora - que Euclides da Cunha era a tortura das donas-de-casa.
Traço da personalidade do grande escritor que aquele seu mestre e amigo
baiano já registrara em artigo na Revista do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia (p. 253): "À mesa o Euclides era
um torturado a quem as iguarias faziam mais medo do que as carabinas da jagunçada
revolta. Comer fosse o que fosse era-lhe um tormento, por mais inocente que
lhe parecesse a iguaria e isso notei-lhe sempre, antes como depois de sua visita
a Canudos." E ainda: "Não tinha prazer à mesa, onde
se assentava, de ordinário, conviva taciturno e desconfiado e neste estado
de espírito tudo lhe servia de escusa aos obséquios e oferecimentos.
- Que é que se há de oferecer a Euclides? Era a pergunta da dona
da casa toda vez que se aguardava a visita do autor d'Os sertões.
E o Euclides, a bem dizer, só se considerava tranqüilo à
mesa, quando nada via de especial a se lhe oferecer."
Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços
à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à
pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão
à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas
de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis
de Goiana, açaí, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão,
nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos
de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça
ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas quedas-d'água dos rios
de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclides
da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às
esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua
do Ouvidor à menor botica do centro de Goiás. Principalmente dos
baianos - dos quais Euclides procedia, embora sua personalidade se enquadre
menos no tipo regional do baiano do Recôncavo que no do sertanejo. "Raro
na palestra se animava" - é a informação que nos dá,
a esse respeito, Teodoro Sampaio, que acrescenta: "Não era verboso,
nem álacre, nem causticante no discretear ordinário. Preferia
pensar, refletir, ouvir antes que dizer, o que traía natural propensão
mais para colher do que para dispartir as jóias do seu espírito."
Aqui se impõe um esclarecimento: causticante, Euclides da Cunha o era,
e muito; parente, na mordacidade, daquele outro caboclo retraído mas
bisbilhoteiro a seu jeito de songamonga, Capistrano de Abreu, do qual já
se disse que se todas as suas cartas fossem publicadas dissolvia-se a Sociedade
Capistrano de Abreu, Euclides foi às vezes terrível nessa outra
forma de "discretear ordinário" que é a carta, a conversa,
o gossip com o amigo distante, a correspondência. Que sirvam de
amostra alguns trechos de cartas suas a Gastão da Cunha, conservadas
no arquivo do diplomata mineiro, do qual Rodrigo M. F. de Andrade, em transcrições
publicadas em 1926, n'O jornal, nos deixou entrever a natureza vulcânica.
Esse pendor para o comentário vivo, às vezes agreste e até
cruel às figuras do dia, não se manifesta sempre na correspondência
de Euclides, da qual Venâncio Filho publicou recentemente, em livro, trechos
interessantes. É nas cartas mais íntimas a amigos também
causticantes - como Oliveira Lima e o já referido Gastão da Cunha
- que o pendor de Euclides para aquela espécie de comentário ou
de cavaco mais cru melhor se revela.
Como todo estudioso da formação brasileira, Euclides da Cunha
teve de defrontar-se com a figura do missionário jesuíta e com
a vasta obra de arquitetura social da Companhia de Jesus na América.
Saliências da nossa história de uma sedução particular
para quem tinha, como Euclides, a obsessão quase bizantina do escultural
e, em arquitetura - material ou moral - o gosto dos arrojos verticais. E nesses
arrojos o missionário jesuíta na América portuguesa excedeu
ao colonizador. Quer nos seus planos, em parte realizados, de construção
intelectual de elites e de segregação de indígenas dispersos,
quer no sentido concretamente arquitetônico de edificações
de pedra e cal, logo que lhes foi possível o emprego de material nobre
no levantamento de igrejas e colégios.
No colonizador português o sentido de construção quase
sempre se contentou com o "terrivelmente chato" da arquitetura "feia
mas forte" das casas-grandes do interior e dos sobrados do litoral. Sentido
que se exprimiu no horizontal monótono mas sólido que caracteriza
as linhas da nossa chamada arquitetura colonial de preferência ao vertical
dos palácios de Lima e das catedrais da América espanhola.
Não foi, entretanto, por influência dessas suas predisposições
acentuadas para a admiração dos arrojos verticais de construção
- quer no sentido real, quer no figurado - que Euclides se deixou "reconciliar"
com a Companhia de Jesus, cuja história européia, lida talvez
superficialmente, tanto lhe repugnara. E aqui nos surpreende o paradoxo que
marca o humanismo do escritor a prevalecer sobre o seu verticalismo de geômetra:
a "reconciliação" se operou através da figura
lírica de Anchieta - o menos típico daqueles jesuítas dramáticos
que enchem a história do Brasil de uma gravidade mais castelhana do que
portuguesa. O menos dramático e o mais lírico. Foi entretanto
o suficiente para que Euclides da Cunha descobrisse na Companhia de Jesus na
América a negação maciça de sua ação
na Europa, para ele repugnante nos aspectos políticos: "Incoerente
e sombria, pregando, no século XVI, exageradamente, através da
justificação singular da estranha teoria do regicídio de
Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania
quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre
os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação
de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas
intrigas - ela foi, na América, coerente na missão civilizadora
e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica
e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos
do Evangelho." ("Anchieta", em Contrastes e confrontos,
3a ed., p. 128.)
O trecho é bem característico de Euclides da Cunha orador: passa
de repente do tom quase maçônico de inimigo da companhia ao de
panegirista da obra do jesuíta na América. Mas mesmo assim - repito
- a generalização enfática nos deixa ver um Euclides superior,
neste particular, em lucidez crítica, àqueles dois ensaístas
seus contemporâneos - Joaquim Nabuco e Eduardo Prado - ainda mais que
o autor d'Os sertões turvados, em algumas de suas páginas
mais famosas de evocação do passado brasileiro, pela exaltação
sentimental do missionário da S. J. ou pelo ardor apologético
de entusiastas da companhia.
Há evidentemente nas páginas comovidas de Euclides sobre Anchieta
o desejo de "fixar em bronze" - sempre o artista a querer pôr
a estatuária simplificadora a serviço das complexidades da história
ou da biografia - a figura enternecedoramente lírica do padre mestiço,
que o escritor d'Os sertões - contra interpretações
mais autorizadas e melhor documentadas - considerou típica dos ideais
e da ação missionária dos inacianos no Brasil. E bem pouco
do animo ou do espírito tranqüilamente crítico diante daqueles
ideais e daquela ação em suas relações com o desenvolvimento
do Brasil em nação mestiça e em cultura plural. Ânimo
ou espírito de que se encontram melhores evidências noutros trabalhos
do autor de A margem da história.
Não se compreenderia, aliás, dentro da crítica psicológica
dos processos de acomodação de antagonismos sociais e de cultura
(crítica que se mostra tão útil em completar a simplesmente
histórica dos atos humanos), exceção tão considerável
como a que Euclides sugere para a ação da companhia na América.
Sociedade diversa na sua técnica de catequese e de política -
uma na Europa, outra no Oriente, ainda outra na América - a Companhia
de Jesus foi, e é ainda, por toda a parte, a mesma nos seus fins corajosamente
militantes e agudamente combativos a favor de uma ortodoxia católica
definida quase sempre a seu jeito pelos seus próprios e vigorosos teólogos;
sempre a mesma, também, nos seus esforços de absorção
de prestígio dentro e fora da Igreja. Esforços que no Brasil,
como noutros países da América, levaram a companhia a conflitos
com os governos, com o próprio rei, com os bispos, com as outras religiões
ou ordens. E as "missões" ou "reduções",
cuja sombra de obra monumental ainda hoje se projeta sobre a paisagem e a cultura
do extremo Sul do Brasil, dificilmente podem ser apresentadas como exemplo de
técnica persuasiva de evangelização e de método
de assimilação lenta de uma cultura por outra.
Ao contrário: nelas se antecipou, do ponto de vista de pura experimentação
sociológica de formas, a técnica moderna de sujeição
por todos os meios - inclusive a reeducação da gente grande através
das crianças - de grandes massas humanas a determinados modos de vida
e a estilos improvisados de associação e de arte considerada social;
de rápida arregimentação das massas em grupos operosos
de artífices. Artífices quase sem tradições de grupo,
por um lado, e sem espontaneidade individual na sua expressão artística
e religiosa, por outro: a pessoa de cada um sacrificada ao interesse considerado
geral; e esse interesse imposto quotidianamente ao todo pelos executores da
ortodoxia sociológica desdobrada da teológica.
