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Extraído de: Abdala Jr, Benjamin & Alexandre, Isabel, orgs.
Canudos Palavra de Deus Povo da Terra. São Paulo, Editora Senac São
Paulo, Boitempo Editorial, 1997. p. 103-155.
(Professora Titular de Teoria Literária da Universidade
de São Paulo) O papel de Euclides da Cunha na construção da memória
da Guerra de Canudos é fundador. Seu livro, Os sertões
(1902), fez por uma insurreição popular o que nenhum outro foi
capaz de fazer, no país: alçou-a a tragédia paradigmática,
mediante o louvor à coragem do vencido.
Bem menos divulgada, mas de extraordinária relevância enquanto
embrião do livro, é a série de reportagens que Euclides
escreveu como correspondente de guerra do jornal A Província (hoje
O Estado) de S. Paulo. Enviado ao palco dos acontecimentos, foi
de lá mandando correspondência e telegramas que iam sendo publicados
no jornal. A série só foi editada pela primeira vez em livro em
1939, com o título Canudos - Diário de uma expedição.
Entretanto, no ano da guerra - 1897 - Euclides também escreveu cartas
pessoais, e é delas que se tratará mais detidamente a seguir.
Das cartas de Euclides da Cunha 1, observa-se que poucas restam
do período anterior à notoriedade trazida pela publicação
de Os sertões, em 1902 - exceto aquelas dirigidas a Reinaldo Porchat,
futuro primeiro reitor da Universidade de São Paulo (USP). Não
fosse essa numerosa coleção. até há pouco inédita
2, pouco se saberia, de mão própria, dessa fase da
vida do escritor.
O destaque adquirido por Euclides, a partir do fim de 1902, data de cinco
anos após o término da Guerra de Canudos, em outubro de 1897.
Daí para a frente, intensifica-se de maneira visível o volume
da correspondência ativa, ciosamente guardada pelos destinatários.
Mesmo assim. interveio uma vontade de preservação, como
aquela, exemplar, demonstrada por Reinaldo Porchat e seus descendentes.
A amizade entre Euclides e Reinaldo Porchat (1868-1953) nasceu no círculo
de convivência do jornal A Província de S. Paulo, suscitada
pela figura de Júlio de Mesquita, a essa época baluarte do republicanismo.
Reinaldo Porchat, que se tornaria um bom amigo e fiel correspondente, formou-se
pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1891 e foi como Euclides, militante
republicano. Mais tarde, será catedrático de Direito Romano a
partir de 1903 e diretor da mesma escola em 1930 e 1931, bem como senador estadual
de 1923 a 1925, antes de se tornar o primeiro reitor da USP em 1934. Já
integrava esse círculo quando Euclides, que vivia no Rio de Janeiro,
veio residir por um ano, o de 1889, em São Paulo. A essa altura, Euclides,
que estudava na Escola Militar, foco de agitação antimonarquista,
praticara um gesto de rebeldia que dera o que falar. Quando Tomas Coelho, ministro
da Guerra e portanto representando a autoridade imperial, passava em revista
as tropas perfiladas no recinto da escola, à voz de apresentar armas
o então cadete atirou seu sabre ao chão. Preso e depois expulso
da escola, Euclides muda-se para São Paulo, onde o grupo do periódico,
de cujas idéias partilhava, o acolhe com fervor. O destino do escritor
não mais se desvencilhará de O Estado de S. Paulo, no qual
passará o ano todo publicando ferventes artigos de propaganda republicana.
Esse é o episódio que, por vias transversas, está na raiz
da camaradagem duradoura entre ambos: a última carta a Reinaldo Porchat
precede de pouco a morte do escritor.
Com esse lote de correspondência, Reinaldo Porchat passa a ocupar o
posto de segundo maior destinatário de Euclides. E só perde para
o imbatível Francisco de Escobar, influente advogado e político
mineiro, intendente de São José do Rio Pardo à época
em que Euclides lá viveu e trabalhou como engenheiro da Superintendência
de Obras Públicas do Estado de São Paulo. escalado para reconstruir
a ponte sobre o rio Pardo, que uma enchente levara de roldão Escobar,
futuro prefeito de Poços de Caldas, era homem culto ("doutíssimo
e eruditíssimo", dele disse Coelho Neto) possuidor de notável
biblioteca, e tornou-se o interlocutor assíduo de Euclides no período
tormentoso de redação de Os sertões, naquela cidade.
