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O SERTÃO DA DIALÉTICA NEGATIVA
Leitura de "Facundo", do argentino Domingo Sarmiento, forneceu
ao brasileiro as bases para desenvolver a noção de modernidade
como bênção e catástrofe
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por Sergio Paulo Rouanet
Pelo menos desde Hegel (1770-1831), o pensamento filosófico ocidental
se habituou a uma forma otimista de lidar com a contradição. Sim, a
oposição de tese e antítese era a lei geral do espírito e da história, mas
a tensão mesma dos pólos antagônicos impulsionava as idéias e as coisas em
direção a uma síntese superior, capaz de preservar e transcender os
opostos. Foi preciso esperar Adorno (1903-1969) para que surgisse o
conceito de uma dialética negativa, capaz de manter a contradição em toda
a sua virulência, uma dialética sem síntese, em que os dois pólos
permanecessem inconciliáveis. Aplicada à crítica da cultura, essa
dialética proclama que a modernidade é ao mesmo tempo repressiva e
libertadora. Ela é repressiva porque, contendo em si elementos míticos,
não é suficientemente racional e, a pretexto de lutar contra o arcaísmo,
produz frequentemente efeitos desumanos. E é libertadora porque, sem ela,
o homem não teria nenhum controle sobre a natureza e ficaria sujeito à
superstição e à tutela da autoridade ilegítima. Apropriando-se da antítese
entre civilização e barbárie, usada pelo argentino Domingo Sarmiento
[1811-88; presidente da Argentina entre 1868 e 74, célebre pelo livro
"Facundo" (1845), sobre o caudilhismo] e que teria tão grande curso no
debate de idéias no Brasil e na Europa, Euclides da Cunha se aproxima
dessa dialética, em suas duas vertentes: a modernidade enquanto barbárie e
a modernidade como força civilizadora. As forças que representavam a
modernidade, em Canudos, eram elas próprias arcaicas. O delírio de Canudos
tinha uma contrapartida exata na capital. Em Canudos, os jagunços baleavam
os intrusos com seus clavinotes; no Rio, os florianistas linchavam
transeuntes e empastelavam jornais. Para os conselheiristas, a república
era o reino do anticristo; para os citadinos, Canudos era o centro de uma
conspiração monarquista. Para os cariocas, Canudos era a Vendéia; para os
jagunços, o Rio era a Babilônia. Os conselheiristas tocavam sinos e
cantavam hinos religiosos. As tropas do governo saudavam o aniversário da
queda da Bastilha metralhando os jagunços com salvas de 21 tiros e
cantando o Hino Nacional. Os dois campos se interpenetravam. Os soldados e
os combatentes do arraial eram idênticos na origem regional, na fala,
muitas vezes no vestuário. Sua religiosidade era a mesma. Criados ouvindo
lendas sobre os milagres do Conselheiro, os soldados do Norte tinham as
mesmas crendices dos jagunços. Havia o mesmo arcaísmo entre os oficiais.
Os que tombavam à entrada de Canudos tinham no peito esquerdo uma pequena
medalha de bronze com a efígie de Floriano e, ao morrer, saudavam sua
memória com o mesmo fervor que os jagunços reservavam ao Bom Jesus.
Figuras simétricas A crueldade era idêntica nos dois lados.
Para Euclides, o Conselheiro e o coronel Moreira César eram figuras
simétricas. O Conselheiro era um doente mental; o coronel, um epiléptico.
Duas patologias, reforçadas por duas sociedades retrógradas. O uniforme de
Moreira César era o avesso do camisolão azul do Conselheiro. Ao mesmo
tempo, Euclides não vê saída fora da modernidade. O progresso técnico é um
bem. E a civilização é um processo inexorável. O mundo moderno pode ser um
Moloch, sedento de sangue, um "Juggernaut", carro divino cujas rodas
esmagam pessoas e tradições, mas representa um estágio superior e
necessário na evolução da humanidade. É o que ele deixa claro desde a
"Nota Preliminar": a civilização avançará implacavelmente, arrasando raças
e culturas arcaicas, e Canudos foi, no Brasil, a primeira escaramuça dessa
guerra, da qual os soldados do governo foram "mercenários inconscientes".