A "história dolorosa das reduções jesuíticas"
a que se refere Euclides - tomando vicariamente por um instante as dores do
indígena do qual ficou até hoje o grito romântico: "me
mata mas não me reduz" - é, ainda, um capítulo a escrever
na história antropológica dos primeiros contatos dos europeus
com os ameríndios; e também um capítulo na história
das grandes experiências sociológicas não só de economia
como de cultura dirigida. E quando esse difícil capítulo da história
da cristianização da América e da socialização
do mundo moderno for escrito, é possível que se confirme a sugestão
esboçada aqui: nas "reduções", os jesuítas
se anteciparam em métodos de arregimentação de massas,
empregados na civilização rápida de povos chamados naturais
- métodos verdadeiramente admiráveis, na sua pureza técnica,
como esforços de ordenação externa e até certo ponto
interna da vida - a modernos experimentadores da Europa.
A atualidade da técnica dos jesuítas das "reduções"
é vivíssima: na América eles tentaram há três
séculos, com povos primitivos, o que agora se tenta na Europa com povos
de cultura avançada. É certo que para Euclides da Cunha o resultado
da obra jesuítica das "missões" ou "reduções"
foi "matar", pelo menos, um povo: o paraguaio (À margem
da história, p. 342). Conclusão que me parece tão exagerada
quanto, no sentido contrário, aquela outra já citada: de que na
América os jesuítas só fizeram seguir "a trajetória
retilínea do bem", tendo sido todos uns Anchietas cândidos
e seráficos.
Na história das grandes experiências sociais no sentido da planificação
maciça da vida humana, os padres da companhia - repita-se - têm
lugar de relevo entre os pioneiros, pela obra realizada na América com
um vigor que muitas vezes contrariou o desenvolvimento do Brasil na nação
mestiça e na cultura plural e democrática que é hoje: mas
que foi, entretanto, obra monumental; e não só de destruição
como de ordenação de vida. Mostraram aqueles padres - talvez mais
"mágicos" do que "lógicos" - três séculos
antes de Pareto, de Sorel, de Marx, o que se pode conseguir pela violência
inteligentemente empregada e pela utilização de novos mitos, no
sentido da despersonalização de homens e da sua socialização
rápida. Uma experiência de enorme interesse para as ciências
sociais. Pede um estudo à parte.
Vários críticos modernos, especializados no trato mais jornalístico
do que científico de assuntos sociológicos e políticos,
ao comentarem organizações atuais da Europa, não hesitam
em filiá-las, talvez com precipitação, à tradição
do método jesuítico de ação dissimulada e sinuosa,
mas penetrante e eficaz (tradição limitada arbitrariamente por
Euclides da Cunha à história européia da companhia): tal
o caso de Elizabeth Wiskemann, em recente artigo no The spectator, de
Londres (12 de janeiro de 1940), intitulado "The Jesuits to-day".
E o professor Harold Laski, cujo nome reúne à responsabilidade
de escritor a de mestre respeitado, em universidades inglesas e americanas,
de direito público, no livro Communism (Home University Library,
1927), compara os comunistas russos, no seu uso alternado de persuasão
e de força externa, com os jesuítas. Com os jesuítas na
Espanha e com os jesuítas na América do Sul.
A verdade é que os S. J. na América do Sul não foram
todos os homens cândidos da generalização de Euclides da
Cunha, mas, vários deles, astutos e sutis; e alguns duros e até
violentos. Dificilmente se imagina um Antônio Vieira - intrigante como
ele só e tipo por excelência do "diplomata secreto",
tantas vezes às voltas com hereges e em confabulações quase
idílicas com judeus ricos de que o historiador João Lúcio
de Azevedo pode surpreender traços interessantíssimos - dentro
da classificação de "cândido misticismo". Nem
era tão cândido o próprio Anchieta que desconhecesse a necessidade
realisticamente pedagógica de empregar no trato com os índios
do Brasil e na sua educação a palmatória ou a vara.
A ação da Companhia de Jesus na América colonial - e
dizemos na América porque ela primou em ser transnacional, na América
do Sul identificando-se de preferência, mas sempre de acordo com suas
necessidades e aspirações, com o interesse espanhol, contrariando
mais de uma vez o dos portugueses - é fenômeno diante do qual o
estudioso ou o observador encontra hoje imensa dificuldade em conservar-se calma
e objetivamente crítico. Nada mais ridículo nem mais irritantemente
vulgar que a atitude dos que, em face da capacidade revelada pelo jesuíta,
na América como na Europa e no Oriente, para levantar obras verdadeiramente
monumentais, se fecham maçonicamente a toda admiração que
o esforço extraordinário dos padres da companhia desperta. Mas
no Brasil o extremo oposto é que tem prevalecido; de modo que o menor
esboço de crítica à ação jesuítica
entre nós - crítica histórica completada pela crítica
psicológica - ou a menor tentativa de interpretação sociológica
daquele esforço, ainda que simpática à companhia e até
impregnada de admiração pelos seus grandes missionários,
toma o ar de um ataque ou de uma oposição sistemática à
S.J.
De Euclides da Cunha não se pode dizer que, no seu artigo cheio de
ternura por Anchieta, nos tenha deixado um esboço sequer de interpretação
crítica da Companhia de Jesus nas suas relações com o Brasil,
com o ameríndio, com o mestiço, com o africano. Nada que se aproxime
da análise iniciada por Gonçalves Dias, o indianista de quem o
exagero indianófilo fez um agudo observador da ação jesuítica
na América lusitana, sensível aos aspectos - geralmente esquecidos
- da opressão do índio em algumas das "missões"
e de sua artificialização em cristãos in vácuo.
Análise esboçada na obra em que o poeta maranhense revelou cultura
científica ao lado de uns começos de humanismo sociológico
e de um brasileirismo amplamente cultural - e não apenas político
ou estreitamente cívico - surpreendentes para a época. Dentro
de semelhante orientação, teria de encontrar, como de fato encontrou,
aspectos da obra jesuítica em conflito com os interesses autenticamente
brasileiros de organização social democrática e de cultura
pluralista.
É pena que justamente o manuscrito do estudo especializado de Gonçalves
Dias sobre os jesuítas no Brasil tenha desaparecido. Mas o que nos deixou
a respeito daqueles missionários e de suas relações com
os indígenas é fortemente sugestivo. O maranhense se antecedeu
a Euclides na fixação de pontos de partida importantes para o
estudo do pluralismo cultural brasileiro, cujo inicio o jesuíta, com
seus planos de segregação de uma raça inteira para seu
aperfeiçoamento em devotos da companhia, contrariou poderosamente, ainda
que sob a influência de boas e piedosas intenções evangélicas
.
Logicamente é quem devia ter continuado o trabalho de Gonçalves
Dias, sobre as relações dos missionários com os indígenas:
Euclides da Cunha. O trabalho de Gonçalves Dias e o de Couto de Magalhães.
Não o continuou. Deixou-nos, apenas, sobre o assunto, alguns reparos
críticos de rara lucidez, entre generalizações perigosamente
enfáticas. Não digo reparos de absoluta objetividade porque Euclides
da Cunha tinha o seu ponto de vista: o da formação brasileira.
E o ponto de vista é, num estudioso de assunto histórico - social,
aquele "aspecto subjetivo" da definição de Farris da
personalidade com relação à cultura.
A história da Companhia de Jesus no Brasil não se fará
nunca, sem que à obra de um padre Serafim Leite - notável pela
abundância de sua documentação, reunida, selecionada e interpretada
do ponto de vista jesuítico - corresponda o alongamento e o aprofundamento
dos estudos de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães e João
Lúcio de Azevedo. Entre esses estudos, as páginas de Euclides
ligadas ao assunto vivem pela intensidade do "são brasileirismo"
que as anima. "São brasileirismo" creio que para o criador
da expressão - Sílvio Romero - terá incluído "espírito
crítico"; e este nem nas páginas mais subjetivas, pessoais
e nacionalistas do autor d 'Os sertões, desaparece de todo. É
o que explica o fato do enternecimento pela figura de Anchieta não ter
feito dele o louvador sem discriminação nem reserva do jesuíta
na América que foi Eduardo Prado.
Aliás, a própria atitude dos que hoje se aproximam do assunto
do ponto de vista jesuítico mas com espírito crítico e,
tanto quanto possível, científico - o caso do erudito autêntico
que é o padre Serafim Leite - já se vai tornando, em Portugal
e no Brasil, aquela atitude de discriminação característica
de toda análise de história social orientada cientificamente.