Posição que manteve pelos anos afora, em incessante troca epistolar
- mas ambos só travariam conhecimento após o ano de 1897, que
aqui nos ocupa.
Mais um missivista avulta nessa fase. Trata-se de João Luís
Alves, a quem Euclides se ligou quando foi morar em Campanha, Minas Gerais (1894),
após ter retornado de São Paulo ao Rio com o advento da República.
Designado para a Diretoria de Obras Militares na cidade mineira, consta que
a transferência teria encoberto uma punição. Nesse ano de
1894, o sogro de Euclides, general Solon Ribeiro, membro do grupo de militares
que conspirara para proclamar a República, sofreu pena semelhante imposta
pelo Governo. Sem mencionar seu próprio caso, Euclides envia lhe uma
carta, a 6 de junho, já de Campanha, manifestando seu repúdio
à remoção do sogro para Mato Grosso, lugar que tem "a
função lamentável de prestar-se a todos os exílios
disfarçados e hipócritas". Ainda oficial do Exército
- do qual viria a reformar-se aos trinta anos - e vivendo no Rio, Euclides caíra
em desgraça por ter protestado publicamente contra o alvitre de executar-se
sumariamente os presos da Revolta da Armada, sendo enviado no mês seguinte
para a distante Campanha. Lá chegando, fez vários amigos, com
quem se correspondeu após ter-se mudado dali. O mais constante dentre
eles foi, justamente, João Luís Alves (1870-1925), advogado mineiro
que se encaminharia para a política, tornando-se sucessivamente deputado,
senador, ministro da Justiça e do Supremo Tribunal.
As relações entre ambos só foram definitivamente cortadas
pela morte de Euclides. Disso é prova a última carta que este
Lhe endereçou, a cerca de dois meses de seu fim. Datada de 10 de junho
de 1909, são termos de seu fecho: "Recado do velho amigo Euclides".
Mais explícita ainda é a saudação final da penúltima,
de 15 de novembro de 1907: ... abraço-te com todo o carinho de nossa
velha amizade".
Tentando remendar os retalhos de 1897, destacam-se três cartas a João
Luís Alves nesse ano, remetidas de São Paulo, todas contendo alusões
a Canudos. Em linhas gerais, expõem a idéia inteiramente negativa
que Euclides abrigava a propósito do levante, corroborada por outras
que examinaremos adiante e da qual Os sertões viriam a ser o portentoso
desmentido.
A primeira é escrita a 14 de março de 1897, ainda sob o impacto
da debandada da Expedição Moreira César, ou terceira expedição,
ocorrida dias antes. Nessa data saíra publicado em O Estado de S.
Paulo o primeiro dos dois artigos intitulados "A nossa Vendéia",
depois título provisório do futuro livro, que tecem comentários
sobre o episódio. O missivista menciona o episódio mas não
seu artigo: Escrevendo-lhe de novo Euclides duas semanas depois, a 1° de abril, depreende-se
que nesse ínterim João Luís Alves lhe respondera, comentando
o tópico e em concordância de opinião: A carta seguinte, de 23 de julho, é escrita uma semana depois de publicada
a segunda parte de "A nossa Vendéia", a 17 de julho. Nela Euclides
indaga do amigo se tem lido seus artigos Decorre menos de um mês - e já damos com o escritor na Bahia,
como correspondente de guerra do jornal de sempre. Para ali seguira a bordo
do Espírito Santo, viajando de 4 a 7 de agosto. Logo no dia 12,
uma carta ao general Solon rompe o presumível silêncio para tratar
de assunto bastante delicado, vendo-se Euclides em palpos de aranha para se
explicar ao sogro, o que trata de fazer. Trechos dessa carta foram publicados
na Revista do Brasil, n.78, de junho de 1922 reproduzindo artigo de Maurício
de Lacerda em O Imparcial (s/d), intitulado "A missão de
Euclides" . O autor do artigo esclarece que Euclides se hospedara em Salvador
"em casa do tio José", cujo papel timbrado utiliza. Os trechos
são os seguintes O motivo dessa tortuosa explicação é que o sogro e o
governador eram agora inimigos jurados. O primeiro tendo sido até o começo
do ano comandante do 3° Distrito Militar, com sede na Bahia; e o estopim
do dissídio fora justamente a Guerra de Canudos. A Expedição
Tenente Pires Ferreira, ou primeira expedição contra Canudos,
formara-se com forças estaduais. Mas a segunda, ou Expedição
Major Febrônio de Brito, fora integrada por tropas federais, sob responsabilidade
do comandante do distrito. O fracasso de mais essa expedição acabou
provocando um desentendimento entre o general e o governador - cada um responsabilizando
o outro pelo desastre - do qual resultara a demissão daquele.
