REVISÃO DE EUCLIDES DA CUNHA


NELSON WERNECK SODRÉ

Revista do Livro, RJ, [...]


EUCLIDES DA CUNHA desapareceu há meio século. Nesse intervalo de tempo, todas as atenções ficaram absorvidas na tragédia de sua vida, culminando com o lance dramático em que findou. Fora o personagem central, os demais continuaram a viver, e até continuaram a tragédia, acrescentando-lhe outros episódios. No mais grave, tombaria o filho do escritor, vitima do assassino de seu pai. Em torno do escandaloso ou do escondido de um destino tão perturbado pela fatalidade cresceu a curiosidade geral, mal satisfeita com os documentos que a justiça criminal ofereceu e com os testemunhos que, largamente intervalados, chegaram ao conhecimento do público, a respeito dos lances iniciados com o desastre de uma existência tumultuosa. Em tudo isso, a obra ficou obscurecida. Sucederam-se, e nisso se evidenciava a importância fundamental dela; as edições de seu livro de estréia, famoso desde o lançamento, e aquelas de seus ensaios, repetidas no estrangeiro, até que, há vinte anos, um editor audacioso conseguiu a publicação do seu diário de Canudos, e a reedição do livro em que reunira artigos sobre a questão entre o Peru e a Bolívia. As edições sucessivas de Os sertões, entretanto, com as alterações apontadas pelo próprio autor, e introduzidas a partir da quinta, apenas repetiram o texto inaugural, sem uma nota crítica, sem uma introdução esclarecedora. Os ensaios foram, no Porto, também reproduzidos com pequenas variantes, que se imobilizaram depois, em textos carregados de erros, verdadeiro atentado a um patrimônio que merecia melhor sorte. As reações de admiração - as mais cálidas que já despertou um escritor nacional - ilharam-se na tendência reabilitadora que não tinha nenhuma razão de ser, vinculando-se, assim, mais ao homem do que à obra. Quanto a esta, ficava na repetição apologética de suas virtudes e de sua importância. O drama do indivíduo dominava o drama da obra, que atravessava os tempos. Meio século depois da morte do lidador, é tempo de examiná-la.


A CIRCUNSTÂNCIA BIOGRÁFICA


ORIGENS DA FAMÍLIA


Manuel da Cunha, avô de Euclides, era português e comerciante, estabelecido na Província da Bahia nos começos do século XIX. A sua atividade principal era a do tráfico de escravos. Ali se casou com Teresa Maria de Jesus, de família sertaneja. O pai de Euclides, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, teve um destino diverso. Abandonou a Província da Bahia pela do Rio de Janeiro, tão logo lhe foi possível lutar sozinho pela existência. Exerceu a profissão de guarda-livros, percorrendo as fazendas fluminenses. Era por volta da metade do século, quando o Vale do Paraíba constituía o teatro de expansão das lavouras de café. Aí conheceu e consorciou-se com Eudóxia Moreira, filha de um pequeno proprietário de terras. Desse consórcio, em 20 de janeiro de 1866, nasceu Euclides da Cunha, na Fazenda da Saudade, Município de Cantagalo. Três anos depois ficaria órfão de mãe e passaria, antes de percorrer os colégios, aos cuidados das tias, ora num lugar, ora noutro. Estas circunstâncias, que estão detalhadas em suas biografias, permitiram que se levantassem teorias interessantes a respeito de sua personalidade. Tais teorias, que são ainda coerentes, e repetem-se nos estudos dedicados a Euclides, ora concedem importância determinante à condição sertaneja da avó, ora ao problema da orfandade, ora à ausência de lar próprio. Devem ter tido, naturalmente, em parte ou no todo, influência no temperamento de Euclides, na sua timidez, na sua agressividade, na sua misantropia. Convém, entretanto, deixando o unilateralismo destas, examinar outras circunstâncias, possivelmente mais poderosas, uma vez que, independente do temperamento, marcaram a sua posição diante do meio, a sua participação nos acontecimentos, e até a sua maneira de testemunhar sobre eles, como escritor.