Digo em Portugal e no Brasil, porque noutros países semelhante atitude
já não é novidade nenhuma entre os padres que se ocupam
com seriedade de assuntos históricos; e em 1933 um ilustre jesuíta,
o padre H. Heras, estudioso da história da companhia na Índia,
pôde escrever, em resposta a críticas do historiador Bóies
Penrose aos métodos de conversão empregados pelos S. J. no Oriente
- críticas que constam da introdução escrita por Penrose
a documentos do século XVII reunidos no livro Sea fights in the East
Indies in the years 1602-1639 (Harvard University Press, 1931) - palavras
que aqui soariam escandalosas: "O autor é ele próprio jesuíta,
mas o primeiro a reconhecer os defeitos dos seus confrades, desde que bem sabe
que embora todos eles se esforcem para adquirir santidade, nem todos são
santos, e conseqüentemente podem errar e têm efetivamente errado
em muitas ocasiões." Palavras que no original inglês se encontram
à página 2 da introdução do padre Heras ao seu ensaio
The conversion policy of the Jesuits in Índia (Bombaim, 1933).
Fixam uma atitude que é hoje, entre nós, brasileiros e portugueses,
a do padre Serafim Leite; mas ele quase sozinho entre os jesuítas brasileiros,
portugueses e indianos; e, principalmente, entre os seus apologistas leigos
menos letrados, constituídos numa espécie de seita que um malicioso
já chamou de afro-brasileira, tal o seu simplismo intelectual. São
extremistas que pretendem fazer do passado da companhia na América história
sagrada, da qual só se possa e se deva dizer bem.
Euclides da Cunha, pelos seus reparos à ação dos jesuítas,
não só na Europa como na América, é dos que os expoentes
de semelhante extremismo - se lhe conhecessem bem a obra - colocariam entre
os "inimigos da Igreja" e até do Cristo. Não porque
faltasse a Euclides admiração pelo esforço dos jesuítas;
mas porque essa admiração não foi absoluta. Quando a verdade
parece ser que Cristo teria aprovado antes a política de contemporização
com as culturas indígenas dos portugueses na América e dos próprios
jesuítas no Oriente - política de que resultou, no continente
americano, o Brasil vasto, pluralista e democrático de hoje - do que
a de segregação, dos mesmos jesuítas - no Paraguai, nos
Sete Povos e no Grão Pará - e da qual, evidentemente, não
teria resultado o Brasil nosso conhecido . Quando muito alguns Brasis isolados,
uns inimigos dos outros. Aqui entra o subjetivismo brasileirista na interpretação
da história da companhia e da história do Brasil. Desse subjetivismo
a obra de Euclides está impregnada.
Dentro desse subjetivismo de brasileiro, mas, ao mesmo tempo, com objetividade
na análise particular de assuntos sociais, é que Euclides da Cunha
dedicou tão grande atenção ao problema da terra e do homem
do Brasil. Ora temendo a incapacidade do mestiço para progredir dentro
dos padrões de progresso da nossa época e num meio físico
como o do Brasil tropical - meio quase tão hostil ao mestiço e
ao próprio indígena quanto ao branco pela "copiosa exuberância
de vida vegetal".... "favorecida por um ambiente impróprio
à existência humana"; ora otimista e desanuviado de "temores
vãos", proclamando as virtudes - até contra possíveis
tentativas de ocupação militar do país - dos "destemerosos
sertanejos dos estados do Norte, que há vinte anos estão transfigurando
a Amazônia" ("Contra os caucheiros", Contrastes e confrontos,
p. 233) e apontando ao Brasil a necessidade da "redenção
maravilhosa dos territórios", pelo emprego, por nós próprios
e numa obra que se poderia chamar hoje de autocolonização, das
técnicas desenvolvidas nos trópicos pelos povos imperialistas
em "milagres" - a expressão é de Euclides - "da
engenharia e da biologia industrial". ("Plano de uma cruzada",
Contrastes e confrontos, p . 177)
Poderia ter acrescentado - da higiene, da administração, da
saúde pública, da medicina social. Que tudo isso pode e deve ser
mobilizado a favor da redenção dos territórios e dos povos
considerados inferiores de modo absoluto quando sua inferioridade é afinal
relativa. Redenção, no caso dos nossos territórios e das
nossas populações indígenas e mestiças mais desprezadas,
não só de largo sentido humano, cultural e social, mas brasileiro.
Este último sentido nunca faltou ao engenheiro social animado de ideal
político que foi Euclides da Cunha. Para ele, a assistência àquelas
populações e a redenção daqueles territórios
não eram obras inspiradas numa vaga piedade humana, por um lado, nem
numa mística de progresso material ou de tecnicismo puro, por outro.
Quando se refere, por exemplo, à região entre o Madeira e o Javari
como "remotíssimo trecho da Amazônia onde não vingou
entrar o devotamento dos carmelitas" nem o que chama "a absorvente
atividade meio evangelizadora, meio comercial dos jesuítas" ("Entre
o Madeira e o Javari", Contrastes e confrontos, p. 234), trecho
de território brasileiro agitado depois - nos últimos trinta anos
do século XIX - por "vertiginoso progresso", é para
salientar a necessidade da engenharia e da técnica serem utilizadas a
favor da unidade brasileira, não deixando o Brasil zonas como aquela,
remotas mas progressistas, isoladas do resto do país: acabariam destacando-se
de nós. A preocupação brasileira. O ponto de vista brasileiro.
O sentido brasileiro dos problemas de geografia e de sociologia. A mística
da unidade brasileira a inundá-lo de uma ternura especial pelo indígena,
pelo caboclo, pelo nativo, pelo Amazonas, pelo Acre, pelo Ceará, por
Anchieta, por Diogo Antônio Feijó, por Floriano Peixoto, pela viação
férrea, pelo telégrafo, pelo barão do Rio Branco. Brasileirismo
que foi o principal "aspecto subjetivo" da obra de Euclides da Cunha:
a marca mais forte de sua personalidade em relação com a cultura
científica e técnica do seu tempo e com a academicamente humanista
e aristotélica ou platônica do passado, pelo qual se alongou sua
análise de estudioso de problemas sociais.
O seu socialismo não o desprendeu do Brasil. Não foi nunca,
é certo, um nacionalista estreito. Mas não seguiu o conselho daquele
espanhol, adepto do amor livre, que recomendava às novas gerações
a adoção dessa e de outras liberdades mais ou menos sedutoras:
mas pelas filhas dos outros; não pelas suas. Atitude muito de certos
teóricos do socialismo, por um lado, e do cientificismo, sociológico
e histórico, por outro: recomendam a objetividade absoluta aos outros
- principalmente aos literatos dos países pequenos. Eles, porém,
conservam-se terrivelmente subjetivistas com relação às
suas poderosas pátrias ou semipátrias; ou aos seus sistemas ideológicos
ou semi-ideológicos.
2. Revelador da realidade brasileira
De Euclides da Cunha se pode hoje afirmar que é um dos escritores brasileiros
que maior influência vêm exercendo sobre a gente do seu país
e maior atenção da parte de estrangeiros vêm atraindo para
a cultura, em geral, e para as letras, em particular, de um ainda obscuro Brasil.
Dois seriam hoje seus rivais, mais nessa espécie de influência
do que nesse poder de sedução sobre estrangeiros: José
de Alencar e Machado de Assis. Ambos menos carismáticos que o autor d'Os
sertões. O que é certo também dos poetas nacionais
que até hoje têm alcançado maior irradiação
dentro e fora do Brasil: nenhum deles parece igualar o estranho ensaísta
em carisma ou o exceder em influência.
É difícil de explicar a constância dessa influência
de Euclides. Difícil de explicar a irradiação do carisma
ou do quase-carisma que vem assinalando a presença de Euclides da Cunha
tanto na vida como nas letras do nosso país. Pois se há escritor
brasileiro de quem se possa dizer que é carismático, esse escritor
é o autor d'Os sertões: artista difícil, como nenhum,
de ser separado da sua condição de homem e da sua especialidade
de técnico. Seu perfil anguloso de homem terrivelmente magro emerge há
anos das ilustrações dos compêndios de literatura brasileira
com alguma coisa de ascético e de profético a acentuar-lhe o prestígio
e a marcar-lhe a sedução que suas letras e o drama da sua vida
e a tragédia da sua morte vêm exercendo sobre a imaginação
de já mais de duas gerações de brasileiros; e, ultimamente,
até sobre estrangeiros voltados para literaturas exóticas do sabor
ainda indefinido da brasileira.
Entretanto, é escritor difícil, este: ouriçado de adjetivos
que antes o afastam que o aproximam do leitor moderno. Difícil e arrevesado.
