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In: À Margem da História. Porto, Lello Brasileira, 1967.
p. 245-255.
ESTRELAS INDECIFRÁVEIS
Euclides da Cunha
Conta-nos S. Mateus daqueles três reis magos, que abalaram de seus países
em busca do Messias recém-nado, conduzidos por uma estrela extraordinária
que, improvisamente, resplandesceu na altura, em plena luz de um firmamento
claro.
Não critiquemos, impiamente, a narrativa singela do primeiro evangelista.
Justifiquemo-la. Por aqueles tempos, da Caldeia à Grécia e à
Itália, à Índia e à China, os graves acontecimentos,
ao parecer dos mais sisudos astrólogos, prenunciavam-nos os céus.
Do Maabárata à Ilíada, alonga-se um imaginoso
devaneio: quando nasceram Crichna e Buda, alumiaram-se os horizontes em resplendores
de quedas de bólidos; propícios clarões lustrais banharam
o berço de Esculápio; e ao ruir, trabalhada das catapultas, a
derradeira cortina dos muramentos de Tróia, aflorara no espaço
a sétima estrela da constelação das Plêiadas...
Ora, para a vinda de Cristo aparelhara-se a antigüidade de esperanças
religiosas tão vastas, que o messianismo judaico se generalizara em aspiração
universal. Conchavavam-se, prognosticando-a, o histerismo das sibilas e o ilapso
dos profetas: os cálculos imperfeitos dos primeiros astrônomos
contemplativos, e os hexâmetros impecáveis dos poetas da Roma imperial.
A cultura clássica, na sua plenitude, acolhia um eco longínquo
das civilizações orientais, que terminavam. As rudes profecias
de Balaão, pressagas do reinado deslumbrante de um deus nas terras eleitas
de Israel, harmonizavam-se, de algum modo, às apóstrofes rítmicas
do Prometeu, de Ésquilo, ao vaticinar, nos palcos atenienses, ante o
assombro das platéias comovidas, a próxima abdicação
de Júpiter. O Livro de Daniel prolongava-se nas éclogas de Vergílio.
E o vate gracioso, num rapto genial da fantasia, batera parelhas ao vidente:
não lhe bastara o pressentir próximo renovamento dos séculos
esgotados, trocando-se os sinais dos tempos; senão que ao espetáculo
das sociedades novas, prefiguradas, ligou o império de uma criança
maravilhosa, que ao nascer "faria estremecer a natureza inteira, da imensidade
dos mares à imensidade dos céus." Foi além no descortino
inexplicável. Previu que a nova ordem moral, instintivamente adivinhada,
requeria outras linhas mais corretas, no próprio quadro da natureza física.
Transfigurou-se, sem o saber, em êmulo de Pitágoras e precursor
de Copérnico. De sorte que a primeira sacudidura na Terra, imaginada
imóvel e a centralizar as caprichosas esferas de cristal, onde se clausurava
o Universo, lhe desponta no vigor de um verso admirável: porque quando
nascesse o infante predestinado.
no seu eixo abalado o mundo oscilaria...
Assim avassalava as raças mais discordes ao anelo transcendental das
profecias.
Não maravilha que os três magos, filhos da Caldéia sonhadora,
arrancassem de seus lares remotos, norteando-se pela estrela surpreendente.
Iam-se em busca do Messias. Vindos de Sabá, ou da Babilônia, ou
da Pérsia, marcharam longos dias, até que atingiram os terrenos
adustos do Iémene. Calcaram-nos, sob os céus implacáveis
da paragem estranha.
Em torno os móveis areais, transverberando a luz, mal lhes disfarçavam
no chão revolto, que pisavam, a escanceladura dos abismos, abertos pelo
velho mar extinto, que por ali expandia outrora o Mediterrâneo, e hoje
mal se adivinha, evanescente e estancado, na depressão profunda do Asfaltite.
