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Euclides da Cunha, Lima Barreto e a literatura como
missão
RACHEL APARECIDA BUENO DA SILVA
Euclides da Cunha e Lima Barreto são co-protagonistas das
obras que escreveram, e apesar de viverem na mesma cidade, segundo
afirma Nicolau Sevcenko, esses intelectuais nunca se conheceram.
Euclides era 15 anos mais velho que Lima e militava na livraria
Garnier e Lima na Confeitaria Colombo.
No início do século XX, o Positivismo era a corrente
filosófica com fortes influências na literatura e na
ciência. A essência ética dessa doutrina surge
em ambas obras, e em seus projetos políticos e culturais,
somando a concepção estritamente utilitária
da palavra e das formas culturais, e a fé inabalável
num humanitarismo cosmopolita.
A cidade do Rio de Janeiro, então capital do país,
desde a campanha abolicionista até a década de 1920,
além de ser o centro das decisões políticas
e administrativas, exerceu importante papel cultural.
A mudança no regime político, de monárquico
para republicano, trouxe à capital, grandes transformações,
econômicas, sociais, políticas e culturais.
A cidade tornou-se o maior centro comercial e populacional do país,
com o mais amplo mercado nacional de consumo de mão-de-obra
e com a maior rede ferroviária nacional e seu porto tornou-se
o 15º do mundo em volume de comércio, colocando a capital
em contato com as produções e os comércios
europeus e americanos.
A febre de consumo tomou conta da cidade do Rio de Janeiro, que
ficou voltada para as novidades e para a “última moda”
e para isso era importante acompanhar o progresso e alinhar-se aos
padrões europeus.
Alinhar-se a esses padrões só seria possível
com as mudanças que ficaram conhecidas como Regeneração,
que envolveu três pontos fundamentais: a transformação
urbanística, a higienização, e mudanças
de comportamento.
As transformações urbanísticas do centro do
Rio de Janeiro envolveram desde a demolição dos antigos
casarões coloniais à construção de grandes
avenidas e praças, passando pelo alargamento das ruas próximas
ao porto com a finalidade de melhor alimentar o novo estilo de vida.
Esse período que ficou conhecido como a Belle Époque
trazia junto às transformações urbanísticas
urgentes ações para acabar com epidemias e endemias
que ocorriam na cidade como: tuberculose, febre amarela, febre tifóide,
escarlatina e outras que afastava os estrangeiros e seus investimentos.
As mudanças de comportamento também eram imprescindíveis
para a concretização da Regeneração
e estavam compreendidas a condenação de antigos hábitos
como a prática de serenatas, boemias e o uso do violão,
assim como as festas populares e religiosas: Bumba-meu-boi, festa
da Glória, malhação de Judas.
A área central do Rio de Janeiro ganhava nova vida e os grupos
populares que até então ali habitavam foram expulsos
provocando grande crise de habitação e o surgimento
de favelas nos morros.
A burguesia da época passa a expandir sua sociabilidade pelas
praças, avenidas e jardins, com esses novos costumes surgiram
o footing, os corsos, a exposição canina, o five o´clock
tea entre outros, não era de se admirar que a população
pobre não tivesse lugar nesse novo cenário.
Na tentativa de impedir retrocessos, foram criados movimentos como
a Liga Contra o Feio e a Liga de Defesa Estética, assim como
leis que obrigavam o uso de sapatos e paletós e cada vez
mais as relações sociais eram mediadas por padrões
econômicos e mercantis.
A situação das camadas mais pobres da população
agravava-se com o aumento de colonos europeus que chegavam ao país
e que mobilizavam-se ao Rio de Janeiro dada a crise da economia
cafeeira, provocando um aumento populacional de 33% em 10 anos.
Essas crises econômicas e as transformações
urbanas expuseram a população de baixa renda ao caos
registrando considerável aumento das desordens e inseguranças,
delinqüências infantil e juvenil, suicídios e
o crescimento vertiginoso no número de internações
no Hospício Nacional em 1.113%.