No início da quarta expedição, ou Expedição
Artur Oscar, o correspondente da Gazeta de Notícias, no Rio, procura
o governador Luís Viana para uma entrevista a respeito da guerra, publicada
a 7 de agosto de 1897. Este se defende da acusação de estar mancomunado
com conselheiristas e monarquistas, negando ter pedido ao Governo da União
a demissão do general Solon, a quem, em troca, atribui a acusação.
Aproveita para atacar outro inimigo, o ex-vice-governador José Gonçalves,
e repele a suspeita de que hostiliza o Exército. Mas tem mais. O diligente
repórter sai no encalço de José Gonçalves e publica
sua entrevista a 17 de agosto. Este põe na conta de Luís Viana
a derrota de todas as expedições e o clima de intranqüilidade
reinante. Sobre a atuação do governador, diz que "aqui reina
o mais estúpido e brutal despotismo". E sai em defesa do general
Solon, o qual, segundo Luís Viana, se recusava a deixar a Bahia apesar
de demitido e o intrigava com o Exército. Acrescenta que Luís
Viana atrapalhara a ação do general porque. a seu ver. interferira
na soberania do Estado. As farpas com que os figurões se mimosearam mutuamente
e a terceiros, a propósito, ou a despropósito, exigiram que Euclides
desse uma explicação ao sogro: afinal, tomara a iniciativa de
ir apertar a mão do governador. Sua carta data de cinco dias após
a publicação da entrevista de Luís Viana no Rio. A crer
em seus termos, o general Solon não estava a par de sua nova tarefa,
aliás nebulosamente definida. Como se não bastasse - e o tom é
de justificativa -, ainda precisa pedir desculpas por ter-se valido de uma apresentação
do futuro presidente Campos Sales a Luis Viana, o álibi sendo Machado
Bittencourt hóspede do governador, "o que me obriga a ir diariamente
a palácio". O caso é de fato delicado e o missivista multiplica
negaceios, turvando ainda mais as águas.
Dias depois, uma carta a Reinaldo Porchat, de 20 de agosto, nem sequer alude
ao assunto. Na qualidade de membro do Estado-Maior do ministro da Guerra, doublé
de repórter, Euclides seguira junto com o ministro e com as tropas, a
bordo do Espírito Santo, do que vai dando conta nas matérias
que envia para o jornal. Ao amigo, apenas reclama da demora da estada em Salvador
Entre os enredos infelizmente incompletos e as queixas quanto à saúde,
freqüentes em sua epistolografia, Euclides encontrou tempo para outras
atividades, inesperadas na conjuntura, como procurar Pethion de Villar e cuidar
de literatura. Disso dá conta um cartão de visita (com os dizeres
impressos "Euclides da Cunha - Engenheiro militar"), sem data, contendo
um bilhete dirigido ao médico e escritor baiano Egas Moniz Barreto de
Aragão, que usava aquele pseudônimo 3: A anotar, a insinuação de vir a ser confrade, ou seja,
colega de Academia. Posteriormente, duas outras cartas, datadas de São
José do Rio Pardo a 15 de maio de 1900 e de Lorena a 6 de fevereiro de
1903, confirmarão esse contato pessoal efetuado em Salvador. Ambas aludem
a um oferecimento que teria sido avançado por Pethion de Villar, "quando
aí estive", conforme a primeira, de traduzir para o francês
o futuro livro sobre a Campanha; o que não veio a ocorrer. Mas o missivista
aproveita para participar que o livro está pronto. Na segunda, agradece
a carta recebida, em que o baiano louva Os sertões, e lembra de
novo a promessa de tradução. Está em via de tornar-se de
fato um confrade, mas em nível nacional e não estadual, dado que
a carta a Machado de Assis, presidente da Academia Brasileira de Letras, apresentando
sua candidatura, é de 21 de junho de 1903.