Romperam-nos, com o remorado andar das caravanas. Caminhavam na intermitência
angustiosíssima dos dias adurentes e das noites enregeladas. E foram-se
de deserto em deserto, de oásis em oásis, das sombras zimbradas
de lampejos das tamareiras altas, para os areais em fogo, onde agonizam os heliotrópios
tolhiços e as pistácias deprimidas: - até que as suas vistas
tontas das miragens distinguissem os primeiros rebordos dos pendores clivosos
ao norte do Sinai, estalados e ásperos, estereografando ainda a convulsão
vulcânica que lhes ergueu os cimos arremessados, de rocha viva, perpetuamente
desnudos, para que o sol neles renove sempre, no espadanar dos brilhos refletidos,
a memória longínqua das sarças ardentíssimas dos
profetas.
Transmontaram-nos, tornejando-lhes as encostas mal vestidas da flórula
bravia das acácias espinhosas; e seguiram, lentamente, até Jerusalém.
. . Não pararam. Deixando a "cidade compacta", entre as apreensões
de Herodes e as conjeturas dos sacerdotes suspicazes, reaviaram-se, rumo feito
ao norte. Dirigiram-se, sem o saberem, em demanda da menor das vilas de Judá.
Adiante, imóvel no horizonte resplandecente, atraía-os a estrela
radiosa; e ela foi conduzindo-os até Belém, onde os seus raios
tranqüilos se joeiraram na cobertura humilde de um estábulo.
Penetraram-no. Foi um encanto e um desafogo: os olhos encandeados no refulgir
dos plainos incendidos, repousaram, suavemente, na auréola ideal de uma
fronte loura de criança.
Despuseram-lhe, depois, aos pés, as preciosas dádivas que traziam.
Prostraram-se. Adoraram-na.
Então a estrela se apagou na altura...
Mas não se extinguiu para sempre. Por singular que se afigure, a ciência
entre todas senhora dos fenômenos que a constituem, durante longo tempo,
pela voz dos que melhor a versaram, planeou ajustar ao misticismo incomparável
de S. Mateus as suas fórmulas rigorosamente positivas. Não tolheu
os sábios fascinados a simples consideração do absurdo,
ou da impiedade, sem dúvida decorrente da só tentativa de subordinar-se
às leis naturais um caso que satisfazia, à saciedade, à
crença religiosa com a simples circunstância de derivar-se da Onipotência
Divina.
É que estes sóis intrusos, ou "estrelas hóspedes"
do firmamento, consoante o pinturesco dizer dos velhíssimos astrônomos
chineses, do Ma-tuan-lin, constituíram em todas as épocas
a novidade mais emocionante do universo. Menos comuns que os cometas, por adstritas
a um compasso mais vagaroso no ritmo das manifestações periódicas
das aparências cosmológicas, talvez por isso mesmo foram sempre
mais surpreendedoras. Observam-se de séculos em séculos. Em dois
mil anos, desde a primeira estrela variável que Hipareus registrou entre
e b do Escorpião, no ano de 143 antes de Cristo,
até quase aos nossos dias, mal se apontavam 22 aparições
verificadas; e em todas elas, quer os raios entrevistos se refletissem nas retinas
encantadas dos antigos crentes, quer nos astrolábios medievos, ou nos
telescópios modernos, deslumbraram por igual os fantasistas fervorosos
e os pensadores tranqüilos: e apagaram-se despertando um sem número
de hipóteses, todas até hoje inviáveis e vacilantes, desde
a de Newton explicando-lhes a revivescência dos brilhos como um efeito
da queda dos cometas, à de Maupertuis, das rotações regulares
e contínuas de Bouiland, ou Goodricke, à dos fluidos elétricos
de Arago, e inumeráveis outras, que constituiriam, por si sós,
uma biblioteca singularíssima de conjeturas e de erros.
Porque a Astronomia não deu um passo para esclarecê-las. Neste
lance está como em plena Média Idade. As suas fórmulas
e sistemas não valem o latim aterrado dos astrônomos de horóscopos,
tateantes nas miragens astrológicas. O ilustre Faye, por exemplo, não
no-las explica melhor do que Hepidanus, o extraordinário monge de Saint-Gal.,
núncio da estrela nova, de excepcional fulgor, que sobredourou durante
três meses o signo de Áries, no extremo meridional dos céus.