Discípulo, a seu modo, do Gracián que foi o ibero até hoje
de maior influência sobre os pensadores germânicos, chega às
vezes a um preciosismo que quase se confunde com o dos escritores além
de cientificistas, pedantes: de um cientificismo pedante e irritante.
A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. Transpôs
para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu
num estilo não só barroco - esplendidamente barroco - como perigosamente
próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório,
do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos:
deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos;
salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais, de extremos de má
eloqüência que o teriam levado à desgraça literária
ou ao fracasso artístico. Que o teriam tornado outro Coelho Neto.
É um escritor cujo gosto, sem ser o convencionalmente bom, dos clássicos
medidos e claros, nos dá a idéia de estar sempre em perigo: o
perigo de tornar-se absolutamente mau. Mau segundo todos os padrões:
os clássicos e os anticlássicos. Apenas esse risco nunca se realiza
de todo. Nunca passa inteiramente de risco à desgraça literária.
O autor d 'Os sertões nunca chega a ser catastrófico em
seus colapsos de má eloqüência. Euclides da Cunha não
nos desaponta em momento algum com uma só expressão de inconfundível
mau gosto; ou de indiscutível preciosismo; ou de absoluto gongorismo.
O que nele é freqüente é o gosto duvidoso, ambíguo
e, por conseguinte, discutível.
Talvez por aí se explique a sedução ou o encanto com
que ele vem há mais de meio século envolvendo tanto o leitor brasileiro
de elite - que se inquieta com aqueles riscos mas se regozija com o quase constante
triunfo do autor d 'Os sertões sobre os inimigos das suas virtudes
literárias - como o leitor simplesmente atraído pelo que há
de menos nobre nos jogos estilísticos do verbo às vezes quase
execravelmente oratório do grande escritor; na sua eloqüência
por vezes enfática; na sua adjetivação quase sempre crespa,
estridente, mais aguda do que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrências
de efeitos teatralmente musicais.
Euclides foi escritor que escreveu quase sempre declamando: às vezes
declamando tão alto que se tornou uma espécie de Hall Caine -
o Hall Caine de quem dizia Oscar Wilde que falava tão alto que não
se fazia entender direito: era apenas ouvido. Ouvido, Euclides vem sendo há
mais de cinqüenta anos por muitos dos que o vêm lendo; entendido
por outros tantos; admirado por quase todos. Pois é escritor dos que,
mesmo quando não são plenamente entendidos, são agradáveis
de ser ouvidos através do que escrevem. Escritores nascidos com boa voz.
Nascidos escritores sonoros e que potentemente sonoros se consservam, mesmo
quando suas mensagens perdem a potência intelectual.
Carlyle foi escritor desse feitio, e sua voz ainda hoje é ouvida com
entusiasmo por muitos dos que o lêem. Macaulay, também. E, em língua
francesa é não só o caso extremo de um Victor Hugo ou de
um Chateaubriand como, sobretudo, o de um superior Jean-Jacques Rousseau, cujas
próprias e pungentes confissões nos chegam aos olhos, ferindo-nos
os ouvidos de modo tão saborosamente persuasivo que perdoamos sem esforço
ao pecador os pecados que confessa em voz tão bela e em palavras tão
lúcidas.
Euclides da Cunha não nos confessou em página alguma os próprios
pecados: denuncia com voz às vezes bíblica e de profeta mais do
Velho que do Novo Testamento - os crimes de alguns dos - brasileiros, seus contemporâneos;
e opressões, a seu ver, sofridas de seus próprios patrícios
por outros brasileiros, com os quais se identificou de algum modo o escritor
um tanto quixotesco em seus rasgos empáticos. É que tendo se sentido
vítima ou mártir, ele próprio, da elite política,
social, econômica, literária, dominante na jovem República
de 1889, fácil foi a Euclides identificar esse seu personalíssimo
sentimento com o dos sertanejos da Bahia revoltados contra a civilização
do litoral. Revolta justa, segundo ele. Tanto que para justificá-la chegou
ao extremo de diminuir as virtudes dos militares da República.
E certo de terem sido os sertanejos de Canudos vítimas ou mártires
de uma elite desorientada-a dos homens do litoral - é que Euclides da
Cunha escreveu suas páginas mais vibrantes de revelação
de um Brasil - o sertanejo - quase ignorado pelos próprios brasileiros:
os da capital federal, os de São Paulo, os de Salvador, os do Recife,
os de Porto Alegre, os de Belém.
Precisamente a propósito de Canudos, apareceu em 1958, no Rio de Janeiro,
uma "análise reivindicatória da campanha de Canudos",
intitulada A verdade sobre "Os sertões" que talvez deva
ser considerada, em vários pontos, retificação essencial
à parte não só convencionalmente histórica como
sociologicamente interpretativa da obra máxima de Euclides. É
um livro em que o sr. Dante de Melo considera a ação do Exército
de Canudos de modo um tanto diferente do que levou Euclides da Cunha a escrever
o seu grande livro-protesto .
E possível que o novo ensaio seja mais reivindicatório do que
analítico. Nem por isto deixa de ser obra interessante e necessária:
sobretudo nas páginas em que procura restituir aos seus exatos relevos
fatos que a retórica vem desfigurando há anos. Pois não
há dúvida de que o livro-protesto de Euclides concorreu para que
a glorificação do sertanejo se consolidasse entre nós à
custa de excessivo desapreço pelo homem do litoral: inclusive o simples,
porém bravo, soldado do Exército. Talvez exagere o autor da "análise
reivindicatória" ao escrever do Exército que foi "a
entidade mais honesta e mais sacrificada na luta", isto é, na "guerra
de Canudos". Mas parece certo ter o mau estadualismo, inaugurado no Brasil
pela República de 1889, criado uma situação desfavorável
à ação do Exército - que era uma ação
federal, nacional, supra-estadual - e favorável a insurgentes cujo desenvolvimento
em força quase-política se verificou em grande parte em conseqüência
daquele estadualismo.
O sr. Vítor Nunes Leal - jurista brasileiro dedicado à análise
de problemas nacionais de sociologia política - talvez devesse ter estendido
seu estudo do fenômeno republicano do "coronelismo" ao episódio
de Canudos onde Maciel, a despeito do seu monarquismo, parece ter sido uma das
primeiras criações do estadualismo republicano. Estadualismo que
foi tornando necessário aos governadores dos estados se apoiarem em "coronéis"
ou equivalentes de "coronéis", fortes e privilegiados.
Sendo assim, o Exército teria sido de algum modo vítima, em
Canudos, do próprio Exército: do Exército criador da República
perigosamente estadualista de 1889. É um aspecto político do problema
que não vem destacado naquele sugestivo livro sobre Canudos; e que está
a exigir a atenção de um moderno homem de estudo que se especialize
na análise do aspecto político do chamado "drama sertanejo".
Drama em que parece ter explodido, além de um conflito entre culturas
sub-regionais, semelhante ao do Pedra Bonita, um terrível desajustamento
dentro do recém-inaugurado sistema de relações políticas
dos novos estados com o poder central.
Desse aspecto de sociologia política do problema de Canudos não
cuidou Euclides sem que, entretanto, se possa dizer do seu livro que pelos exageros
e pelas omissões deixe de ter valor sociológico para apresentar-se
como simples obra-prima de jornalismo literário. A verdade é que
é livro complexo: notável como literatura e notável como
ciência: ciência ecológica e ciência antropológica
e até sociológica. Mas sobretudo obra de literatura. Obra de revelação
.
Revelação, acentue-se bem; e não simples descrição.
Só o escritor com alguma coisa de poético no seu modo de ser escritor
é capaz de revelar de uma paisagem ou de uma época, de uma sociedade
ou de uma personalidade complexa, os seus característicos profundos e
os seus traços decisivos. Os puros cientistas não vão além
da descrição - quantitativa, matemática, estática
- quando muito completada pela explicação, de qualquer dessas
realidades. Só um escritor daquele tipo mais alto, de que Gracián
foi até hoje uma das expressões mais vigorosamente sutis - o vigor
ibérico acrescentado de argúcia jesuítica - consegue, além
de revelar, interpretar o complexo que qualquer dessas realidades contenha.
Dentre os modernos, só um Hudson que escreva Green mansions. Ou
um Joyce que se reconstitua em Stephen. Ou um Proust que escreva A
la recherche du temps perdu. Ou um Mann que interprete o drama de um adolescente.
Ou um Strachey que ressuscite a rainha Vitória. Ou um Ganivet que evoque
Granada la bella. Escritores ao mesmo tempo líricos e analíticos:
combinação raríssima em qualquer língua ou em qualquer
literatura.
