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Extraído de: Galvão, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco.
Ensaios críticos. São Paulo, Brasiliense, 1987
(Professora Titular de Literatura Comparada da Universidade de
São Paulo) Não há dúvida que a Revolução Francesa
constitui o evento histórico mais importante dentro do quadro de referências
de Euclides da Cunha.
Não é o único, é claro; outros há que vêm
e revêm em sua prosa. Num discurso altamente alusivo, que é o seu,
não faltam menções a outros eventos, sobretudo àqueles
ligados à própria formação militar do autor. Volta
e meia, aparecem lembranças das guerras napoleônicas, das campanhas
de Alexandre o Grande ou de Júlio César, ou mesmo de mais remotas
façanhas bélicas na Antigüidade. É quase um segundo
grau do discurso do Euclides de Os Sertões o falar de passagem
em "Cápua invertida" ou em "forcas caudinas". O leitor
inocente não avançará na leitura enquanto não esclarecer
o conteúdo dessas alusões.
Assim, vai ter que tomar conhecimento do que aconteceu em Cápua, quando
o general cartaginês Aníbal, freando o ímpeto invasor que
o trouxera das costas da África através da Espanha visando a tomada
de Roma, pára e fica naquela cidade, a segunda, em tamanho, da península
itálica. Ali foi perdida a Segunda Guerra Púnica, dali Aníbal
não passou, embora já estivesse pertinho de Roma, seu objetivo.
Ali perderá a cidade e a guerra, no ano de 211 a.C., em que entrega Cápua;
e nunca chegará a Roma. Resta saber que relação há,
e invertida, entre Cápua e Canudos. Aqui foi o sítio que parou,
o sítio efetuado pelas tropas do Exército, que cercaram mas não
conseguiram tomar o arraial cercado. Num caso, o sitiado não conseguiu
avançar; no outro, é o sitiante que não avança.
Se Aníbal não pode sair da cidade que era seu baluarte, o Exército
brasileiro não podia ocupar o baluarte inimigo ao ficar preso a seu próprio
assédio, a sua própria posição de sitiante.
As forcas caudinas, por se tratar de uma frase feita, entendem-se mais facilmente.
A frase feita passou à História como metáfora de derrota
inesperada, de rendição humilhante. Alusiva a um episódio
da instalação do Império Romano na península itálica,
ainda por idos do século IV a.C., a expressão se refere à
surpreendente resistência com que os romanos se depararam por parte dos
samnitas, na Campânia. Ao atacarem a cidade de Caudium, os romanos foram
apanhados desprevenidos pelo inimigo nos desfiladeiros que davam acesso à
cidade, sofrendo uma derrota de bom tamanho. Desdobrando a alusão, agrega-se
ainda um significado, origem e razão de ser da frase feita: o costume
romano de fazer o inimigo vencido desfilar nos triunfos em Roma vergado ao peso
do jugo. A mesma palavra latina (furca) significando o desfiladeiro em
forma de forquilha e um tipo de forca, forcas caudinas vem a ser a metáfora
de uma metáfora. Em Canudos, o revés que a 4 a Expedição
sofreu, ao enveredar pelos desfiladeiros do leito seco do Vasa-Barris, no combate
de 18 de julho, dá base ao paralelo estabelecido por Euclides.
Estas são menções isoladas, sem maiores ligações,
servindo a uma tentativa de esclarecimento da leitura. Nem de longe têm
a força de presença da Revolução Francesa, que transcende
ao mero nível alusivo. E não foi só para Euclides, mas
para toda a geração dele. Por uma curiosa defasagem, os cem anos
que vão de 1789 a 1889, datas de instauração da Revolução
Francesa e da proclamação da República no Brasil, criam
uma série de equívocos. Independentes enquanto ex-colônia,
mas imperiais e escravocratas, assim ficamos à margem do movimento geral
de emancipação política nas Américas durante esse
período, em que os ideais da Revolução Francesa se expandissem
em nosso país. A geração de Euclides, - gente que se formou
na segunda metade do século XIX, tinha na Revolução Francesa
o modelo de liquidação do Antigo Regime - estamental, monarquista
e escravocrata.
O jovem Euclides dedicou, aos mais radicais chefes franceses, quatro sonetos,
intitulados respectivamente Robespierre, Marat, Danton
e Saint-Just. Anos depois, não mais um escolar porém já
jornalista militante, escreveu artigos de propaganda da Revolução
Francesa (estudados e editados por Olímpio de Sousa Andrade), participando
da agitação preparatória da derrubada da monarquia brasileira.
E não era só ele; também o Exército, imbuído
de positivismo, se acreditava o garante e o realizador da Revolução
Francesa no Brasil.