É como se passassem sobre as ciências seiscentos anos inúteis.
O raciocínio inflexível do cientista destes dias, apercebido de
melhores lentes e de melhores fórmulas, diz-nos ainda menos que o espanto
do asceta absorto ante o astro insolitae magnitudinis, aspectu fulgurans
et óculos verberans, fulgindo espantosamente, e apagando-se tão
de súbito que justificaria o pensamento ousado de Chladni, no conjeturar
as destruições violentíssimas dos mundos que se incendiam.
No entanto, apesar do incompleto dos antigos catálogos estelares, jamais
passou despercebida a mais diminuta delas acessível a observação
direta - desde a Omieron bruxuleante de David Fabricius, em 1596, à
monstruosa estrela, de constelação indecisa, que o Ma-tuan-lin
registrou em 1578, "tão grande quanto o próprio Sol!"
E umas e outras despertaram em toda parte os mais pertinazes estudos. Baldados
todos. As teorias prestes levantadas, prestes decaídas, sucedem-se, ou
revezam-se, insustentáveis na flutuação indefinida das
hipóteses.
Aponte-se um exemplo clássico. Em torno da Peregrina, descoberta em
1572 por Ticho Brahe, debateram-se todos os naturalistas dos fins do século
XVI; e acompanhando-se, quase justalinearmente, a narrativa do grande precursor
de Kepler e de Newton, põe-se de manifesto que o acontecimento era, na
verdade, de molde a impressionar os mais incuriosos espíritos.
O sucesso sobressalteou o sábio dinamarquês quando ele se dedicava
a outras cogitações. Seguia da Alemanha para a Dinamarca; e como
se hospedasse na Abadia de Harritzwald, e estivesse longe dos livros e instrumentos
prediletos, entregou-se algum tempo, por desfastio, aos seus sonhos de alquimista,
característicos da época. E atravessava os dias em um laboratório
atravancado de fogareiros e retortas. De sorte que somente ao cair das noites,
diante da janela aberta, lançava as vistas desarmadas para os céus,
longo tempo, numa contemplação que era o próprio rever
a sua carreira extraordinária balizada em cada um daqueles pontos luminosos.
Mas estas romarias virtuais, pelo meio das constelações, interrompeu-lhas,
certa vez, o caso inesperado. Foi num dos longos crepúsculos próprios
àquelas altas latitudes. Ticho Brahe divisou de repente, perto do zênite,
no grupo de Cassiopéia, uma estrela fulgurante, de anômala grandeza,
como ainda se não vira. O seu assombro foi indescritível. Acreditou
numa alucinação. Inquieto e alarmado, ante a surpresa que lhe
apontava no infinito, ao cabo de tão longa vida passada entre as estrelas,
deixou de arremesso o seu retiro tranqüilo: - e chamou, aos gritos, os
operários do laboratório, e interpelou os próprios camponeses,
que lhe passavam à porta, voltando das searas, para confirmarem o fato
inesperado...
A stela nuova era fixa, definida, e mais cintilante que todas as do
firmamento. O seu brilho ofuscava os de Sírius, de Vega, de Júpiter
e de Vênus ainda quando próxima da Terra. Distinguia-se em pleno
rebrilhar do Sol meridiano. Nas noites tormentosas os seus raios coavam das
nuvens, que se espessavam escondendo os céus.
Mas foi um resplendor passageiro.
A partir dos fins de 1572 diminuiu-se-lhe o fulgor. Ficou igual a Júpiter;
e continuou no decair contínuo, ao mesmo passo que a primitiva brancura
se alterava. Em março de 1573, reduzida a segunda grandeza, os raios,
que se lhe avermelharam, equiparavam-na a Marte. Em julho, estava em terceira
grandeza. Decaiu à quarta, em outubro. Em novembro, num súbito
obscurecimento, mal se incluía na décima primeira - uma taxa imperceptível
no espaldar do trono olímpico de Cassiopéia ; e logo depois
se extinguiu (ou pareceu extinguir-se, porque o telescópio ainda não
se inventara) depois de dezessete meses de existência misteriosa...