O MEIO SOCIAL


Do exame dos antecedentes de família o que se destaca desde logo é a curva descendente que ela segue do avô ao neto. Manuel da Cunha, o avô, era traficante de escravos, homem de posses. Em sua época o centro de gravidade da economia brasileira estava no Nordeste açucareiro, cuja produção tinha como base o binômio terra-escravo. Traficar com escravos era atividade licita, e enriquecia. O Brasil se preparava para a Independência e a classe que empresaria a Independência era a de senhores de terras e de escravos. Ela não tinha, entretanto, condições para realizar a sua empresa, operando isolada. Consegue, para isso, o apoio da camada social que se dedicava ao comércio, inclusive o comércio humano. Mas precisava ainda de outros apoios, e apoios externos para atingir os seus fins - fins que só começa a distinguir com precisão quando as Cortes portuguesas pretendem fazer o Brasil retroceder à posição colonial, com todas as conseqüências econômicas que isto importava.

O apoio externo surge com a Revolução Industrial, de que a Inglaterra era vanguardeira. A extraordinária expansão das trocas que a indústria proporciona, quando o capitalismo dá acabamento à sua gestação, era incompatível com as áreas geográficas fechadas, mantidas em clausura, sob regime de monopólio comercial. Tais áreas deviam integrar-se no mercado mundial, rasgando-se as cortinas que as vedavam. O processo de autonomia dos povos americanos foi, por isso, um processo de conjunto. Quando Napoleão invadiu a Península, as duas metrópoles entraram em crise: ruiu a de Madri, deixando sem comando as suas áreas americanas subordinadas; transferiu-se a de Lisboa, vindo abrir os portos coloniais ao comércio. A expansão impulsionada pela Revolução Industrial continha uma segunda exigência, além do rompimento do regime de monopólio: a de extinção do tráfico e do trabalho escravo. Esta exigência, porém, não podia ser atendida pela classe dominante na área colonial, interessada no comércio livre, mas não no trabalho livre. A pressão externa encontra, nesse terreno, resistência interna, depois da autonomia. Os senhores de terras tinham condições para resistir, embora o tráfico entrasse em crise, uma vez que dispunham de grandes estoques e contavam com o crescimento vegetativo da massa escravizada. Poderiam não triunfar, mas podiam retardar a suspensão do trabalho servil. Retardaram-na da Independência à República, praticamente. Isto explica a possibilidade da união entre os senhores rurais e a burguesia européia. A camada que se dedicava ao comércio de escravos, entretanto não dispunha da mesma capacidade para durar na resistência, e o investimento no tráfico torna-se progressivamente mais arriscado. Dele se afastam, a partir daí, capitais importantes. Não é de surpreender, pois que o filho de um traficante de africanos acabe guarda-livros em outra Província e, pela atividade e pelo casamento, desça de sua condição de classe, ingressando na camada média da população.

Já quando o pai de Euclides da Cunha abandonou a Província natal pela do Rio de Janeiro, o Brasil era muito diferente daquele em que vivera o avô. A arrancada do café, do Município Neutro do Vale do Paraíba e seu percurso nesse vale constituía um fenômeno novo e importante. O tráfico negreiro recebera um rude e decisivo golpe com o bill Aberdeen e com a lei Eusébio de Queirós. Os cafezais fluminenses prosseguiam sua marcha na base do trabalho servil, herdando os grandes estoques africanos que a mineração deixara em disponibilidade. A produção que se avolumava, destinando-se aos mercados externos, proporcionara ao regime monárquico a força capaz de assegurar a supremacia sobre a extensão e diversidade territorial brasileira, operando o movimento centralizador que sucedeu aos ímpetos de rebeldia regional. Transferira a esta zona o centro de gravidade da economia do Pais. Mais do que isso: fornecera os primeiros e crescentes saldos da balança comercial externa. Fornecendo-os, propiciara as transformações que o Brasil assistirá na segunda metade do século XIX, particularmente traduzidas na introdução de novas técnicas, entre as quais se destacava a do transporte ferroviário.2 A pressão contra o tráfico, por outro lado, trouxera como conseqüência, o deslocamento dos capitais nele investidos para outras atividades. Entre elas, as atividades industriais.

