O “PENTA” NA VISÃO DE UM EUCLIDIANISTA


Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda

Licenciada em Letras, Docente do ensino estadual, da FAE - São João da Boa Vista, e coordenadora do Ciclo de Estudos Euclidianos.


 

O brasileiro é, antes de tudo, um forte.

        Sobe o dólar, o mercado financeiro fica instável, e ele ali, firme, acreditando no país. No domingo, final de Copa do Mundo, anunciam mais um aumento da gasolina... Mas ele não vacila. Segue firme em seu desejo: “Traz o penta, Brasil!”

         Acordar cedo no único dia de descanso semanal, o que importa? Melhor: nem vai dormir, faz a festa que atravessa a noite e cruza o Brasil, esperando o momento da decisão tão importante para ele. E prepara o ritual: camisas, lenços, perucas verde-amarelas, bandeiras de todos os tamanhos, até o carro ganha as cores brasileiras. Reúne amigos, a cerveja gelada, batucada...

         E começa a batalha. E o brasileiro, tipo abstrato que se procura, está ali, em campo, pronto para a guerra, em casa, nos bares e nas praças, colado à tela que o transporta ao outro lado do mundo e ao encontro de sua identidade, na variedade de cores, estaturas e caracteres.

         Momento histórico: a poderosa e bem nutrida raça ariana, com sua aparente superioridade de raça pura, pronta para arrasar aqueles representantes do terceiro mundo. De um país que, nas últimas semanas, parecia resumido no “risco Brasil”. Que mereceu do Times um comentário de desprezo, país subdesenvolvido e sem perspectivas.

         A Alemanha assusta, rápida, racional, técnica e fria. Entretanto, os brasileiros que estão em campo conhecem o tamanho da esperança neles depositada, por um povo que já acredita em muito pouco. Aquele povo que ainda busca sua identidade, seu caráter como brasileiro, diverso daquele que povoa o imaginário europeu, para quem nosso país não serve, pois só o “puro” consegue ter lugar entre os maiores. Uma identidade que seja a expressão de uma história singular e coletiva, que leve em conta sua língua mestiça, seu físico resultante de cruzamentos interétnicos, Macunaíma, não sem caráter, e sim a soma de uma justaposição de etnias.

         Cada brasileiro, mesmo distante, sente que sua identidade nada tem a ver com a imagem de nossos políticos corruptos, ou com violentos marginais inseridos no tráfico de drogas e menos ainda com a figura de preguiça e indolência com a qual a sociedade capitalista teima em caracterizá-lo.

         Nesse momento, sabe que sua verdadeira identidade está representada ali, no gramado, e que sua construção se deu de forma sutil e elaborada. Incompreensível, portanto, para muitos que não conhecem o íntimo desse povo tão diferente. O resultado das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo desafia o esforço dos melhores espíritos.

         E ali se enfrentam, perante o mundo, mestiços e puros.

         Final do primeiro tempo, início do segundo... coração apertado, dúvida, insegurança. Seriam mesmo os alemães invencíveis? Porém a memória coletiva nos lembra que há cem anos um grande escritor dissera ser o brasileiro um povo predestinado à formação de uma raça histórica em um futuro remoto. Seria agora?

         Tensão, o gol não sai. E o “fenômeno” Ronaldo, perdendo uma bola após a outra...

         Entretanto, quando menos se espera, num instante, o homem transfigura-se. Empertiga-se, a cabeça firma-se-lhe alta e ele assume o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

         Recebe a bola, gira, e aí não há como contê-lo, então, no ímpeto. Arremessa e... o tão esperado gol desata, enfim, o nó da garganta do povo brasileiro. Alívio geral. É preciso, entretanto, lutar, pois um alemão também não foge à luta, e um empate sempre acaba sendo arriscado demais.

         Há o Ronaldinho, gaúcho, valente, inimitável numa carga guerreira, transmuda a bola em projétil e vara quadrados, levando de rojo o adversário no rompante das bolas arremessadas.

         Do outro lado, Cafu, colado à bola, confundindo-se com ela, arrojando-a na carreira, galopando o adversário, sempre, através de todos os obstáculos.

         E o grande Rivaldo, se não pode levar avante a empreitada, “pede campo” aos companheiros mais vizinhos, deixando a bola e a finalização para Ronaldo.

         Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas e lá se vão: não há mais como contê-los ou alcançá-los. Destroem, em minutos, a suposta superioridade de uma raça historicamente vitoriosa. Na luta. Na força. Na vontade de uma nação de alma aberta e coração puro, que só deseja um motivo verdadeiro para gritar, em êxtase, o orgulho de ser brasileiro.

         Vitória. A corrida olímpica. A irreverência de Cafu, subindo ao local da taça e fazendo uma declaração de amor à esposa, revelando nele um brasileiro comum. E nosso povo, feliz, sai às ruas, enche o país de música, de festa. Momentos únicos, em que o povo, naquela conhecida “corrente pra frente”, sabe que é ele mesmo. Encontra sua identidade, ali, na “família Scolari” – “a família Brasil”, que sempre foi e será uma diversidade e uma síntese. 1


1 . Todas citações em itálico são tiradas de CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1967.

 

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