Tais pormenores, como observa Humboldt, delatam bem a influência que
o fenômeno exercia nos espíritos e a importância que se dava
aos problemas que ele sugere. Assim, o mesmo Ticho Brahe nele baseou-se para
agitar, num lance de gênio, que o faz invadir a glória futura de
Herschel, a teoria da formação das estrelas com a matéria
cósmica incompletamente adensada nas nebulosas.
Houve, porém, outro rumo às pesquisas astronômicas exercitadas
a propósito do efêmero mundo de três meses.
De feito, para a maioria dos cientistas do tempo, ele traduzia o ressurgimento
da estranha "estrela dos Magos", que brilhara havia dezesseis séculos.
Nunca o misticismo e racionalismo se entrelaçaram mais estreitamente
à luz de indagações tão positivas. O próprio
Cardan alinhou-se entre os mais convictos no restaurar-se a antiga página
do Evangelho, entressachando-a com as da ciência; e, ainda exagitado das
últimas controvérsias da Reforma, um rígido protestante,
Teodoro de Beza, sucessor de Calvino, esposou, liricamente, a causa maravilhosa,
versando-a nos cantos comovidos de um poema. Por fim Goodricke-o gênio
mais singular da humanidade, um surdo-mudo que morreu aos vinte e dois anos
deixando um traço imperecível nas ciências - procurou destacar,
para a evidência infrangível da Aritmética, o milagre. Era
o mistério a resolver-se em números. Partindo dos elementos fornecidos
por um astrônomo da Boêmia, Cipriano Loewitz, relativos a duas estrelas
que apareceram em 945 e 1260, na mesma zona do espaço, perto da Via Láctea,
onde se mostrara a Peregrina, de Ticho - ele encontrou-lhes, no intervalo
de 315 anos, a razão de uma série simplíssima; de modo
que por diferenças sucessivas, a começar de 1575, data em que
a estrela de Ticho Brahe devera ter-se extinguido de todo, se pudesse ir, recuando
no tempo, encontrar, matematicamente, no seu primeiro termo, o primeiro ano
do cristianismo. E traçou a progressão aritmética, evidentemente
certa:
1575: 1260: 945: 630: 315: 0
Infelizmente, infirmavam-lha vários termos dúbios, ou falsos.
Não só os astros de Loewitz eram contestáveis, como nenhuns
catálogos inseriam a estrela fugitiva, em 630 a 1260.
Mas este malogro não desenfluiu os sonhadores a caminharem tão
aforradamente pela astronomia em fora; porque desde 1604 lhes tomou a dianteira,
dirigindo-os com a mesma ansiosa e mística curiosidade, o mais ilustre
entre os maiores astrônomos, Kepler, que, ao mesmo passo que deduzia as
leis invioláveis da geometria planetária, reanimava o estranho
problema bíblico-científico. É que o impressionara, como
ao maior de seus antecessores, uma outra aparição luminosa, por
igual surpreendente. A sua estrela, que irradiara, de improviso, em 1604, no
Serpentário - com a ascensão reta de 259°42' e declinação
austral de 21°15' era, de fato, à parte a diferença de posições,
em muitos pontos idêntica à de Ticho Brahe. Suplantava, no brilho,
as demais, de primeira grandeza; refulgia num cintilar agitadíssimo,
que estonteava as vistas; e foi-se igualmente sumindo, com análogas fases
na variedade das cores. Em janeiro de 1605 o seu fulgor amortecido mal a igualava
a Antares. Em março, deperecia, equiparada às de terceira grandeza.
Um ano depois desfez-se completamente no espaço.
