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UM DESGARRÃO DA ENGENHARIA RUDE
Em carta ao crítico José Veríssimo, em dezembro de 1901,
o escritor diz que seu livro tem "o mérito único da sinceridade"
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por Walnice Nogueira Galvão
Esta carta a José Veríssimo (1857-1916) -em poder do dr. Jorge
Veríssimo, seu neto- se encaixa na epistolografia de Euclides como peça de
um quebra-cabeça em que os laços pessoais comportam vários graus. Os dois
destinatários campeões são Francisco de Escobar (1865-1924) e Reinaldo
Porchat (1868-1953), companheiros adquiridos antes do advento da fama e
que manteriam acesa a chama da amizade pela vida afora. O contato com
Porchat tem precedência, ocorrendo quando Euclides começou a frequentar o
cenáculo de militantes republicanos do jornal "A Província" (depois "O
Estado de S. Paulo"), após ser expulso da Escola Militar no Rio. Aguardava
Porchat ilustre carreira na arena pública, e viria a se tornar o primeiro
reitor da Universidade de São Paulo. Quanto a Francisco de Escobar, detém
o privilégio de ser não só o correspondente mais assíduo, mas também o
amigo mais chegado. Republicano da primeira hora, era intendente em São
José do Rio Pardo (SP), onde "Os Sertões" foi posto no papel. Mais tarde
seria prefeito de Poços de Caldas (MG), bem como senador estadual em Minas
Gerais. Nunca desistiria, apesar de serem esforços baldados, de tentar
encaminhar seu camarada dileto para a política eleitoral.
Reconhecimento Mas Euclides ainda viria a entreter outros
missivistas, dentre os intelectuais mais dignos de nota do país, aos quais
enviou um epistolário seleto. Nos últimos anos de vida, e praticamente até
sua morte, em 15 de agosto de 1909, um dos destinatários mais frequentes,
para discussão tanto de idéias quanto de livros, foi Oliveira Lima
(1867-1928). O historiador e diplomata, então embaixador em Washington,
era autor de "D. João 6º no Brasil" [ed. Topbooks], que Euclides leu e
comentou. Os demais incluem Plínio Barreto, Max Fleiuss, Gastão da Cunha,
Alberto Rangel, Coelho Netto, João Luís Alves, Henrique Coelho, Domício da
Gama, Vicente de Carvalho etc., dentre os contumazes. Embora em menor
número, trocaria cartas com Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Afonso
Arinos, Rio Branco, Rodrigo Otávio e outros. No primeiro grupo se
situa José Veríssimo, o paraense membro da santíssima trindade da crítica
literária da época, ao lado de Sílvio Romero e Araripe Jr., junto a quem
Euclides realiza gestões para conseguir publicar seu livro. Uma menção
indireta já tivera Escobar por objeto, quando o autor comenta o quanto lhe
foram úteis os préstimos do crítico: "Estive no Rio. E lá deixei entregue
ao Laemmert os meus "Sertões", título que dei ao livro que aí te li em
parte. O contrato que fiz, não precisava dizer, foi desvantajoso embora
levasse à presença daqueles honrados saxônios um fiador de alto coturno,
José Veríssimo, de quem sou hoje devedor, pela extraordinária gentileza
com que me tratou".
Cabo eleitoral Na carta [leia na
contracapa], Euclides manifesta pessoalmente sua gratidão ao crítico pelo
favor que lhe fez, ao empenhar seu prestígio. Em outra oportunidade,
mostraria seu reconhecimento tanto por isso quanto pelo longo e precoce
estudo da pena de Veríssimo sobre "Os Sertões": "(...) ao sr. devo o favor
da apresentação do meu nome, então obscuro, à sociedade inteligente da
nossa terra, amparando-o com extraordinária generosidade". Do mesmo
modo, Euclides solicitaria a Veríssimo que fosse cabo eleitoral de sua
candidatura, afinal vitoriosa, à Academia Brasileira de Letras. Seria a
ele e a Oliveira Lima que Euclides pediria a indicação de seu nome ao
barão do Rio Branco, para obter a posição que ambicionava, a de chefe da
Comissão de Reconhecimento do Alto Purus. Tudo isso se acha documentado.
Elevam-se a uma vintena as cartas conhecidas a José Veríssimo. A
partir da primeira, passariam a se corresponder, se não com regularidade,
ao menos esporadicamente, fato que em boa parte se deve à transferência de
Euclides para o Rio, no segundo semestre de 1904. Desde então, portanto,
encontravam-se e se falavam pessoalmente, sem ensejo para epistolografia.
É o que sugere a temporada amazônica, quando a troca se intensificou,
suscitada inclusive pelo fato de Veríssimo ser paraense.
"Pecados originais" No entanto, com o passar do tempo,
surgem insinuações de que o convívio foi azedando. Numa última carta,
datada de 1908, vemos Euclides comentando uma nova crítica de Veríssimo a
seu respeito na "Revista Literária", a qual, em suas palavras, mais uma
vez "aponta os pecados originais da minha maneira de escrever", como já
ocorrera com "Os Sertões": Veríssimo torna a sublinhar o abuso de termos
técnicos e científicos, Euclides torna a defender sua pertinência. E trata
de desfazer uma intriga ou inconfidência, jurando a Veríssimo que, quando
aludiu a "um crítico reportado e sabedor", não se referia a ele... O
fato é que, conforme Veríssimo confidenciaria a Mário de Alencar, ao
escrever-lhe dois dias após a morte de Euclides, sua opinião reservada
também se modificara. Nessa carta, cujo original foi revelado por Josué
Montello, Veríssimo ponderava que ambos tinham feito esforços para se
tolerarem mutuamente, tal a dissensão de temperamento e estilo. Embaraçado
nas tentativas de um balanço equânime, termina afirmando: "(...) sempre
achei excessiva a sua fortuna literária, que estou certo não lhe
sobreviverá por muito tempo". Seja como for, afora seu papel de
patrono, levando-se em conta a quantidade de apoios solicitados e
atendidos, Veríssimo detém o título de ter sido o primeiro a redigir uma
crítica propriamente dita, e não apenas uma resenha ou comentário -quando
do lançamento de "Os Sertões", em artigo publicado no dia 3 de dezembro de
1902, nas páginas do "Correio da Manhã".
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de
literatura na USP e organizadora da edição crítica de "Os Sertões" (ed.
Brasiliense, 1985). É autora também de, entre outros, "Guimarães Rosa"
(Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).
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DAS RAÇAS
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