Os astros da degola

Um banho de sangue coroou a campanha
em que o Brasil defrontou o Brasil


Foto: Flavio de Barros

Foto: Orlando Brito
Acima, o corpo do Conselheiro, depois de desenterrado. Ao lado, o Conselheiro, o marechal Bittencourt e a 'Matadeira' convivem em paz na
praça de Monte Santo

No dia 18 de julho de 1897, o jornal O País, do Rio de Janeiro um dos principais da então capital federal, dirigido pelo eminente Quintino Bocaiúva , publicou um artigo em que se lia, sob o título "O monstro de Canudos":

"O monstro, ao longe, nas profundezas do sertão misterioso, escancara as guelras insaciáveis, pedindo mais gente, mais pasto de corações republicanos, um farnel mais opulento de heróis..."

A frase é longa, façamos uma pausa. Canudos é, entre outras coisas, um fenômeno de imprensa. Os principais jornais do Rio, de São Paulo e de Salvador enviaram correspondentes à guerra, especialmente depois do trauma da derrota da expedição Moreira César. Pela primeira vez, fazia-se no Brasil a cobertura maciça, diária e direta de um determinado evento. Euclides da Cunha foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, e isso possibilitou-lhe o início da coleta do material para o livro que publicaria cinco anos depois. Outros jornalistas de primeira linha foram enviados à frente. O telégrafo, conquista recente no país, estendido até Monte Santo para as necessidades da ocasião, fornecia o suporte técnico ao empreendimento. Continuemos a frase:

"...e a fera ir-se-á abastecendo e devorando até que num assomo de raiva, ao sentir a falta de ucharia, desse abastecimento de corpos, desgrenhe a juba e com um arranque de sua pata monstruosa queira esmagar a pátria, em crepe pela morte dos seus filhos mais amados, pelo massacre do seu exército glorioso!"

Casa atual de sertanejo:
queimam, afogam,
e Canudos
ressurge
Foto: Orlando Brito  

Trata-se de um animal fantástico, como observa a professora Walnice Galvão, autora de No Calor da Hora, livro que reúne as coberturas de imprensa da guerra. Tem guelras de peixe e juba de leão. Custa crer que se levasse a sério que o arraial miserável do Conselheiro, situado um pouco para lá do fim do mundo, representasse tal ameaça à pátria. E, no entanto, pelo que se lia nas páginas arrebatadas dos jornais, frementes de patriotismo, levava-se sim.

Uma grande mobilização nacional seguiu-se à derrocada da terceira expedição. A quarta haveria de ser muito maior e mais equipada, e de não ter piedade dos lesas-pátrias do sertão, incapazes de compreender as excelências do regime republicano. Para comandá-la foi escolhido o general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Ao aceitar a missão, Artur Oscar declarava: "Todas as grandes idéias têm os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada". Euclides da Cunha, que nos seus despachos de repórter seguira a sanha patrioteira em voga, mas que no seu livro "vingador", como dizia, adotou uma postura crítica, escreve, em Os Sertões: "A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia".

Mais de 5 000 homens foram mobilizados para a nova ofensiva. Reuniram-se batalhões do Rio Grande do Sul ao Amazonas, e as forças dessa vez foram divididas em duas colunas. A primeira, como as duas anteriores, se concentraria em Monte Santo. A segunda esta era a grande novidade partiria de Aracaju para Canudos, comandada pelo general Cláudio Savaget. Todos os recursos do Exército foram mobilizados. A primeira coluna, com a qual viajava o general Artur Oscar, contava com uma arma assombrosa: um canhão Withworth de 32 milímetros, que seria apelidado de "Matadeira" pelos sertanejos. Tratava-se de um trambolho de 1 700 quilos, que precisava de vinte juntas de boi para ser arrastado. A Withworth entupia os caminhos e retardava a marcha, mas, como escreveu Euclides, "era preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço".

Casa do arraial: Euclides horrorizou-se com a "urbs monstruosa"
Foto: Flavio de Barros  

Hoje, a "Matadeira" repousa pacificamente nos jardins da praça de Monte Santo. Ou melhor: o que resta dela, pois o canhão espantoso terminaria por sofrer quase tantos estragos, pela imperícia com que era manejado, quantos causou, ao longo da campanha. No jardim de Monte Santo, tem como vizinhos uma escultura em madeira do Conselheiro e um busto em bronze do ministro da Guerra à época do conflito, marechal Carlos Machado Bittencourt. Sob o busto do marechal, uma inscrição datada de 22 de março de 1973 época do regime militar informa que Bittencourt "esteve neste local, berço da Intendência, prevendo e provendo".