Ora, simultânea com o seu aparecimento, ocorrera a conjunção
de Júpiter e Saturno, a que se aditou logo após, em março
de 1604, a de Marte, determinando conhecido fenômeno periódico
dos céus, adscrito a intervalos regulares de vinte anos. Era, como se
vê, um ponto de referência novo, que surg;a entre as aparições
até então de todo em todo imprevistas. Aproveitou-o Kepler. Esteando-se
naquele período inviolável, procurou descobrir se se havia verificado
a situação excepcional dos três planetas, no ano do nascimento
de Cristo, em que se observara a radiosa condutora dos Magos. E os resultados
de um cálculo extremamente simples foram notáveis. Admitidas embora
todas as surpresas do acaso, realizara-se, pela primeira vez, uma previsão
científica no complicado e misterioso assunto. De fato, à luz
da profecia retrospectiva blindada de elementos tão firmes, o astrônomo
deduziu que a conjunção inicial de Júpiter e Saturno se
efetuara, realmente, no ano de 747, de Roma, na segunda metade do signo de Áries,
completando-se logo com a de Marte na primavera de 748. Então, diante
de datas tão eloqüentes, a ilação afigurou-se-Ihe
inflexível: a sua estrela, como a de Belém, associando-se a idênticas
manifestações planetárias regulares, periódicas,
sucedendo-se, infalivelmente, mercê das próprias leis geométricas
que ele desvendara - era a própria estrela que conduzira os Magos. .
.
Não discutamos o parecer do sábio incomparável, que jamais
realizou a mais rápida observação de uma altura sem dobrar-se,
genuflexo, ante a majestade emocionante do Infinito.
Releva, porém, observar que, ainda mesmo de todo libertas de quaisquer
intuitos religiosos - nos nossos dias asperamente utilitários - estas
estrelas variáveis e repentinas, cujo número sobremodo avultou
com o emprego de melhores objetivas, das placas fotográficas e da espectroscopia
- são ainda um verdadeiro mistério.
Estudando-as tem-se chegado, hoje, a resultados desalentadores. Não
é apenas a ingerência anárquica do sobrenatural, ou do divino,
que havemos de remover da frente, para vê-las bem, galhardeando a nossa
magnífica ignorância inflada de teoremas - senão que ao
mesmo tempo havemos de repelir o que até agora parecia intangível
e inabalável: as nossas fórmulas mais bem decoradas, os sistemas
mais rígidos, todos os raios vetores e elipses, e arremessadas parábolas
a nos desenharem os projetos da arquitetura maravilhosa dos mundos, riscando-se
além disto do mais suntuoso dos calendários os melhores santos
da nossa impiedade, ou do nosso ultramontanismo sem Deus.
O Evangelho fecha-se com a astronomia.
Demonstra-no-lo um derradeiro exemplo que nos excusamos de longamente explanar
trilhando os rastos de um cientista qualquer.
O mais bem estudado desses astros indecifráveis é b
de Perseu, a clássica Algol dos árabes, descoberta desde 1667
por Montanari. As suas variações de brilho, sucedendo-se em curtos
períodos de uma regularidade perfeita, tornam-na mais compreensível
que as demais, vistas de relance. Por isto mesmo, Goodricke apresentou desde
o século XVIII, acerca dos períodos de suas oscilações
seculares, uma hipótese, que está hoje unanimemente aceita sob
o beneplácito de recentíssimas observações espectroscópicas.
Consiste, de um modo geral, em admitir-se um binário de dois astros,
tão achegados que parecem unidos às nossas vistas, e descrevendo
ambos, em torno de um centro de gravidade comum, as suas órbitas elípticas,
de modo que cada revolução corresponda a dois eclipses, de um
e de outro, no mutuarem as suas inevitáveis ocultações
intermitentes. Ora, discutindo-se, sob diversos aspectos, está hipótese,
que é a única a não se retrair diante das objeções
que se lhe antepõem, e é a única a explicar, consoante
pareceres unânimes, a curiosa anomalia que surpreendeu por igual os magos
primitivos e os mais robustos pensadores - convêm os astrônomos
contemporâneos em que ela, por sua vez, acarreta outras hipóteses,
e entre estas uma que os perturba: a de sistemas cósmicos construídos
de uma maneira inteiramente diversa da do nosso sistema planetário. O
parecer é unânime; e nem carecemos demorar-nos pormenorizando-o.