Na segunda metade do século, realmente, o Brasil vai apresentar, pela primeira vez em sua História, a indústria como um setor de produção apreciável. Setor que se valerá, naturalmente, das sobras do campo, em mão-de-obra, e de elementos fornecidos pela imigração, que dá os primeiros passos. Que não tem ainda importância no conjunto. Mas que desvenda uma transformação a que abre perspectivas ao trabalho livre, de um lado, e à vida urbana, de outro. E quando surgem alguns passos novos na divisão do trabalho numa sociedade a que o regime escravocrata dera a fisionomia uniforme e hermética ancorada nas origens da colonização. Entre 1836 e 1840, a exportação de café ascendera a 4.500.000 sacas; entre 1850 e 1860, época em que Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha se deslocou para a Província do Rio de Janeiro, aquela exportação ascendia a 12.500.000 sacas. O enriquecimento conseqüente traria grandes e profundas transformações na vida nacional. E nem mesmo a Guerra do Paraguai, que veio logo depois, conseguiu deter a marcha ascensional da produção, conquanto perturbasse bastante o mercado de trabalho, com o recrutamento e as alforrias e as fugas de escravos. Em i872, quando Euclides tinha seis anos, a população do Brasil aproximava-se de 10.000.000 de habitantes. Os estudiosos consideram que, nesse número, a classe senhorial entrava, entre cabeças e aderentes, com cerca de 300.000 pessoas. O resto era classe média embrionária, trabalhadores livres

sem direito e a massa de escravos. O Brasil se caracterizava, nessa fase, como latifundiário e escravocrata enquanto, em vastas zonas do interior, as relações feudais surgiam ou continuavam intactas através do tempo.3 As transformações indicadas, entretanto, prosseguiam agravando o quadro. E dessas transformações é que surgiriam as idéias cujo desenvolvimento Euclides acompanharia, da Abolição e da República, tudo aquilo que iria constituir o ambiente de seu tempo, já diferente daquele em que seu pai vivera os anos da mocidade. Conhecendo o meio social em que as reformas penetravam, ganhando campo, Euclides conheceria também o meio rural em que a produção brasileira ancorava, e que resistiria a tais reformas.


FORMAÇÃO INTELECTUAL


Euclides da Cunha freqüentou vários colégios, em cidades do interior fluminense e na Corte. Num deles, teve como professor a Benjamim Constant, com quem voltaria a encontrar-se na Escola Militar. E pouco o que se sabe desse período de sua vida, onde já surgia o nomadismo que jamais o abandonaria, marcando-lhe a existência. De qualquer forma, denunciou os seus pendores literários e as suas idéias democráticas, nos pequenos jornais escolares. E chegou o momento em que teve de enfrentar a escolha de uma carreira. Escolheu a Engenharia, ingressando na Escola Central. Pouco adiante, por motivos ainda desconhecidos, transferiu-se à Escola Militar. Fosse em obediência a um propósito, fosse motivada por acidente, o fato é que a transferência lhe marcou a personalidade. Em 1885 estava na Escola Central, mas em 1886 assentava praça na Escola Militar. Do ponto de vista do estudo, não havia grandes diferenças entre as duas - a base de ambas eram as Matemáticas. Do ponto de vista de classe, entretanto, havia diferenças importantes e é preciso considerar que, provavelmente, o que o levou a fazer-se engenheiro militar, em vez de engenheiro civil, foi a falta de recursos.

A Escola Central assemelhava-se em muito, do ponto de vista de classe, aos cursos jurídicos, instalados no Brasil desde 1827, um lustro após a Independência. Nas Faculdades de Direito, realmente a classe dominante de senhores territoriais formava os seus quadros, aqueles quadros com que preencheria o aparelho do Estado cuja autonomia empresara. Á Escola Militar acorriam de preferência os elementos de classe média, que não tinham recursos para enfrentar o prolongado e relativamente dispendioso período de formação jurídica ou técnica e as incertezas da escolha de uma profissão ou de um emprego. O curso da Escola Militar era gratuito e, concluído, assegurava subsistência ao aluno, que se fazia oficial do Exército. Essa posição subalterna derivava da condição desimportante do Exército, que não era o elemento de força com que contava a classe senhorial. Para assegurar o seu domínio, realmente, dispunha ela da Guarda Nacional, elemento de força específico, recrutado nas próprias fileiras dos senhores de terras. Nem tinha o Exército importância como carreira, nem como força política, assim. Ficava no âmbito dos elementos de classe média, que se realizavam, distinguindo-se como militares de terra.4