Sim, foi necessária a presença do próprio ministro, para prever e prover. Pois a força avassaladora reunida para vencer os sertanejos, mais de 5 000 homens, duas colunas, Matadeira e tudo, acabou, uma vez em Canudos, atrapalhada e impotente como as expedições anteriores. A primeira coluna, apanhada numa armadilha no Morro da Favela, foi salva por pouco, ao conseguir a junção com a segunda. Depois de um mês de combate, a tropa parecia, segundo Euclides, "uma aglomeração de fugitivos". Dos 5 000 soldados, 900 estavam fora de combate mortos ou feridos. A fome grassava. Por conta própria, e ao risco de cair nas numerosas armadilhas dos sertanejos como de fato muitos caíram , os soldados organizavam grupos para caçar bodes ou o que houvesse para comer. E, para culminar, do arraial lá embaixo produzia-se aquele sortilégio que dava mais medo ainda:

"Ao cair da noite de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados em ondulações sonoras, que vagarosamente se alargavam pela quietude dos ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas montanhas longínquas, o toque da Ave Maria..."

A situação crítica resultou em nova promoção à guerra do sertão. A primeira expedição havia sido comandada por um tenente, a segunda por um major, a terceira por um coronel e a quarta começara com um general. Agora era a vez de um marechal, e Bittencourt desembarcou em Monte Santo ao mesmo tempo que para lá afluíam reforços que montaram a 3 000 homens suplementares. Não era no aumento das tropas, porém, nem nos grandes movimentos estratégicos, que ele fixaria sua atenção. O ministro da Guerra decidiu que sua função seria comprar burros mansos e organizar comboios, para levar comida aos combatentes. E foi então que se deu a virada. Regularizado o abastecimento da tropa, graças ao desvelo do marechal, que chegava a cuidar pessoalmente da partida dos burros com suas cargas, o relógio na mão, para apressá-los, o Exército começou a ganhar a guerra. "Mil burros mansos valiam na emergência por dez mil heróis", escreveu Euclides. Contra a pata infame do monstro descrito no artigo de O País, mobilizava-se a pata vulgar do muar de carga.

E veio o cerco, o bombardeio impiedoso, o massacre, o incêndio do arraial. Tornaram-se célebres as degolas praticadas em Canudos as "gravatas vermelhas" aplicadas no pescoço dos conselheiristas. Os soldados exigiam que os prisioneiros gritassem "Viva a República", mas muitos gritavam "Viva o Conselheiro". Sabiam que iam morrer, com um grito ou outro. "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada", escreve Euclides. Mesmo porque quem praticava as atrocidades tinha a certeza da impunidade não havia a temer nem o castigo dos chefes nem o juízo do futuro. "A História não iria até ali", escreve Euclides, num dos trechos mais inspirados de seu livro. "O sertão é o homizio." E ainda: "Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava".

Um estudante de medicina de Salvador que esteve na guerra com o corpo médico, Alvim Martins Horcades, descreveu num livro publicado antes de Os Sertões (Descrição de uma Viagem a Canudos), e com uma crueza a que Euclides não chegaria, a degola dos prisioneiros. "Belo exemplo de civismo e progredimento social!", escreve Horcades, com indignação. "Levar-se homens de braços atados para trás, como criminosos de lesa-majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora a de uma ave, e cortar-lhes com o assassino ferro o pescoço, deixando cair a cabeça sobre o solo é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio, como se fora uma ação nobilitante!"

Escreve ainda:

"Acontecia certas ocasiões estarem muitos daqueles miseráveis dormindo e serem acordados para se lhes dar a morte. Depois de feita a chamada, organizava-se aquele batalhão de mártires, de braços atados, arrochados um ao outro, tendo cada qual dois guardas e seguiam... seguiam para ainda uma vez provar cabalmente a sua coragem intimorata. Caminhavam um pequeno pedaço de terra e lá ia sendo assassinado um após outro. Eram encarregados desse serviço dois cabos e um soldado, a mando do sanguinário alferes Maranhão, os quais, peritos na arte, já traziam os seus sabres convenientemente amolados, de maneira que, ao tocarem a carótida, o sangue começava a extravasar-se, sendo então decepada toda aquela região, de modo a produzir um jorro de sangue, tendo pouco mais ou menos 25 centímetros de espessura, em circunferência".

Horcades conta que a princípio as execuções eram feitas à noite, mas depois se tornaram "cousa naturalíssima", e "eram eles supliciados mesmo ao clarão dourado dos raios solares, e as turmas duplicaram, triplicaram e quadruplicaram".

Em 6 de outubro de 1897, dia seguinte à tomada de Canudos, descobriu-se o local onde tinha sido enterrado Antônio Conselheiro. Foi desenterrado. Fotografaram o cadáver. Então, com uma faca afiada, mais uma vez praticaram aquele ato tão repetido deceparam-no. A cabeça foi levada a Salvador, para ser examinada pelo professor Nina Rodrigues, que acreditava, com seu mestre Lombroso, que os loucos, os criminosos e os perturbados de toda espécie apresentavam traços de seus desvios medonhos já a partir da conformação do crânio.