O povo cerceado de suas manifestações culturais, expulso
de certas áreas da cidade, degredados social e moralmente,
quando explodia em motins espontâneos era impossível
contê-los, foi o que aconteceu com a “Revolta dos Selos”,
“O Quebra-lampiões” e a “Revolta da Vacina”,
esta última traduzindo o sentimento do povo contra a ditadura
e imposição, da ciência da época e da
classe dominante que transformava inúmeras vezes seres humanos
em verdadeiras cobaias.
Junto a esse agitado cenário da Belle Époque os intelectuais
brasileiros também marcaram com sua atuação.
Eram homens que condenavam a sociedade fossilizada do Império,
pregavam as grandes reformas redentoras como: Abolição,
República, democracia, tendo a cultura européia como
referência, isso exemplificado nas próprias palavras
de Euclides da Cunha: “ Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos ou desaparecemos”.
Para esse grupo o engajamento era condição ética
para o homem de letras e apenas havia validade na criação
e reprodução cultural que se instrumentalizasse como
fator de mudança social.
Havia um medo constante entre os intelectuais do período
de que o Brasil fosse invadido por potencias expansionistas. Muitos
desses escritores, como Euclides da Cunha, defendiam a necessidade
de melhor conhecer o Brasil, colonizar o interior e construir uma
rede interna de comunicação viária , uma maior
integração nacional.
Os sonhos de Abolição e República concretizaram-se
através de um processo caótico, marcando as consciências
dos intelectuais que as aspiravam, sendo que a última tomou
rumos inesperados, provocando um sentimento de desilusão
e fracasso, traduzido nas palavras de Lopes Trovão : “
Essa não é a República dos meus sonhos”.
Em seguida ocorre o afastamento entre os intelectuais e grupos adventícios
da República, que os despreza e são também
perseguidos pelo Marechal Floriano Peixoto.
O grupo de literatos enfrenta a dura realidade de uma literatura
de poucos para poucos, numa sociedade onde apenas 17% da população
é alfabetizada e sofre com a concorrência do livro
didático, da revista, manuais científicos e as novas
formas tecnológicas de lazer como: o cinematógrafo,
a fotografia e o gramofone.
Na tentativa de consolidar a imagem austera de uma sociedade ilustre
e elevada, merecedora de atenção e crédito
europeus, o Barão do Rio Branco procura utilizar os intelectuais
na administração, mas surge entre o grupo duas camadas
representativas: os vencedores, que compactuavam com a política
e seus representantes e os derrotados, que faziam oposição
aos primeiros. Dentre os derrotados havia outros dois subgrupos,
os que acatavam com resignação a sua situação
e os inconformados, conhecidos também como “escritores-cidadãos”,
empenhados em usar suas obras como instrumento de ação
pública e de mudança histórica.
É dentro desse subgrupo que serão encontrados Euclides
da Cunha e Lima Barreto. Ambos de formação positivista,
tinham a questão social em primeiro plano em suas obras,
apresentavam-se contra os usos, costumes e idéias vigentes
na Europa. Para eles só o alto grau de organização
e desenvolvimento cultural poderia garantir a sobrevivência
do país e a dignidade nacional. Apesar disso possuiam posições
antagônicas com relação a ciência, raça,
civilização e atuação do Barão
do Rio Branco.
Euclides deslumbrava-se com a ciência, exultava com o ”esplendor
da civilização vitoriosa”, via no imigrante
“o guia para o futuro”, era mais preso ao cientificismo
intransigente trazido pelo Positivismo, manteve-se na vanguarda
ativa das idéias republicanas e mantinha boas relações
com o Barão do Rio Branco.
Lima Barreto relacionava a ciência com o modo de vida dos
europeus da Belle Époque, o imperialismo e a teoria das raças
que justificavam o vandalismo nas regiões “bárbaras”
do globo, via nos imigrantes a razão do desemprego e desprezo
para com os nacionais, apresentava maior flexibilidade e sensibilidade
no trato dos registros que fez da cultura popular. Para ele a República
era a fonte de todos os infortúnios que acometeram a nação
e o Barão do Rio Branco responsável pelo espírito
da Regeneração e preconceitos contra os mulatos.