Esta situação de subalternidade do Exército no conjunto das forças do País começou a ser alterada com a Guerra do Paraguai. Antes dela, o Brasil fizera as suas intervenções militares no sul, no quadro platino, com os próprios elementos locais, com os gaúchos, campeadores de tradição, soldados por natureza, acostumados e afeiçoados às lides guerreiras desde a fase das "arriadas", que eram correrias de rapina ao gado nas planícies, até à fase da luta pelas pastagens, de que se originaram os conflitos em que nos vimos envolvidos. Não havia, então, necessidade de uma força específica para a guerra. O estancieiro e sua peonada resolviam o problema a contento, reforçados) aqui e ali, seja por comandos enviados pelas autoridades centrais, seja por algumas frações de tropa regular, seja por tropa mercenária. Ora, a luta contra o Paraguai mostrou que tais elementos não estavam em condições de continuar a tarefa nos pantanais que, perlongando o grande rio, o ditador Lopez transformara em redutos. O sistema fortificado e a longa duração da guerra exigiram uma transformação no instrumento que defenderia os interesses do Império. E o Império manteve ali, durante anos a fio, cerca de cem mil homens em armas, e basta esse número para mostrar, nas condições da população brasileira, um esforço considerável. A guerra, entretanto, para a qual eram destinados os elementos mais desvalidos, na sua maior parte, proporcionara a fraternidade dos perigos e das armas e oferecera, com as promoções sem curso e sem qualquer exigência, horizontes novos a elementos de camadas sociais desfavorecidas. Muitos voltaram titulados ou promovidos. De qualquer forma, o Exército voltou com um espírito de classe, como profissão, e também, com um espírito de classe, como parte na sociedade. Daí por diante teria um papel, teria importância. Foi nesse Exército que, três lustros após o fim da Guerra do Paraguai, Euclides ingressou.

Quando o clube Militar enviou ao Trono o documento em que recusava para o Exército a atividade de perseguidor de escravos fugidos, a situação tinha chegado a um estado em que todos os sintomas de conteúdo político estavam demasiado claros para serem esquecidos. Ora, o fim da guerra com o Paraguai assinala o momento em que as longas e profundas transformações na estrutura econômica encontram repercussão na vida política do Pais. A campanha pela abolição do trabalho escravo ganha adeptos, só encontrando resistência na classe senhorial, particularmente nas zonas em que a rentabilidade servil traduzia uma situação de atraso insuperável. Estas zonas eram as da cultura colonial do açúcar e as em que o café herdara os resíduos da mineração e esgotara as terras. As lavouras ganhavam novas terras, e na medida em que caminhavam, abriam horizontes ao trabalho livre. Ã medida em que adquiria força a campanha abolicionista, invadindo os próprios quartéis, propagava-se também a idéia republicana. O Exército estava preparado para agasalhar a ambas.

Pelo estudo da Matemática — que contrastaria com o de humanidades e regras jurídicas, peculiar, na época, aos elementos da classe dominante e destinado a armá-los para defesa de seus interesses - chegavam aos espíritos jovens as idéias de Augusto Comte, defendidas por mestres que, ao saber profundo, juntavam a ascendência de uma autoridade moral incontrastável. Se o positivismo, no Brasil, não teve, como mística, grande repercussão, encontrando poderoso obstáculo na formação católica, embora pouco ortodoxa, de nossa gente, como filosofia, ao contrário, a sua penetração foi profunda naquelas camadas cultas, numericamente reduzidas, em torno das quais girava a atividade política. Proporcionava a doutrina de Comte a saída natural para as formulações peculiares à classe média, em que os oficiais do Exército constituíam grupo destacado. Permitia que esposassem reformas progressistas sem romper com os valores tradicionais a que os elementos daquela classe estavam vinculados e que tinham, na sociedade brasileira, ainda motivação considerável. As reformas que o momento apresentava eram a Abolição e a República. Ambas conquistaram logo fervorosos adeptos nas fileiras militares.

Euclides esposou-as ardentemente, como era do seu feitio. Isto não passaria do círculo dos companheiros de estudo se, em 1888, não tivesse sido envolvido no conhecido incidente de que resultou o seu desligamento da Escola Militar. O caso é muito conhecido e foi tratado por todos os biógrafos com riqueza de detalhes. E necessário frisar, nele, a firmeza com que o aluno rebelado mantém a sua posição, recusando a saída fácil de uma baixa ao hospital e a desculpa de um acesso de nervos. Euclides dá ao fato o conteúdo político que lhe emprestou no primeiro momento, e abandona o Exército. Depois de breve estada em São Paulo, regressa ao Rio, logo em janeiro de 1889. Em novembro, a República era um fato. Foi, com as glórias do instante triunfal, reconduzido à Escola Militar. Dali sairia, em 1890, com os galões de oficial, para a profissão e para o casamento. Na profissão, o seu único serviço, a rigor, foi a direção das obras de defesa do Rio, durante a Revolta da Esquadra, no setor da saúde. O mais do tempo, passou-o estagiando na Central do Brasil, em licença ou na cátedra. Em 1896, finalmente, abandonou a farda.