Não é de espantar, portanto, se n'Os Sertões Euclides
relata a salva de 21 tiros ao alvorecer, com que as tropas saúdam uma
"data nacional", que vem a ser o 14 de julho, dia da tomada da Bastilha,
marco da Revolução Francesa. Também é costume na
época, entre militares ou não-militares, utilizar-se o democrático
tratamento de Cidadão, posto em circulação pelos
revolucionários franceses, em nome da igualdade.
Ocorrem a Euclides os exemplos de Brunswick e Monck a propósito de
Antonio Conselheiro, também de passagem, quando deseja criticar aqueles
que, como ele próprio anteriormente, insistiam em ver Canudos um intento
de restauração da monarquia. Quem são estes? Inimigos da
revolução, ambos generais restauradores. O Duque de Brunswick,
afamado como o melhor chefe militar de seu tempo, comandou a coligação
germano-austríaca que tentou liquidar a Revolução Francesa
em seus inícios. Todavia, derrotado na Batalha de Valmy em 1792, bateu
em retirada, assinalando a desistência dessa primeira fase da reação
restauradora do Antigo Regime. Já George Monck, mais conhecido como Duque
de Albemarle, teve melhor sorte, pois de fato levou Carlos II ao trono da Inglaterra,
após o interregno republicano de Cromwell.
Daí, a lamentar que ao planejador da segunda expedição
contra Canudos faltasse o amparo teórico de um Jomini, não vai
muita distancia: esse é, depois do famoso Clausewitz, um dos maiores
analistas das campanhas napoleônicas em defesa das realizações
da Revolução Francesa.
A questão mais espinhosa continua sendo a do paralelo com a Vendéia.
De fato, a insurreição que levantou essa região da França
contra a Revolução de 1789 torceu a maior parte dos símiles
e da reflexão histórica sobre a Guerra de Canudos. O próprio
Euclides foi responsável, ao escrever dois artigos intitulados "A
nossa Vendéia" para O Estado de S. Paulo. Nesses artigos,
escritos antes da viagem a Canudos, Euclides estabelece a comparação
entre Revolução Francesa e República brasileira, entre
insurreição monarquista contra-revolucionária na França
e o levante sertanejo.
Mais tarde, n'Os Sertões, Euclides viria a renegar explicitamente
a analogia. Entretanto, nunca conseguiu se livrar dela de todo. Assim é
que, até a contragosto, volta a trazê-la a baila, seja para criticá-la,
seja para confirmá-la. A crítica almejada, e realizada ao nível
das idéias, é insidiosamente minada pela insistência nos
símiles. Se faz essa crítica enviesadamente, obliquamente, no
trecho final d'O Homem, por outro lado confirma-a quando, páginas
e mais páginas adiante, volta a reiterá-la. Então, no fim
do Capítulo IV d'A Luta, torna a insistir na semelhança,
"malgrado os defeitos do confronto", diz ele. E passa a afirmar que
"Canudos era nossa Vendéia", que "o chouan (camponês
vendeano) e as charnecas emparelham-se bem como o jagunço e as caatingas".
Assim, registra novamente o "mesmo misticismo, gênesis da mesma aspiração
política" e as "mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias,
e a mesma natureza adversa". Ao que se saiba, ainda não existe palavra
para estabelecer uma identidade mais cabal que o vocábulo mesmo,
tão usado nesse trecho.
Já bem adiante, no final do Cap. V da "Quarta Expedição",
Euclides vai retomar a comparação, dizendo que eram os jornais
que acreditavam nela, ao equipararem os jagunços aos chouans.
Menciona a propósito três dos líderes da insurreição
da Vendéia -Fontenay, Chatelineau, Charette - os dois últimos
ganhando num confronte pejorativo para os canudenses. Pageú é
um "bronco", quando comparado com "o facies dominador de Chatelineau"
e "João Abade era um Charette de chapéu de couro". Além
disso, Macambira, outro chefe canudense, é chamado de Imanus, ser meio
fantástico que atuou na revolta da Vendéia: e os apelidos dos
jagunços são aproximadamente aos dos vendeanos.
Os usos do exclamativo "Viva a República!" ilustram a presença
da Revolução Francesa tanto na idéias de Euclides como
no Exército. Era o grito de guerra, cada vez que as tropas saúdam
um superior ou arrancam numa investida contra Canudos, essa é oficialmente
a exclamação. As ordens do dia emitidas pelos chefes militares
na campanha se encerram com igual fórmula. Euclides termina vários
de seus telegramas para o jornal com um "Viva a República!"
ou com "A República é imortal!"
Utopia guiando a ação histórica? Ilusão mobilizada
para minimizar o desempenho que, no fundo, visava preservar o mesmo estado de
coisas anterior, só que agora sem rei? De um modo ou de outro, o ideal
da Revolução Francesa pairou sobre Euclides e sobre as tropas
na Guerra de Canudos.
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