Sessenta anos depois, o sertão era visitado pelo cachorrinho Samba. O cachorrinho Samba é um personagem da escritora de livros infantis Maria José Dupré. Em O Cachorrinho Samba na Bahia, um dos volumes da série, publicado em 1957, o cachorrinho paulista visita Canudos. Ele aprende então que os sertanejos, "sendo pessoas atrasadas, mal sabendo ler ou sem instrução alguma, acreditavam em tudo que dizia o Conselheiro". Muitos dos habitantes de Canudos não trabalhavam "viviam tocando viola de papo pro ar". Quando faltavam alimentos, "saíam aí pelo sertão, roubavam bois, mantimentos, tudo o que podiam". E depois chegavam a Canudos "com cara de inocentes e iam rezar na igreja". A visão da senhora. Dupré, autora também do conhecido Éramos Seis, é da Guerra de Canudos como "um ato de delinqüência", como nota Clímaco Dias, pesquisador da Universidade Estadual da Bahia que, num artigo, foi desencavar a reveladora peça.

Por mais que se a queime ou afogue, Canudos sempre ressurge, porque há Canudos para todos os gostos. Para Maria José Dupré, "o Conselheiro era ignorante, não sabia nem interpretar a religião, fazia tudo à moda dele". Para os padres da Teologia da Libertação, um dos quais, o padre Enoque, de Monte Santo hoje ex-padre , costumava agitar a região, até há poucos anos, organizando os camponeses sob a égide de Antônio Conselheiro, este seria um revolucionário, um Che Guevara do Morro da Favela assim como o outro era de Sierra Maestra. Ou, então, seria um apóstolo dos sem-terra, e Canudos um antecessor do Pontal do Paranapanema. Para outros ainda, se trataria de um fenômeno puramente religioso messianismo, milenarismo, ou qualquer outro nome erudito que se lhe dê. A controvérsia se desdobra na maneira de encarar a comunidade do Conselheiro. Para alguns, seria uma sociedade erigida em bases comunistas e igualitárias. Outros notam a existência, em Canudos, de comerciantes, como Antônio Vilanova e Joaquim Macambira, que não só detinham poder econômico como status privilegiado junto ao Conselheiro. Canudos é um caso sério, porque mexe ao mesmo tempo com dois valores humanos dos mais perturbadores, a fé e a utopia.

Canudos ressurge a todo momento também no sentido de que representa, em sua versão mais sangrenta, o estranhamento dos brasileiros urbanos e privilegiados com relação aos compatriotas pobres. Euclides, em seu livro tão belo quanto contraditório, em que tanto desqualifica, com invectivas racistas, as práticas dos brasileiros despossuídos, quanto lhes estende o socorro da denúncia e da compaixão, horroriza-se com a arquitetura e o urbanismo do arraial, que chama de "urbs monstruosa" e "civitas sinistra do erro". Ora, nota o sociólogo Duglas Teixeira Monteiro, o padrão de construção das casas que tanto escandalizou Euclides é "nada mais, nada menos" que "a habitação comum do sertanejo pobre". A estranheza entre brasileiros, no extremo, conduz a massacres como o de Vigário Geral, do Carandiru ou da Candelária, assim como a batidas policiais como as de Diadema e Cidade de Deus. Vige ainda a suposição de que nesses lugares não se peca. Para usar a linda fórmula de Euclides, neles a História não chega. Canudos, nesse sentido, é aqui, agora.

Há uma passagem em Os Sertões em que uma criança do arraial cai prisioneira dos soldados. O menino fumava, "com a bonomia satisfeita de velho viciado", enquanto discorria, com perfeito conhecimento de causa, sobre as armas que, guerreiro precoce, manejava. "Aquela criança era, certo, um aleijão estupendo", escreve Euclides. Um "bandido feito" despontava "sobre os ombros pequeninos". E Euclides prossegue:

"Decididamente, era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro se não se aproveitassem os caminhos abertos pela artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários".

Hoje não se falaria em propaganda como remédio, e "os rudes compatriotas retardatários" seriam chamados de outra coisa "excluídos", é a moda , mas a questão da existência de um mar de brasileiros deserdados da sorte persiste.

O professor Nina Rodrigues não encontrou no crânio do Conselheiro traço de insânia. Ou sua ciência o traía, ou aquele irredento Maciel, não contente, oferecia aos brasileiros cultos e racionais mais uma de suas tantas surpresas. O crânio ficou guardado na Faculdade de Medicina da Bahia até que, em 1905, o prédio foi tomado por um incêndio. Perdeu-se então aquele pedaço do Conselheiro, junto com outras peças da coleção de Nina Rodrigues, como o crânio de um famoso bandido, o Lucas da Feira.

O caso do Conselheiro é apenas um entre muitos, na História do Brasil, em que se adota a prática de cortar cabeças. Zumbi dos Palmares teve a cabeça cortada, depois de morto, assim como Tiradentes e o líder da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, Gumercindo Saraiva. Idem o cangaceiro Lampião, idem os crentes da comunidade do Caldeirão, um fenômeno parecido com o de Canudos, ocorrido no Ceará nos anos 30 deste século. De certa forma, a galeria dos vencedores da História do Brasil confunde-se com uma galeria de astros da degola.

 

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