A LUTA PELA VIDA


Deixando a carreira militar, Euclides voltou a São Paulo donde sairia, no ano seguinte, 1897, como correspondente de um grande jornal, para os sertões baianos, acompanhando a expedição que iria resolver o problema de Canudos, apresentado ao País como um reduto de monarquistas, destinado a constituir a base de onde partiriam para o restabelecimento das velhas e derrocadas instituições. Cumprida a missão, entregou-se aos afazeres profissionais de engenheiro, reconstruindo a ponte de São José do Rio Pardo e fiscalizando outras obras, como funcionário do Estado de São Paulo. Isso lhe deu à vida aquele nomadismo de que a estrada em São José do Rio Pardo foi apenas uma pausa, e importante. As circunstâncias, entretanto, conspiravam contra ele. Uma redução orçamentária deixou-o desempregado. Quando isso aconteceu, era já autor de um livro que abalara o Brasil e conquistara uma nomeada invejável. Pouco adiante, tendo conseguido um lugar na Comissão do Saneamento de Santos, novamente pensionista dos cofres públicos, um gesto de rebeldia levou-o a demissão intempestiva e outra vez ao desemprego. Voltou ao Rio, numa tentativa de alcançar trabalho. Procurou amigos. Foi quando assistiu ao doloroso quadro de "encilhamento da miséria", a que se referiria em carta a um amigo.5 Atravessou meses sem emprego, até que o Barão do Rio Branco lhe entregou a chefia da Comissão do Alto Purus, missão que lhe demandou dois anos. Entregue o relatório, teve os vencimentos reduzidos e ficou numa posição duvidosa no Itamarati. Em busca da estabilidade, que jamais alcançaria, tentou, em 1909, o concurso para a Cadeira de Lógica, no Ginásio Nacional. Colocado em segundo lugar, alcançou a nomeação. Deu cerca de dez aulas, até o triste domingo em que, na Piedade, foi assassinado. Não conheceu a paz.

Euclides da Cunha morreu aos quarenta e três anos. Tendo começado a vida, na realidade, em 1890, aos vinte e quatro, quando saiu da Escola Militar, viveu-a, a rigor, menos de vinte anos. Nesses dois decênios incompletos, foi oficial do Exército, engenheiro de ferrovia, engenheiro do Estado, viajante e professor, isto é, só desempenhou atividades pagas pelos cofres públicos. Salvo o período em que residiu em São José do Rio Pardo, não conheceu pausa. Referiu-se, particularmente, na correspondência aos amigos, ao nomadismo em que vivia, e foi o pai quem, já ao fim, levantou um protesto contra isso.6 Em toda a parte, foi sempre o mesmo, arredio, quieto, dotado de independência feroz. Da Escola Militar saiu por ter lançado em rosto de um ministro a sua rebeldia. Do emprego, em Santos, por gesto semelhante, quando tudo lhe impunha a acomodação. Não transigiu jamais, em princípios. Mas foi extremamente tolerante com as pessoas e com os detalhes.7 Amou, apaixonadamente os seus ideais, pondo a República acima de tudo.8 A nota dominante de seu espírito foi a fascinação do Brasil.9 Não padeceu da dúvida religiosa.10 Foi hospitaleiro a todas as idéias, buscando-as e discutindo-as como quem discute os valores de uma equação.11

Todos esses traços assim reunidos, seriam suficientes para assinalar a presença e a estrutura de uma personalidade invulgar. Euclides da Cunha apresentou outros, entretanto, que mais o valorizam. Destacaremos apenas três, que foram marcantes. Em primeiro lugar, a sua vida modesta, quase pobre. Em segundo lugar, a sua aproximação com o povo. Por último, mas não em ordem de importância, a coragem com que, em todos os transes, em todas as situações, em todos os momentos, tomou a defesa dos fracos, dos desvalidos, dos perseguidos, dos oprimidos. Estes três traços, e particularmente, o último, caracterizam a existência de Euclides como uma militância. Jamais deixou de estar engajado, e a fundo, em alguma questão, em algum problema, em algum acontecimento. Engajamento a que se dava inteiro, apaixonadamente, participando e não apenas argumentando. Nesse sentido, não há talvez na vida literária brasileira outro exemplo tão alto, tão nobre, tão vigoroso.

