São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002



UM DESGARRÃO DA ENGENHARIA RUDE


Em carta ao crítico José Veríssimo, em dezembro de 1901, o escritor diz que seu livro tem "o mérito único da sinceridade"


por Walnice Nogueira Galvão

Esta carta a José Veríssimo (1857-1916) -em poder do dr. Jorge Veríssimo, seu neto- se encaixa na epistolografia de Euclides como peça de um quebra-cabeça em que os laços pessoais comportam vários graus. Os dois destinatários campeões são Francisco de Escobar (1865-1924) e Reinaldo Porchat (1868-1953), companheiros adquiridos antes do advento da fama e que manteriam acesa a chama da amizade pela vida afora.
O contato com Porchat tem precedência, ocorrendo quando Euclides começou a frequentar o cenáculo de militantes republicanos do jornal "A Província" (depois "O Estado de S. Paulo"), após ser expulso da Escola Militar no Rio. Aguardava Porchat ilustre carreira na arena pública, e viria a se tornar o primeiro reitor da Universidade de São Paulo. Quanto a Francisco de Escobar, detém o privilégio de ser não só o correspondente mais assíduo, mas também o amigo mais chegado. Republicano da primeira hora, era intendente em São José do Rio Pardo (SP), onde "Os Sertões" foi posto no papel. Mais tarde seria prefeito de Poços de Caldas (MG), bem como senador estadual em Minas Gerais. Nunca desistiria, apesar de serem esforços baldados, de tentar encaminhar seu camarada dileto para a política eleitoral.

Reconhecimento Mas Euclides ainda viria a entreter outros missivistas, dentre os intelectuais mais dignos de nota do país, aos quais enviou um epistolário seleto. Nos últimos anos de vida, e praticamente até sua morte, em 15 de agosto de 1909, um dos destinatários mais frequentes, para discussão tanto de idéias quanto de livros, foi Oliveira Lima (1867-1928). O historiador e diplomata, então embaixador em Washington, era autor de "D. João 6º no Brasil" [ed. Topbooks], que Euclides leu e comentou. Os demais incluem Plínio Barreto, Max Fleiuss, Gastão da Cunha, Alberto Rangel, Coelho Netto, João Luís Alves, Henrique Coelho, Domício da Gama, Vicente de Carvalho etc., dentre os contumazes. Embora em menor número, trocaria cartas com Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Afonso Arinos, Rio Branco, Rodrigo Otávio e outros.
No primeiro grupo se situa José Veríssimo, o paraense membro da santíssima trindade da crítica literária da época, ao lado de Sílvio Romero e Araripe Jr., junto a quem Euclides realiza gestões para conseguir publicar seu livro. Uma menção indireta já tivera Escobar por objeto, quando o autor comenta o quanto lhe foram úteis os préstimos do crítico: "Estive no Rio. E lá deixei entregue ao Laemmert os meus "Sertões", título que dei ao livro que aí te li em parte. O contrato que fiz, não precisava dizer, foi desvantajoso embora levasse à presença daqueles honrados saxônios um fiador de alto coturno, José Veríssimo, de quem sou hoje devedor, pela extraordinária gentileza com que me tratou".

Cabo eleitoral Na carta [leia na contracapa], Euclides manifesta pessoalmente sua gratidão ao crítico pelo favor que lhe fez, ao empenhar seu prestígio. Em outra oportunidade, mostraria seu reconhecimento tanto por isso quanto pelo longo e precoce estudo da pena de Veríssimo sobre "Os Sertões": "(...) ao sr. devo o favor da apresentação do meu nome, então obscuro, à sociedade inteligente da nossa terra, amparando-o com extraordinária generosidade".
Do mesmo modo, Euclides solicitaria a Veríssimo que fosse cabo eleitoral de sua candidatura, afinal vitoriosa, à Academia Brasileira de Letras. Seria a ele e a Oliveira Lima que Euclides pediria a indicação de seu nome ao barão do Rio Branco, para obter a posição que ambicionava, a de chefe da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus. Tudo isso se acha documentado.
Elevam-se a uma vintena as cartas conhecidas a José Veríssimo. A partir da primeira, passariam a se corresponder, se não com regularidade, ao menos esporadicamente, fato que em boa parte se deve à transferência de Euclides para o Rio, no segundo semestre de 1904. Desde então, portanto, encontravam-se e se falavam pessoalmente, sem ensejo para epistolografia. É o que sugere a temporada amazônica, quando a troca se intensificou, suscitada inclusive pelo fato de Veríssimo ser paraense.

"Pecados originais" No entanto, com o passar do tempo, surgem insinuações de que o convívio foi azedando. Numa última carta, datada de 1908, vemos Euclides comentando uma nova crítica de Veríssimo a seu respeito na "Revista Literária", a qual, em suas palavras, mais uma vez "aponta os pecados originais da minha maneira de escrever", como já ocorrera com "Os Sertões": Veríssimo torna a sublinhar o abuso de termos técnicos e científicos, Euclides torna a defender sua pertinência. E trata de desfazer uma intriga ou inconfidência, jurando a Veríssimo que, quando aludiu a "um crítico reportado e sabedor", não se referia a ele...
O fato é que, conforme Veríssimo confidenciaria a Mário de Alencar, ao escrever-lhe dois dias após a morte de Euclides, sua opinião reservada também se modificara. Nessa carta, cujo original foi revelado por Josué Montello, Veríssimo ponderava que ambos tinham feito esforços para se tolerarem mutuamente, tal a dissensão de temperamento e estilo. Embaraçado nas tentativas de um balanço equânime, termina afirmando: "(...) sempre achei excessiva a sua fortuna literária, que estou certo não lhe sobreviverá por muito tempo".
Seja como for, afora seu papel de patrono, levando-se em conta a quantidade de apoios solicitados e atendidos, Veríssimo detém o título de ter sido o primeiro a redigir uma crítica propriamente dita, e não apenas uma resenha ou comentário -quando do lançamento de "Os Sertões", em artigo publicado no dia 3 de dezembro de 1902, nas páginas do "Correio da Manhã".


Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e organizadora da edição crítica de "Os Sertões" (ed. Brasiliense, 1985). É autora também de, entre outros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).


Texto Anterior: METAMORFOSE DAS RAÇAS



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.

O Berrante Online é uma criação coletiva do Coletivo Euclidiano. Contribuições são bem-vindas!

 

 

Free Web Hosting