Vários foram os brasileiros da época de Euclides da Cunha que
descreveram e até explicaram, alguns já se servindo de números
e estatísticas, aspectos importantes da realidade brasileira em obras
de considerável valor científico: Couto de Magalhães, Nina
Rodrigues, Sílvio Romero, José Veríssimo, o visconde de
Taunay, Teodoro Sampaio, o barão do Rio Branco, Clóvis Beviláqua,
Martins Júnior. O que destacou de modo tão vigoroso a literatura
de Euclides da classes outros brasileiros, homens de estudo, sobre temas rasgadamente
nacionais - e até da própria literatura semi-sociológica
de .Joaquim Nabuco, de Eduardo Prado, de Oliveira Lima e de Graça Aranha:
quase-sociólogos, notáveis não só pela sua quase-sociologia
como pelas suas virtudes literárias de expressão - foi o caráter
de obras não apenas descritivas, ou somente evocativas, mas de revelação
e de interpretação do Brasil, dos ensaios que escreveu o autor
de Os sertões. Não só Os sertões como
Contrastes e confrontos, À margem da história. Ensaios
de quem se aproximou de temas brasileiros com espírito científico
e com preparação técnica: a própria e a de amigos
que foram eminências pardas do escritor absorvente, em relação
com alguns aspectos mais turvos daqueles mesmos temas. Mas não só
com esse espírito nem apenas com essa preparação: também
com o gênio capaz de revelar dos assuntos analisados seus traços
mais significativos. - Que nessa obra de revelação é que
se define o autêntico, o genuíno, o grande escritor; nela é
que se afirma sua superioridade sobre os puros especialistas, por mais perfeitos
na sua ciência; ou sobre os puros técnicos, por mais exaustivos,
no seu saber apenas empírico do assunto versado.
Vários são hoje, na Espanha, os filólogos especializados
magistralmente no conhecimento técnico e no saber científico da
língua espanhola. Vários os arabistas espanhóis Vários
os orientalistas. Mas a um tempo especialista no seu saber de filólogo
e generalista no seu domínio sobre assuntos ibéricos de cultura,
só um Américo Castro nos vem revelando dessa língua, nem
sempre latina no seu espírito, formas de expressão em que a cultura
árabe e a cultura israelita se juntam hoje quase em segredo, como se
ainda se escondessem mourisca e israelitamente dos dominicanos da Inquisição
para animar a mais moderna cultura hispânica de possibilidades, únicas
em cultura européia, de comunicação com algumas das emergentes
ou ressurgentes culturas extra-européias, em rápida e surpreendente
ascensão no mundo dos nossos dias: um mundo de tal modo diverso do de
há um século - o de exclusivo e imperial domínio da civilização
européia sobre as demais civilizações - que e quase uma
negação do seu antecessor.
Foi dessa espécie de obra de revelação que Euclides da
Cunha - também especialista no seu saber de engenheiro aplicado ao estudo
ou ao conhecimento de problemas brasileiros mas generalista no seu domínio
sobre assuntos nacionais de cultura - realizou de modo genial. Revelação
dos sertões aos brasileiros do litoral e revelação do Brasil
a estrangeiros por este ou por aquele motivo curiosos a respeito do nosso país,
e nem sempre satisfeitos com as respostas, à sua curiosidade, dos geólogos,
dos geógrafos, dos economistas, dos historiadores, dos sociólogos,
dos juristas; ou das estatísticas, dos mapas, dos diagramas.
Daí o triunfo alcançado em meios cultos do estrangeiro pelo
livro revelador do Brasil que Euclides da Cunha escreveu, a propósito
do drama de Canudos, como quem se definisse escritor mais de dentro para fora
do que de fora para dentro do assunto versado no seu ensaio. Do assunto - um
assunto teluricamente brasileiro - ele deixou de tal modo se impregnar, não
apenas por simpatia, mas, por empatia profunda, que conseguiu comunicar essa
sua identificação empática com o seu tema, ao próprio
leitor estrangeiro. Pelo menos ao leitor em língua inglesa e ao leitor
em língua espanhola d ' Os sertões. São línguas
em que não há exagero em dizer-se que o leitor estrangeiro, a
despeito do cientificismo por vezes arrevesado de livro tão diferente
do comum dos livros, vem tomando conhecimento mais íntimo de uma literatura
especificamente brasileira, que através de quantos outros livros de brasileiros,
sobre temas nacionais, têm sido publicados em idiomas europeus: os de
José de Alencar, os de Joaquim Nabuco, os de Machado de Assis, os de
Rui Barbosa, os do visconde de Taunay, os de Graça Aranha, os de Mário
de Andrade, os de José Lins do Rego, os de Jorge Amado, os de Érico
Veríssimo. E a razão parece a alguns de nós ser principalmente
esta: é um livro, a obra-prima de Euclides, em que o autor brasileiro
não temeu ofender o leitor europeu com o seu tropicalismo; ou picá-lo
com o seu brasileirismo. Ao contrário: ostentou-o. Exibiu-o quase escandalosamente.
Não se fingiu de inglês, como, de certo modo, o apolíneo
Machado de Assis; nem de francês, como até certo ponto o igualmente
apolíneo Joaquim Nabuco, que até a um francês de longa experiência
literária de Faguet enganou com as sutilezas de Pensées détachées.
Euclides da Cunha esplende de tropicalismo; arde de brasileirismo. É
dionisíaco e até exuberante no seu modo de interpretar-se e de
interpretar o Brasil aos olhos de outros brasileiros e aos olhos de estrangeiros
voltados para o Brasil.
Compreende-se que, assim dionisíaco, tenha escandalizado não
só puristas como um apolíneo da cabeça aos pés como
foi, se não na mocidade, na idade provecta, Joaquim Nabuco, a quem os
livros de Euclides teriam dado a impressão de escritos rudemente, agrestemente,
com um cipó. Mas compreende-se, por outro lado, que essa literatura agrestemente
brasileira tenha dado a europeus menos convencionais que tais quase-europeus
ou subeuropeus nos seus gostos literários, a aventura de uma nova conquista
de paladar: aventura dificilmente encontrada pelos mesmos europeus nos romances
brasileiros de um Machado ou de um Graça Aranha ou de um visconde de
Taunay. Romances nos quais vários desses europeus, em vez de novos sabores,
têm candidamente confessado a amigos brasileiros haver encontrado apenas
sabores já seus velhos conhecidos, com um ou outro salpico de tempero
exótico. A verdade é que o tempero brasileiro é às
vezes mais forte do que se pensa em alguns dos romances e, sobretudo, nos melhores
contos de Machado. Mas são de uma força de tal modo sutil que
às vezes desaparecem quase de todo nas traduções ao francês
e ao inglês daquelas obras-primas brasileiras. Destino que dificilmente
podem ter as cruezas tropicais e os ardores brasileiros de Euclides - do seu
verbo eloqüente e das suas técnicas expressionistas de arte literária.
São cruezas que se projetam nas próprias traduções,
provocando arrepios e até repulsas da parte do europeu mais cartesiano,
ou mais renaniano; mas acabando por se imporem ao paladar literário desses
sofisticados como aventuras que lhes trouxessem novas sensações
do mundo e novas visões do homem, através de uma arte literária
diferente da européia; com outro ritmo; com outras sugestões de
doçura dentro de outras sugestões de violência: as contraditórias
sugestões de doçura e de violência que Euclides soube estilizar,
encontrando-as tanto na natureza dos ambientes como no homem das terras quentes
e tropicais mais do seu gosto: as regiões amazônicas, e as áridas
ou sertanejas do Brasil.