Da pobreza de Euclides falam os seus biógrafos em minúcias e não resta o que esclarecer.12 De sua aproximação com o povo referem os conhecidos e alguns dos que escreveram sobre ele. Nos lugares por onde passou, deixou amigos entre os humildes, o trabalhador que o ajudava na ponte, em São José do Rio Pardo, o barqueiro que esteve com ele no Purus, o soldado que o acompanhou em Canudos. Mas, por toda a parte, buscava, intencionalmente, pensadamente, o convívio dos humildes, e ouvia-os, e acompanhava-os, e acolhia-os. Quanto à defesa dos desfavorecidos, sua existência inteira testemunha a coerência de uma posição cedo esposada, e com todos os gravames, refletidamente esposada. Falam as cartas ao Senador João Cordeiro, fala a entrevista com Floriano em defesa do sogro, falam as páginas de Os sertões, falam aquelas em que clamou contra a escravização dos seringueiros, falam o programa e o partido socialista que fundou em São José do Rio Pardo, falam as linhas do ensaio '1Um velho problema".13


UMA OBRA MILITANTE


A obra de Euclides da Cunha é pequena. Como livro, a rigor, deixou um só, Os sertões - escrito para ser livro, preparado, estudado. Todos os outros são coleções de artigos de jornal, não guardam unidade, não despontam como uma intenção, não trazem a marca original do trabalho antecipadamente destinado. Obra pequena -elaborada em curto prazo, além do mais. Entre Os sertões, cujo lançamento é de 1902, e A margem da história, cujo lançamento é de 1909, e que apareceu pouco depois de sua morte, mas para o qual selecionou os trabalhos, vão apenas sete anos. Sete anos de vida nômade, na fiscalização de engenheiro, na expedição de Canudos, na expedição ao Purus, passando a família de lar em lar, e deixando-a por largo tempo, vivendo ao léu, em navio, em montaria, em cavalo, em trem. Euclides da Cunha não teve biblioteca. Não teve emprego seguro, que afastasse de seu espírito os problemas de subsistência própria e da família. Sua cultura, que foi variada e profunda, particularmente levando em conta o tempo e o meio em que viveu, e o tipo de vida que levou, era, entretanto, conquistada com um esforço desesperado, aproveitando todos os instantes, todas as pequenas pausas. Nota-se, aqui e ali, a improvisação no que escreve.'4 E isso não é de surpreender. Salva os desfalecimentos inevitáveis dessa improvisação, a curto prazo, para a visão dos contemporâneos, a extraordinária capacidade para valorizar os assuntos; para os pósteros, os recursos de uma cultura que está presente em tudo o que escreve.15 Isso não retira à sua obra, entretanto, a heterogeneidade. Há nela descaídas grandes, hiatos profundos, desigualdades evidentes. Até onde teria influído nisso a premência e a necessidade da colaboração do jornal é ainda incerto afirmar. De tudo isso se deduz que Euclides foi autor de livro único, Os sertões. O resto, foi acessório, ainda aquilo que constituía a matéria preliminar para o seu segundo grande livro, que ficou malogrado, Um paraíso perdido.


OS SERTÕES


Desligado da Escola Militar, em dezembro de 1888, Euclides da Cunha viajou para São Paulo. E ali, talvez por acidente, mas provavelmente por conseqüência de seu gesto espetacular de protesto republicano> foi procurado por um jornal, e nele colaborou. Começou duas séries de artigos, assinados pelo pseudônimo Proudhon, "Questões sociais e Atos e palavras". Do Rio de Janeiro, para onde regressou em janeiro de 1889, continuou a sua colaboração naquele jornal. Em 1896, ao abandonar o Exército definitivamente, voltando a São Paulo, e continuando a sua colaboração no referido órgão da imprensa paulistana, sentiu a gravidade do problema criado em Canudos pelo ajuntamento de fanáticos que rodeava ali a Antônio Conselheiro. Em 14 de março e em 17 de julho de 1897 apareceram nas colunas do jornal em que escrevia, sob o título "A nossa Vendéia", algumas considerações suas a respeito do problema. O fato de ter sido militar, junto ao fato de ser um escritor cujo pulso já era possível sentir, levaram o jornal a convidá-lo para acompanhar, como correspondente, a expedição que o Governo Federal estava preparando para liquidar de vez com aquele problema que se agravava na medida em que decorria o tempo e cujo eco assumira, no momento, as proporções de catástrofe, ligado que ficaria a boatos os mais desencontrados, entre os quais se destacava o de uma pretensa manifestação organizada de resistência ao regime, com intenções de ir mais além, e derrocá-lo, adiante.