Voltando ao bilhete: Os holandeses deve ser o título provisório
ou alternativo de um drama em versos inconcluso, do qual resta um trecho chamado
"Calabar", hipoteticamente atribuído ao ano de 1887. Quanto
a Os bandeirantes, há dois poemas dedicados a Coelho Neto que
nele poderiam se encaixar, pelo assunto. Um é "As catas", que
leva a data de Campanha, 1895; o outro é "Fragmentos de poesia",
datado de 1896. Todos figuram na seção "Poesia", das
Obras completas 4. É de lamentar que os anexos referidos pelo
bilhete se tenham perdido.
Em meio a tais rapapés versificados, Euclides ganharia dedicatória
de Pethion de Villar a um soneto em francês, estampado na primeira página
do Diário da Bahia de 10 de outubro de 1897, cinco dias após o
término da guerra:
O mito de Caim foi caro aos românticos, que nele simbolizavam com sinal
positivo o herói maldito, o rebelde, o desafiador das convenções
burguesas. Entre os mais célebres poemas consagrados ao errante, anteriores
a este, e de grande popularidade oitocentista, estão os de Victor Hugo
na "Légende dês siècles", o "Abel et Caïn"
de Baudelaire e o "Qaïn" de Leconte de Lisle. Como sempre, os
modelos franceses eram mais acessíveis aos brasileiros; mas nem por isso
se devem esquecer as contribuições de Shelley e de Byron. Entretanto,
a imagem visual evocada pelo soneto de Pethion de Villar lembra mais a iconografia
dos quatro cavaleiros do Apocalipse - a Morte, um velho nu de barbas em sua
esquelética montaria, lado a lado com a Peste, a Fome e a Guerra. Assim
aparecem em inúmeras representações, inclusive a famosa
de Albrecht Dürer. Aqui, o título alegoriza a natureza fratricida
das lutas de Canudos.
Mais duas cartas a Reinaldo Porchat encerram o ano de 1897. Na primeira, de
27 de outubro, enviada da fazenda paterna, Euclides se mostra desolado por não
ter podido ficar em São Paulo para presenciar as festas de recepção
aos "teus valentes patrícios", por motivo de doença.
A alusão diz respeito às tropas paulistas do 6° batalhão
de polícia que lutaram na guerra e que foram objeto de um artigo laudatório
do escritor, 'O batalhão de São Paulo", que aparecera um
dia antes, a 26 de outubro. Nele, Euclides menciona "a epopéia ainda
não escrita dos Bandeirantes A segunda, quase findo o ano, mostra o escritor juntando materiais para Os
sertões, ao solicitar o envio de um livro sobre "mania religiosa"
Os tempos seguintes serão tomados pela feitura de Os sertões
e, por isso mesmo, ficarão praticamente omissos em epistolografia. Só
mais tarde é que esta recomeça a se intensificar, estando a tarefa
terminada. O que faz supor, se não for uma imprudente dedução
baseada naquilo que restou, que a Euclides não sobrava disposição
para escrever outra coisa que não o livro. E a correspondência
preservada após a publicação aumenta consideravelmente,
na razão direta da mudança de status do autor. 1. Correspondência de Euclides da Cunha, São
Paulo, Edusp, 1997
2. Dessa fase, três cartas foram publicadas por Rosaura
de Escobar no Suplemento Euclidiano da Gazeta do Rio Pardo, n.
X, 1987, e três posteriores figuram nas principais coletâneas.
3. Devo este bilhete ao pesquisador e erudito Erthos Albino de
Souza, que o encontrou e fotografou em Salvador; o autógrafo pertence
a Antônio Paulo Góis de Araújo.
4. Euclides da Cunha, Obras completas, Rio de Janeiro,
Aguillar, 1966, vol. 1, p. 646-7, 652-5.
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