Quem lê os ensaios de Euclides da Cunha não precisa buscar um
autor que se escondesse naquela niebla de ausencia de que fala,
em página recente, um crítico de língua espanhola a propósito
de certo escritor sul-americano do tipo do brasileiro Machado. Euclides pertence
ao número de autores que não se deixam buscar ou procurar pelo
leitor: vêm ao seu encontro. Apresentam-se. Exibem-se. Nenhum escritor
de língua portuguesa mais presente na sua literatura do que ele. Nenhum
mais ostensivo na sua presença. Seu próprio brasileirismo, por
vezes enfático, talvez fosse uma expressão do que o autor julgava
ser, em si mesmo, presença ameríndia: tapuia. Admitia que fosse
um "tapuio" modificado por outras presenças - pela "grega"
e pela "celta". Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio
parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor
com alguma coisa de não-europeu e até de antieuropeu em sua visão
do ambiente nativo e em sua expressão ou em sua interpretação
desse ambiente. Não só escritor: homem público. Daí
seu nacionalismo ou, antes, brasileirismo: um brasileirismo difícil de
ser separado do seu indigenismo. Era nos "admiráveis caboclos do
Norte", por exemplo, que ele via o futuro da Amazônia brasileira:
caboclos capazes de sobrepujarem "pelo número, pela robustez, pelo
melhor equilíbrio orgânico da aclimação e pelo garbo
no se afoitarem com os perigos" quantos estrangeiros tentassem se estabelecer
em terras de seringais. O que era preciso era que o "engenheiro" -
Euclides era engenheiro, além de "caboclo" - amparasse, sob
o comando de um governo consciente da sua missão, aqueles bravos, na
sua obra de integração da Amazônia no conjunto nacional
brasileiro; e os amparasse pondo-os em intimidade permanente com o resto do
país "através de comunicações fáceis":
além de estradas de ferro, "a aliança das idéias,
de pronto transmitidas e traçadas na inervação vibrante
dos telégrafos". É a mensagem sociológica que nos
transmite o seu ensaio "Entre o Madeira e o Javari", incluído
no livro Contrastes e confrontos (Porto, 1913).
O Euclides da Cunha preocupado com o futuro brasileiro da Amazônia era
o mesmo Euclides da Cunha em quem o drama de Canudos despertara o mais intenso
dos brasileirismos, reclamando dele um esforço construtivamente nacionalista
em que ao "espírito caboclo" juntou-se a formação
de engenheiro e a preocupação do sociólogo. Ou do ecologista
social. Esses três aspectos da personalidade do autor d'Os sertões
foram os aspectos básicos de sua ação: sua literatura está
quase toda animada por estas três presenças. Ele nunca se contentou
em ser nem beletrista nem subeuropeu: o escritor, em Euclides, incluiu sempre
o engenheiro e implicou sempre viva e até vibrante solidariedade do autor
com o indígena do Brasil. Com o caboclo. Com o "tapuio": um
"tapuio" que dentro dele se conciliasse com o "celta" e
com o "grego".
Compreende-se assim que o tenham entusiasmado aquelas páginas do primeiro
Roosevelt nas quais o vigoroso político, misto, segundo Euclides, de
rough rider e de quaker, fez o elogio das civilizações
autênticas; e combateu as de empréstimo:
Essa espécie de regimen colonial do espírito que
transforma o filho de um país num emigrante virtual, vivendo, estéril.
no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo.
Para nós, brasileiros - pensava Euclides - é que pareciam feitas
aquelas palavras porque
entre nós é que se faz mister repetir longamente
e monotonamente, mesmo, que mais vale ser um original do que uma cópia...
e que o brasileiro de primeira mão, simplesmente brasileiro, malgrado
a modéstia do título, vale cinqüenta vezes mais do que ser
a cópia de segunda classe, ou servil oleografia, de um francês
ou de um inglês.
E outra de suas mensagens sociológicas que nos transmite aquele seu
livro de pequenos mas vibrantes ensaios.
Nesse seu elogio ao primeiro Roosevelt, Euclides da Cunha como que resumiu
o seu credo de brasileiro, inseparável do seu credo de escritor: o que
ele desejava para o seu país era um Brasil corajoso de suas originalidades
caboclas, mesmo modestas, que se realizassem mercê de modernas técnicas
de engenharia que o Estado pusesse a serviço do desenvolvimento nacional;
o que ele desejava para si próprio, Euclides da Cunha, era a coragem
de desenvolver-se, em escritor diferente dos europeus: consciente de sua condição
de "caboclo" - embora sem desprender-se da de "celta" e
da de "grego"; capaz de juntar para proveito do Brasil, à sua
literatura, sua engenharia; observador do Brasil, através do que fosse
"empírico" no seu conhecimento sociológico da realidade
brasileira, como "os arquitetos" das "fórmulas empíricas
da resistência dos materiais". Assim se conformaria ele, por um lado,
com os modernos triunfos da ciência empírica; por outro, com as
melhores tradições, senão literárias, dinâmicas,
da gente do seu e nosso país, certo como lhe parecia que "os nossos
melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores da terra" os
que "engenharam" - note-se o verbo caracteristicamente, narcisistamente,
euclidiano - "as melhores leis e as cumpriram", "os homens de
energia ativa e de coração que definiram com mais brilho a nossa
robustez e o nosso espírito - todos sentiram, pensaram e agiram principalmente
como brasileiros". É o que se lê num dos mais expressivos
dos seus pequenos ensaios reunidos em Contrastes e confrontos: "O
ideal americano" - apologia de quantos brasileiros antigos souberam engenhar
brasileiramente o Brasil.
Assim agiram, sentiram e pensaram os próprios construtores daquela
civilização patriarcal agrária e escravocrática
que deu ao nosso país valores e originalidades que Euclides da Cunha
- entusiasta sobretudo de bandeirantes e sertanejos - nunca demorou-se em apreciar
ou admirar: viu-as apenas de soslaio. Noutro dos seus ensaios - "Entre
as ruínas" - fixou a tristeza das ruínas dessa civilização,
antes sedentária que andeja, sem muita simpatia pela "arquitetura
terrivelmente chata" das casas-grandes de fazendas e dos engenhos antigos.
Mas de qualquer modo, reconhecendo:
...malgrado o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares
e amplas, sobranceando as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os
casebres de agregados, e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos
de pedra, que lhes sustentam os planos unidos dos terrenos, conservam o antigo
aspecto senhoril.
Nenhuma palavra de lamentação para o desaparecimento da gente
senhoril e da população servil que animaram solares; e que animando-as,
criaram, mais que os bandeirantes, um Brasil autêntico em profundidade.
Só o registro da decadência do agregado:
O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados,
que lhe formam a linhagem obscura e heróica... uma ruína maior
por cima daquela ruinaria da terra.
Só o registro da decadência do caboclo das fazendas: simples
comparsa de um drama que teve por personagens decisivos os senhores brancos
e os escravos de cor. Por onde se confirma - um exemplo dentre vários
- que foi constante, em Euclides, o afã de idealizar e romantizar o indígena;
o ameríndio; o caboclo - isto é, o brasileiro mais próximo
do escritor; mais seu irmão; mais do seu sangue, e mais da sua terra.
Do mesmo modo que foi constante nele o critério de caracterizar paisagens,
reduzindo-as não só a expressões de "resistência
de materiais" - um critério de engenheiro - como a manifestações
de violência do homem contra a natureza: um critério dc ecologista.
Ecologista, engenheiro e caboclo repita-se que são presenças constantes
no escritor Euclides da Cunha: nos seus temas; nas suas visões de terras
e de populações brasileiras; no seu estilo. No seu famoso estilo
cuja originalidade parece decorrer, em grande parte, da fusão desses
três homens num só escritor: fusão que pela primeira vez
aconteceu nas letras brasileiras realizada pelo autor d'Os sertões.
Não que antes dele não tivesse havido no Brasil quem procurasse
pôr a engenharia a serviço do desenvolvimento nacional: foi no
mais que se empenharam engenheiros como Rohan, Rebouças, Monteiro Tourinho,
Pimenta Bueno, Buarque de Macedo, Bicalho, Pereira Passos, os dois Mamede. Nem
escritor animado do afã de valorizar o indígena: José Bonifácio
- foi o primeiro de uma série de indigenistas notáveis -, José
de Alencar, Gonçalves Dias, Couto de Magalhães. Nem ecologista
preocupado em harmonizar o brasileiro com a natureza do interior do Brasil:
a Alexandre Rodrigues Ferreira se sucederam Azevedo Pimentel, Luís Cruls,
Teodoro Sampaio. Eram, porém, afãs separados e da parte de homens
de vocações diferentes. Em Euclides da Cunha esses afãs
se uniram pela primeira vez dentro de um escritor de forte gênio verbal;
e que foi, ao mesmo tempo, indigenista, engenheirista e ecologista nas suas
principais constantes de sentimento, de pensamento e de ação.
Dessa fusão resultou não só uma obra singular nas letras
brasileiras como um estilo também novo, em língua portuguesa,
por ter se desenvolvido como expressão de um novo tipo de personalidade
criadora: uma personalidade complexa, na qual ao gosto pelos temas telúricos
se juntava o entusiasmo pelas soluções técnicas as mais
arrojadamente modernas.