Governava o Brasil, por esse tempo, Prudente de Morais, que recebera o Poder de Floriano Peixoto, em circunstâncias difíceis. Governava o Estado de São Paulo, preparando-se para suceder a Prudente de Morais no Governo Federal, Campos Sales. Ambos republicanos de Morais no Governo Federal. Ambos classe senhorial que, depois de empolgar o Poder, com a ajuda da classe média, particularmente representada pelo Exército, expelira do Poder, os representantes dessa mesma classe média, retomando a união com a classe senhorial decadente das zonas de lavoura velha. Sobre um e outro, portanto, pesava a suspeição de conivência. Não defenderiam a República como esta merecia ser defendida, dizia-se. E à proporção que as expedições a Canudos encontram resistência e são vencidas cresce a agitação em defesa da República.

Muito se tem dito e repetido que o advento do novo regime resultou entre nós, de mero acidente, deflagrado por militares, na inconformação com soluções ligadas apenas a problemas da classe. Um cronista mencionou, a respeito do feito de 15 de Novembro, que o povo assistira a tudo bestializado, assim como quem diz que o povo não participara dos acontecimentos. Dos de 15 de Novembro, realmente pouco participou foi mais, e muito mais, uma festa da tropa rebelada, resolvendo os seus próprios problemas, a doença de Deodoro, a adesão de Floriano, a mudança de um Gabinete em transformação de um regime. Euclides da Cunha, muito depois, quando escreveu o esforço histórico "Da Independência à República", teve uma frase final elucidativa, a respeito do que chamou desfecho feliz de uma revolta.

A frase porque a revolução já estava feita, mostra como a luta pelo novo regime transcendia os acontecimentos da data em que ele se concretizara. Desmentido violento, frontal, entretanto, à acusação, sempre repetida, de que a Monarquia caíra por acidente, fora dado com a mobilização de forças e opinião em defesa do governo de Floriano, durante a revolta da esquadra. Seria dado, agora, com a paixão que se levantava, em torno dos acontecimentos de Canudos. De forma alguma a República fora reforma superficial, que a ninguém afetara.

As grandes transformações por que passou o Brasil na segunda metade do século XIX, aqui já mencionadas, alterariam profundamente a posição das classes sociais. Não só crescera a classe média, embora sem espaço para desempenhar um papel político, e só reforçada quando o Exército, composto e recrutado nela, viesse a disputar uma parcela daquele papel — como a classe senhorial cindira-se, colocando-se de um lado os elementos ligados às lavouras velhas, ancoradas na estrutura colonial de produção, em que o trabalho servil tinha ainda espaço, e, de outro lado os elementos da lavoura nova, que abandonavam o braço escravo e forneciam os saldos em que se apoiaria o surto industrial e o aparelho financeiro indispensável aos novos tempos. Quando a facção mais avançada no caminho do progresso, da classe senhorial, separa-se do que nela representava o fator retrógrado, e soma os seus esforços com os da classe média, o dispositivo se desequilibra e permite o advento do novo regime. Num primeiro momento, e até pior acordo tácito dos componentes dessa aliança estranha e eventual, cabe o Poder aos militares, isto é, à classe média. Floriano tipifica esse momento, ao aprofundar, com a sua posição de governante inflexível, a situação.