Recentemente Zolner e Bruns, repugnando-lhes abandonar as trilhas tradicionais
da astronomia, ou por evitar a derrocada de teorias tão brilhantes, demasiaram-se
em argumentos armados a engenharem outras explicações. Baldaram-se-lhes
as tentativas. Ficou de pé um conceito único: o caso das estrelas
variáveis, até agora incompreensível, escapa inteiramente
aos métodos ordinários da mecânica celeste...
Ora, volvendo a b de Perseu, trata-se de uma estrela
que rebrilha com intervalos de excepcional regularidade. Além disto,
inclui-se entre as mais humildes do firmamento. Nada possui do maravilhoso encanto
da Peregrina de 1572. Ofuscá-la-ia o só aparecimento, a distancia,
da estrela de Kepler. Perde-se nas alturas. Os astrônomos do Observatório
de Yale, ao determinarem-lhe a paralaxe anual, com as suas lúcidas medidas
heliométricas, encontraram o ângulo apertadíssimo de 0"035;
e concluíram que se se transportasse o Sol a distancia deduzida daquele
elemento, ele se encolheria no espaço, menor que uma estrela de segunda
grandeza. Realmente, Algol, a estrela diminutíssima que não distinguimos
por demasiado perdida na poeirada cósmica, e que não atrairia
os magos, nem deslumbraria Kepler, nem sobressaltaria Ticho Brahe - representa,
conforme os cálculos severos de Chaze, um globo 52 vezes mais volumoso
que o nosso coruscante astro-rei, soberano na exigüidade de sua minúscula
província planetária...
Quase se admite, por esta simples circunstância, que esta última
se não possa erigir em modelo impecável capaz de se ajustar a
toda a arquitetura do universo.. . E não nos espanta que após
estudarem, sob incontáveis aspectos, os astros extraordinários,
e de assistirem aos despencar escandaloso de tantas explicações,
gizadas a esclarece-los com os nossos conhecimentos atuais, cheguem os cientistas
de agora à melancólica conclusão da falência inesperada
da astronomia, ante aquelas estrelas flagrantemente rebeldes a todas as analogias
oriundas do nosso sistema, e às fórmulas matemáticas mais
seguras. Seguimos de bom grado, neste lance, a arrebatada ousadia de um dos
mais belos espíritos da ciência contemporânea, H. Puisseux,
acreditando que "a própria estabilidade das órbitas planetárias
cessou de se erigir em lei universal"; e que as idéias consagradas
de Herschel, de Laplace e de Newton, assinalando como objetivo uniforme da portentosa
gestação das nebulosas o nascimento de globos sólidos,
que se encarrilham logo após em órbitas invariáveis, e
rolam, perpetuamente, na imensidade, sob o império das leis mais vastas
da mecânica - se acham quase tão distanciadas de nós quanto
a doutrina ontológica que imobilizava a Terra no centro invariável
do Universo.
***
Como quer que seja, as nossas vistas cosmogônicas dilatam-se; e já
não nos maravilha que a alma magnífica de Kepler passasse, com
o mesmo entusiasmo fervoroso, do rigorismo impecável das suas linhas
geométricas para os êxtases arrebatados dos crentes, consorciando,
como nenhuma outra, o espírito científico, que nos desvenda o
destino das coisas, ao espírito religioso, aviventado pela eterna e ansiosa
curiosidade de desvendarmos o nosso próprio destino. E pensamos - maravilhados
diante do crescer e do transfigurar-se da própria realidade, que, mesmo
na esfera aparentemente seca do mais estreito racionalismo, se nos faz mister
um ideal, ou uma crença, ou os brilhos norteadores de uma ilusão
alevantada, embora eles não se expliquem, nem se demonstrem com os recursos
da nossa consciência atual, como se não demonstram, nem se explicam,
malgrado os recursos da mais perfeita das ciências, os astros volúveis,
que pelejam por momentos e morrem indecifráveis, como resplandesceu e
se apagou a estrela radiosa, que norteou os Magos no deserto, e nenhum sábio
ainda fixou na altura.
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