De modo que é uma presença, a de Euclides da Cunha na vida e
nas letras brasileiras, que inclui - repita-se - a presença de três
homens diversos, mas, no seu caso, complementares, fundidos ou reunidos num
só e grande escritor. Daí ser uma influência, a sua, que,
complexa como é, talvez exceda em importância, em extensão
e mesmo em profundidade a de qualquer outro intelectual brasileiro - sem nos
deslembrarmos nem de José de Alencar nem de Machado de Assis; nem de
Rui Barbosa nem de Joaquim Nabuco; nem de Gonçalves Dias nem de Castro
Alves. Nenhum deles parece vir alcançando tantas zonas de sensibilidade
ou de receptividade a influência de um escritor.
Isto sem entrarmos em avaliações ou comparações
de mérito especificamente literário à base da influência
de cada um: considerando-se o caso de Euclides da Cunha o caso complexo que
foi e continua a ser dentro da cultura e da vida - e não apenas das belas-letras
- nacionais. Só considerado assim - nessa sua complexidade - pode Euclides
da Cunha ser estimado ou avaliado como influência, ainda hoje viva, entre
seus compatriotas.
Influência nem sempre saudável. Ao exemplo do seu estilo se deve
muito arrevesado de frase, na língua portuguesa do Brasil, em que, da
imitação de um ritmo, de uma pontuação, de um vocabulário
extremamente pessoais, resultou por algum tempo muita caricatura; e caricatura
grotesca.
Por outro lado Euclides foi dos grandes escritores brasileiros um dos que
mais deixaram à mocidade do seu país o exemplo de que ser um escritor
homem de estudo metódico e homem de trabalho sistemático não
significa escassear-lhe o talento ou faltar-lhe o gênio. Neste particular
ele pertenceu ao número dos Rui Barbosa, dos Joaquim Nabuco, dos Machado
de Assis. Em vez de ter valorizado a tradição do escritor boêmio
e improvisador, valorizou a outra: a do escritor, homem de estudo. A do escritor,
homem de trabalho. Com o que prestou um serviço imenso à cultura
nacional, vítima, ainda hoje, do mito que associa ao escritor de gênio
as boêmias de café ou as bebedeiras nas cervejarias.
Euclides - recordou uma vez do autor d'Os sertões o cronista
João Luso, que o conhecia de perto - "escrevia com grande lentidão".
Não só com "grande lentidão": também à
base de conhecimento objetivo e de estudo honesto do tema que versasse. Era
antes scholar que diletante: ele próprio comparou-se uma vez -
informa João Luso -
com certos pássaros que para despedir o vôo precisam
de trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de nada lhes
servem as asas; e tem que ir por aí afora à procura do seu arbusto.
O seu arbusto, dizia Euclides que era "o Fato".
Foi outro exemplo que Euclides da Cunha deu aos seus compatriotas mais jovens:
o de procurarem no conhecimento quanto possível vivo, direto, dos fatos
brasileiros, matéria para a criação ou expressão
literária. Estimulou assim o desenvolvimento, em nosso país, de
uma literatura firmada na observação, no estudo, na análise
de fatos caracteristicamente nacionais: os sertanejos e os amazônicos,
principalmente. Por conseguinte, regionais. Dessa literatura se pode dizer que
vem sendo ecológica ou sociológica nas suas tendências;
mas salientando-se da de Euclides que, por ter sido ecológica ou sociológica
e até nutrida da ciência ou da técnica do engenheiro de
campo, que nunca deixou de ser arte; não deixou de modo algum de ser
literatura. É que o escritor dirigiu, em Euclides da Cunha, a colheita,
a seleção e a interpretação do material além
de ecológico, sociológico, por ele utilizado como combustível
de suas criações literárias. E o escritor em Euclides não
foi um publicista apenas - o caso de Alberto Torres. Foi um artista. Foi um
poeta. Foi escritor dos grandes: dos animados do gênio da revelação.
Portanto escritor daquele tipo do qual escreve um crítico dos nossos
dias, o professor Leo Lowenthal, que é quem retrata da realidade what
is more real than reality itself. Só o escritor - acrescenta o professor
Lowenthal no seu Literature and the image of man - sugestivo ensaio de
sociologia da literatura - ou, antes, só a literatura, presents the
whole man in depth... Foi o que conseguiu Euclides da Cunha: traçar
do sertanejo um retrato em profundidade em que a figura do homem se integra
de tal modo na paisagem que a ninguém é possível destacar
o homem assim retratado do seu meio absorventemente materno. Só em literatura
acontecem tais revelações e tais interpretações
de paisagens e de homens porque só a literatura - voltemos a este ponto
- é revelação. Só o escritor que seja também
poeta no lato sentido alemão da palavra revela dos personagens, das paisagens
das sociedades que a sua arte ressuscita ou surpreende ainda em movimento, as
intimidades mais características. Só o grande escritor: nunca
o pequeno nem sequer o médio. Só o grande escritor: nunca o cientista
que sendo apenas cientista, escreva claro e correto; nem o especialista incapaz
de transpor sua especialidade, não para invadir especialidades alheias,
mas para dominar os assuntos que versa, como todos inter-relacionados. Daí,
na caracterização da paisagem dos sertões, Euclides da
Cunha ter realizado - mesmo resvalando em pequenos erros técnicos - uma
revelação do caráter dessa paisagem que nem o geólogo
Orville Derby nem o geógrafo Teodoro Sampaio - suas principais eminências
pardas - teriam jamais conseguido sequer esboçar; menos, ainda, realizar.
E ter levantado um perfil antropológico do sertanejo que nem três
Ninas Rodrigues reunidos teriam sido capazes de levantar. Euclides da Cunha
nunca nos põe diante de simples e perfeitas fotografias nem de sertanejos
e de sertões; nem de seringueiros e de seringais - fotografias reunidas
para que ele apenas as colorisse a mão; e assim coloridas, mas sem retoques
nos seus traços, constituíssem o material científico de
algum vasto gabinete de identificação que, em vez de policial,
fosse sociológico. Mesmo porque seu forte nunca foi procurar acentuar
as cores dos homens e das paisagens; e sim as suas formas. Foram precisamente
os traços dos seus retratados que ele retocou e alterou, para neles acentuar
características a seu ver essenciais. Nos seus ensaios, ele nos põe
diante de retratos de homens e de interpretações de paisagens
traçados por uma técnica singularmente sua em que ao impressionismo
se acrescenta por vezes um expressionismo arrojado e personalíssimo:
a intensificação na realidade do que nela o escritor encontrou
de mais real. Foi intensificando e até exagerando na realidade o que
dela lhe surgisse aos olhos e à sensibilidade como mais real que a realidade,
que ele nos deixou, além de um retrato, hoje clássico, de sertanejo,
vários retratos menores, mas igualmente significativos, de homens-símbolos.
Não pode dizer-se conhecedor do Brasil quem ignore esses retratos e essas
interpretações; e conheça apenas fotografias sociológicas
ou geográficas dos homens e das paisagens que Euclides da Cunha retratou
através daquele seu método menos impressionista que expressionista.
Destaque-se ainda de Euclides da Cunha que não se limitou a retratar
indivíduos de uma só classe ou de um só grupo social mas
de vários, embora seu brasileiro-ideal fosse evidentemente o sertanejo
completado pelo seringueiro; e este, um meio-termo entre o burguês e o
proletário, não podendo servir para símbolo de reivindicações
de uma classe contra outra. Nem foi um drama de conflito de classes nem sequer
de raças o que se verificou em Canudos, embora do verdadeiro caráter
de luta entre soldados e jagunços o autor d'Os sertões
não tenha se apercebido de todo: o caráter de um choque entre
culturas. Daí resvalar por vezes, tanto quanto seu contemporâneo
Sílvio Romero e, talvez, por influência do também seu contemporâneo
Nina Rodrigues, em incertezas quanto à exata situação biológica
do mestiço; o qual, biologicamente inferior, seria também sociologicamente
incapaz de concorrer para o progresso brasileiro com que sonhava a engenharia
de Euclides. É evidente que sua descrença no mestiço por
preconceito cientificista era uma descrença que alcançava principalmente
o mulato e o cafuzo; e não o ameríndio que tivesse apenas o seu
toque de "celta" ou de "grego" e se conformasse, aos olhos
de Euclides, à sua imagem talvez um tanto romântica do sertanejo
ou do nortista desbravador da Amazônia. Mas não há dúvida
de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o contraditório
Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas
contra mulatos e cafuzos, concorrendo, talvez, para o "arianismo"
dos Oliveiras Vianas: seus sucessores imediatos nos estudos de homens e populações
brasileiras. Resvalaram esses Oliveiras Vianas naquele preconceito, ao contrário
dos Roquete Pinto que, entusiastas de Euclides e do seu sertanismo, retificaram-no
sem demora neste particular, do ponto de vista antropofísico; e o fizeram,
estando ainda quente a presença do autor d 'Os sertões
nas letras nacionais. Do ponto de vista antropossocial ou antropocultural é
que a retificação não só ao autor d 'Os sertões
como a Nina Rodrigues só se faria, de modo decisivo, mais de um quarto
de século depois da morte de Euclides da Cunha. Mas isto é outra
história, como diria o inglês embora história não
de todo estranha à avaliação que hoje se faça da
influência do grande escritor não só sobre as letras como
sobre os estudos antropológicos e sociológicos no seu país.