Tanto Euclides como Lima denunciavam a frivolidade que acompanhava
a euforia da Regeneração e a degeneração
cultural que invadiu a República, eram contra a “mania
de fachadas”, o smartismo, jacobinismo, florianismo, hermismo
e a intervenção dos militares na política e
a qualquer tipo de violência no interior da sociedade. Suas
obras sempre foram carregadas de conteúdo histórico
e postura crítica.
Euclides da Cunha abdicou de toda
ficção que enchesse a imaginação de
enredos literários tradicionais. Trabalha em seus textos
temas como: movimentos históricos, transformações
e relações sociais, transformações econômicas
e políticas; ideais sociais, políticos e econômicos,
discussões: filosóficas, científicas, cristã
social, moral e cultural, análises geológicas, descrições
geográficas e comentários historiográficos.
Entre suas obras figuram: Os Sertões, Contrastes e Confrontos,
A Margem da História, Peru Versus Bolívia, onde o
autor critica o trato irracional da terra e do próprio homem,
denunciando a indiferença pelos assuntos públicos
por homens que tinham interesse apenas pelos cargos e comissões
altamente remunerados.
Lima Barreto vai abordar em seus livros temas como: relações
sociais e raciais; transformações: políticas,
sociais, culturais, econômicas; ideais: sociais, políticos,
econômicos; crítica: social, moral e cultural; discussões
filosóficas e científicas; referências ao presente
imediato e futuro próximo; cotidiano urbano e suburbano;
política nacional e internacional; burocracia, dados biográficos,
realidade do sertão; descrições geológicas
e geográficas e análises históricas.
Critica a corrupção política e econômica
do regime, assim como a atuação escusa da imprensa
e combate a ciência. Esses temas podem ser encontrados em
obras como: Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, Gonzaga de Sá, Clara dos Anjos, Triste Fim de Policarpo
Quaresma, Os Bruzundangas, entre outras.
Os dois autores procuraram definir público diverso. Para
Lima Barreto seu público alvo era formado e educado basicamente
pelo jornalismo, então difundido nesta época. O estímulo
deve visar o homem médio, o homem das leituras de massa para
que seja instigado a participar das decisões no campo político
e administrativo, sua linguagem é despojada e assimilada
pela mais completa mistura de estilos.
Euclides da Cunha possui uma linguagem extremamente apurada e versada
num estilo elevado, voltada para leitores capazes de decifrar e
admirar seus códigos, permanecendo fiel à sua antiga
tradição literária.
As diferenças do processo de inserção social
dos autores aparece refletido na obra nas seguintes dicotomias:
índio/ negro, interior/ litoral, terra/ mar, SP/ RJ –
Bahia, imigrantes/ nativos, Pacífico/ Atlântico, futuro/
passado, evolução/ tradição, grande/
pequena propriedade, racionalidade/ irracionalidade.
Suas obras estão sempre impregnadas de conflitos ligados
às condições sociais da época, constituindo
o eixo semântico de seus escritores. Apelam para a retomada
das relações humanas baseadas na autenticidade e solidariedade,
num ambiente impregnado por formas ferozes de concorrência.
Os dois autores depositavam expectativas nos processos de mudança
intermediados pela elevação material ou moral da espécie
e através de suas obras registraram acontecimentos e reflexões
que permite-nos dizer que ao lermos a literatura estamos lendo a
própria história.
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BIBLIOGRAFIA
CHALHOUB, Sidney. Classes perigosas in Trabalhadores -
Publicação da Associação Cultural do
Arquivo Edgard Luenroth,
Campinas: 1990.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom, BERTOLLI FILHO, Cláudio.
A
Revolta da Vacina. São Paulo: Ática,1996.
OLIVERI, Antonio Carlos.Canudos. São Paulo: Ática,
1997.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões
Sociais e
Criação na Primeira República. São Paulo:
Brasiliense,1989.
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RACHEL APARECIDA BUENO DA SILVA
Profa. de Português da Rede Pública Municipal de Campinas
Mestranda em História da Educação pela Unicamp.
Julho/ 2002
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