Só a adesão plena à modernidade poderá impedir a extinção do Brasil como
entidade nacional, do mesmo modo que foram ou estão sendo extintas as
"sub-raças sertanejas". A dupla vertente dessa dialética pode ser
ilustrada por duas frases de Euclides. A primeira denuncia a modernidade
enquanto barbárie: Canudos só viu "o brilho da civilização através do
clarão das descargas". A segunda afirma que a modernidade é inevitável:
"Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos". A
dialética negativa pode exercer um papel importante. Ela impede as
reconciliações prematuras e permite fazer justiça aos dois pólos de um
conflito. No caso de Euclides, ela evitou tanto a exaltação da modernidade
quanto sua contestação obscurantista. Mas, dito isto, a dialética
negativa é um "Holzweg", o caminho dos caminhos que não levam a lugar
nenhum. Ela dá ao pensamento uma dignidade trágica, mas paralisa a ação.
Foi por isso que Habermas, o último grande herdeiro do pensamento de
Adorno, não hesitou em substituir a retórica da "grande recusa" pelo que
ele chamou de "reformismo radical". Euclides também procurou saídas
para os impasses da dialética negativa. Num certo momento, depositou
esperanças no sertanejo, "a rocha viva de nossa nacionalidade". Os
sertanejos, pelo fato de terem ficado isolados do mundo exterior, tiveram
a sorte de evoluir segundos seus próprios ritmos, ao contrário dos
mestiços litorâneos, expostos a influências européias que eles não podiam
assimilar. Livre dessas influências, o sertanejo ascenderia
progressivamente ao estágio da civilização, transformando-se no
sustentáculo de uma modernidade real.
Ilusões perdidas Mas
na "Nota Preliminar" Euclides parece ter perdido essas ilusões. O jagunço,
o tabaréu e o caipira "destinavam-se talvez à formação dos princípios
imediatos de uma grande raça". Mas agora é tarde demais. A civilização já
os condenou. A "Tróia de taipa" teve o mesmo destino da Tróia homérica, e
só resta a Euclides, como novo Virgílio, chorar sobre suas ruínas
calcinadas, "ubi Troia olim fuit", onde outrora foi Tróia. Em
consequência, a última palavra fica mesmo com a dialética negativa: a
modernidade é ao mesmo tempo uma bênção e uma catástrofe, sem mediação
entre os dois pólos. Mas, se não nos satisfizermos com essa conclusão,
talvez encontremos alternativas menos melancólicas no próprio pensamento
de Euclides, devidamente depurado das categorias raciais que o deformam.
Substituindo a grade biológica pela sociológica, veríamos na guerra de
Canudos a metáfora de uma modernização de fachada, resultante da aliança
entre o "feudalismo tacanho" do interior e as frágeis elites burguesas
(constituídas, em parte, pelos famosos "mestiços neurastênicos do
litoral"). Com isso, desvendamos o fundamento da interpenetração do
velho e do novo que Euclides descobrira nas forças pretensamente
modernizadoras. A mescla vinha do fato de que a burguesia republicana não
era na realidade uma força progressista, porque estava comprometida com a
grande propriedade e com a antiga classe escravocrata, revelando-se
incapaz de cumprir sua missão histórica de realizar a reforma agrária. A
"modernização" pretendida por essa burguesia era de fato a perpetuação do
latifúndio, o novo a serviço do velho. A tarefa só pode ser executada por
uma classe ou aliança de classes capaz de levar em frente o projeto da
modernidade, sem excessivos compromissos com as velhas elites de poder e
também sem adotar uma política de terra arrasada com relação às raízes
culturais do país.
Superar contradições Qual seria essa
classe? Para Euclides, era a "raça" sertaneja ou, numa linguagem que hoje
consideraríamos menos extravagante, a "classe" camponesa. O MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) talvez concorde com Euclides. Mas os
últimos acontecimentos políticos no Brasil parecem favorecer uma
interpretação marxista curiosamente ortodoxa, segundo a qual o
proletariado industrial seria o verdadeiro motor da renovação. Em
qualquer hipótese, é o fim da dialética negativa no Brasil. Hegel é mais
atual que Adorno. No país novo que está começando, não se trata de
idealizar as contradições, mas de superá-las, em busca das sínteses
possíveis. E é o fim, em especial, da aplicação da dialética negativa à
crítica da modernidade. Não se trata de querer e não querer a modernidade,
mas de implementar sem ambiguidade o projeto moderno, constituído, em sua
essência, pelos grandes ideais humanistas do Iluminismo e que, portanto, é
visceralmente incompatível com a barbárie que arrasou Canudos.
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante
na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de,
entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia.
das Letras). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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