Foram estudos que sua presença marcou de modo tão notável
como marcou as letras nacionais: o ensaísmo literário que, sob
a reorientação que ele deu a esse gênero de expressão
ganhou novas perspectivas em língua portuguesa. Tão novas que
talvez não haja exagero em falar-se de um tipo euclidiano de ensaio.
Diz-se da ciência que é a analítica teórica e impessoal,
enquanto a arte é sintética, prática e pessoal, além
de orgânica. Na obra de Euclides da Cunha predominaram as virtudes artísticas
sobre as científicas. E sua própria maneira de ser cientista foi
uma maneira hispânica ou ibérica, admitindo a presença do
analista na obra de análise: maneira que Nietzsche parece ter aprendido
dos espanhóis - sobretudo de Gracián - ao comunicar aos seus estudos
filológicos alguma coisa de psicológico que terminou sendo alguma
coisa de poético. Não erraria, quem dissesse do autor d 'Os
sertões que foi, à sombra dessa tradição, mas
excedendo-a, uma antecipação do moderno humanista científico:
tipo de ensaísta que na língua inglesa vem se afirmando de Havelok
Ellis a Julian Huxley, de Lawrence da Arábia a Bertrand Russell, de William
James a Herbert Read. Esse humanismo científico ele o aplicou principalmente
a temas brasileiros: à análise de homens ou de populações
regionais e nacionais à qual acrescentou não só a revelação
de intimidades características desses homens e dessas populações
como a glorificação de valores por eles, a seu ver, encarnados.
Nessa glorificação se expandiu seu pendor para o que fosse prático,
orgânico e até pessoal nos mesmos temas, de preferência ao
que neles se prestasse apenas a análises impessoais e a generalidades
abstratas.
Há quem pense de Euclides da Cunha que, "embora nascido no estado
do Rio", ficou "intimamente ligado à literatura nordestina,
cuja civilização particularista estudou em suas páginas
sensacionais". É a opinião do professor Alceu Amoroso Lima
(Tristão de Ataíde) à página 59 do seu Quadro
sintético da literatura brasileira (Rio, 1956). A propósito
do que acrescenta o eminente crítico:
A região nordestina no Brasil é tão típica,
em seus costumes, como a região amazônica, a mineira, a gaúcha
ou a do litoral central.
E lembra já haver outro crítico, o hoje acadêmico Viana
Moog, "também romancista e ensaísta de valor", proposto
uma "divisão da literatura brasileira baseada nessas idiossincrasias
regionais". Com essas digressões - precedidas pelo reconhecimento
de um "regionalismo" mineiro (Afonso Arinos) a que se teria juntado
um "regionalismo" paulista (Valdomiro Silveira) sem que ao ilustre
historiador do Quadro sintético tenha ocorrido a necessidade de
desses regionalismos e do gaúcho e do mero "pernambucanismo"
de Joaquim Nabuco ou do superficial "sertanismo" de Catulo da Paixão
Cearense distinguir-se o muito mais complexo regionalismo em 1924 nascido no
Recife - o professor Alceu Amoroso Lima enche a meia página em que deveria
ter fixado seu julgamento sintético da obra de Euclides da Cunha. O que
é pena pois nesse julgamento sintético de Euclides pelo mestre
atual mais admirado e mais respeitado da crítica literária no
nosso país teria se resumido a moderna atitude de toda uma elite intelectual
- a dos críticos literários nacionais - com relação
ao autor d 'Os sertões. Não se compreende que muito mais
do que Euclides tenha merecido do professor Amoroso Lima, isto é, dos
seus julgamentos sintéticos, Rui Barbosa, um tanto arbitrariamente apresentado
pelo crítico-historiador como "porventura a mais internacional das
nossas grandes figuras literárias, no sentido amplo do termo" (p.
47); primazia que evidentemente cabe antes a Euclides ou a Machado que a Rui.
É uma ilusão, essa, da parte de numerosos brasileiros, de ser
Rui Barbosa - que tanto significou, na verdade, para nós, seus compatriotas,
e ainda significa, como invulgar jurista-político em quem às virtudes
acadêmicas de grande erudito nessas matérias, nas letras clássicas
e na filologia, se juntou o carisma de bravo homem de ação e de
incansável doutrinador de liberalismo, por um lado e por outro, de casticismo
- um brasileiro significativo para os meios cultos estrangeiros por qualquer
motivo interessados no Brasil. É uma ilusão acreditar-se na importância
da repercussão, no estrangeiro, de seus triunfos político-jurídicos
e oratórios na Haia: muito maior foi, na mesma época, a repercussão
das teses em prol do mestiço brasileiro defendidas em Londres, em congresso
internacional de cientistas, pelo professor J. B. de Lacerda. É uma ilusão
imaginar-se Rui sob o aspecto de "figura literária" brasileira
que tenha impressionado ou impressione ou seduza hoje, estrangeiros, por suas
virtudes literárias. Ao afirmá-lo, o crítico e professor
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) resvala num mito que por
sua condição mesma de crítico deveria ser o primeiro a
retificar. Pois semelhante repercussão de Rui no estrangeiro não
existe senão em meios europeus ou americanos influenciados diretamente
pelo culto brasileiro ao mesmo Rui.
Para Euclides da Cunha tem se voltado, da parte de estrangeiros interessados
em literatura, ou nos trópicos, ou em gentes exóticas, em geral
- e não apenas no Brasil - senão sempre uma admiração,
uma curiosidade que talvez se explique pelo fato de ser a literatura do autor
d'Os sertões, mais do que a de Rui Barbosa ou do que a de Joaquim
Nabuco ou mesmo a de Machado de Assis, diferente das produções
européias; tocada - ainda mais que a de José de Alencar: seu predecessor
mais importante neste particular - por alguma coisa de agreste ou de tapuio
em sua arte e em seus motivos combinados. Por conseguinte, uma literatura de
sabor um tanto novo para o estrangeiro, a quem o próprio Machado de Assis
desaponta quando seu humour é o subinglês dos seus romances
e das suas crônicas - humour tão surpreendente para o paladar
brasileiro - em vez de ser a graça já sutilmente carioca que caracteriza,
mais do que os seus romances e as suas crônicas, os seus contos. E justamente
pelos contos é que Machado de Assis vem competindo com Euclides da Cunha
na sedução que os dois, muito mais do que Rui Barbosa, vêm
exercendo sobre estrangeiros.
Em resumo: se é exato o que aqui se diz ou se sugere, compreende-se
que à obra de Euclides da Cunha pareça destinada a missão
de abrir para europeus e para outros estrangeiros caminhos à compreensão
do Brasil através da literatura brasileira, que nenhum outro escritor
já clássico do nosso país vem conseguindo sequer desbravar.
Pareceu que Alencar o faria, completado pela propaganda que dele fez com não
pequeno entusiasmo um inglês do prestígio de Burton. Mas a repercussão
de Alencar na língua inglesa enlanguesceu cedo. Difícil tem sido
igualmente aos brasileiros convencerem os estrangeiros da importância
literária de Machado: a importância que nós, com inteira
razão, lhe atribuímos, à base do que Machado trouxe para
a literatura nacional, da literatura inglesa, acrescentando a essa difícil
importação alguma coisa de discreta e sutilmente sua, quase impossível
de ser transmitida aos estranhos através de traduções.
A eterna história das conchas que retiradas da praia perdem quase todo
o encanto, tornando-se tristes e inexpressivas.
De Euclides, se sabe que em certas línguas, como a sueca, vem sendo
um fracasso absoluto. Na língua inglesa e na espanhola, porém,
já atravessou a prova de sobreviver às primeiras edições.
Vem se afirmando, mais que qualquer daqueles dois e do que Taunay ou Graça
Aranha, escritor polivalente. Isto é, escritor quase tão fascinante
dos leitores sob a forma de escritor traduzido - bem traduzido, é claro
- quanto sob a forma de escritor na língua materna.
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