E foi por isso que, apesar de alguns traços de seu perfil, alcançou o destaque político, tornando-se figura marcada, a quem acompanhavam todos os que punham na República os seus ideais. Com ele começa a nova fase da luta, separando-se a classe senhorial, agora recomposta em sua unidade, da classe média, para expelir a esta do Poder. A sucessão de Floriano é apenas uma etapa dessa luta, e os governantes que o sucedem são representantes notórios da facção mais avançada da classe dominante de senhores de terras. A culminação da derrota da classe média terá lugar com a política dos governadores, em que Campos Salles, sucessor de Prudente, entrega os Poderes estaduais às oligarquias e disso faz a base de seu Governo. Mas, no momento em que Prudente de Morais exerce a Presidência, quando ocorre o episódio de Canudos, o florianismo estava ainda vivo, e a agitação pela República, com a correspondente suspeição em torno do supremo magistrado, mostrava que o novo regime não se resumira na passeata militar de 1889. O choque que a opinião recebe com os sucessos de Canudos, e a onda de suspeições levantadas, constitui uma prova de que o regime republicano interessava fundamente camadas importantes daquilo que era povo na época. Estas camadas não assistiriam impassíveis ao levantamento, em pleno sertão, de um reduto monarquista, talvez fundado em conivências e passividades. Não importa que, no fundo, tudo isso fosse falso, como depois se verificou. Era um sintoma.

Euclides da Cunha, a esta altura, estava desiludido do regime que ajudara a forjar. Mais dos homens, evidentemente, do que dos princípios, a que, na verdade, se conservava fiel. Incompreensões pessoais e ressentimentos a que era afeito tinham-no desviado de um caminho que escolhera desde os bancos acadêmicos. Seus compromissos com o regime, entretanto, estavam intactos.16 Os dois artigos sob o título "A nossa Vendéia" comprovam essa posição nele. Esposa a opinião dominante de que, em Canudos, havia uma grave articulação monarquista. Apresentava os fanáticos ali reunidos como parentes dos chouans que se haviam levantado contra a Revolução. Naquele arraial de taipa estava "a nossa Vendéia". Não seria esse o seu único equívoco.


O SERTÃO


A vastíssima zona geográfica que, no Brasil, é conhecida como sertão foi, antes da descoberta, batida apenas pelos indígenas de civilização mais rudimentar entre os que o português encontrou, quando a colonização teve inicio. Começou a ser penetrada, talvez ainda no século XVI, quando as fazendas de gado separaram-se das fazendas agrícolas. Em fase anterior, que surgiu com os primeiros tempos da colonização, os currais eram quintais dos engenhos, destinados a fornecer a estes os animais para a tração e para o abate. O proprietário do gado era o mesmo proprietário dos engenhos. Há uma primeira alteração quando o mesmo proprietário separa as atividades, distanciando-as no espaço: mantém os engenhos, próximo ao litoral, de que dependiam, pela deficiência dos transportes, de vez que a produção se destinava toda à exportação, e estabelece fazendas pastoris no interior. Numa segunda fase as alterações se completam: o fazendeiro de cana será um, o criador de gado será outro. A multiplicação dos rebanhos motiva a apropriação das vastas zonas do interior, daquilo que ficou conhecido como sertão. Na medida em que se completa essa divisão de atividades, crescem as diferenças entre o sertão e o litoral e surge o contraste entre uma faixa litorânea em que se operam transformações econômicas e sociais, ainda que muito lentas, e uma zona de sertão, em que os grupos e classes se estratificam. Se bem que, os quadros tenham identidades porque, tanto no sertão como no litoral, com o passar dos tempos, o regime escravocrata vai sendo substituído por um regime feudal ou semifeudal, o fato é que no sertão as relações feudais se aprofundam e se conservam praticamente intactas. E uma população abandonada ao seu destino, vivendo uma existência peculiar. Quando os portos brasileiros são abertos ao comércio de todas as nações, o que, na época, correspondia a abri-los apenas aos navios ingleses, em i8o8, às vésperas da autonomia, esse contraste estava já vincado na fisionomia social. Tal contraste chegou aos nossos dias e se apresenta eloqüente no modo de produção.17

Esta sociedade feudal, de hábitos longamente ancorados no tempo, gerou formas de comportamento específicas e conservou-as.18 Agravava o quadro o flagelo climático da seca que dizimava populações e rebanhos, tangendo o homem para outras paragens. Tudo isso, e a extensa apropriação territorial, processada desde os primeiros tempos, acarretaria os traços violentos da sociedade sertaneja, os hábitos patriarcais, a noção primitiva de honra, a irremediável pobreza, as lutas de famílias, o banditismo infrene e, por fim, o fanatismo religioso. Batido por todos os reveses, o sertanejo punha facilmente as suas esperanças no sobrenatural, como o indígena, com o qual se cruzara intensamente. O caso de Canudos não foi único. A circunstância política é que o destacou dos demais. Tratado pelos métodos policiais, com os recursos do Estado da Bahia, não sofreu modificação. Os fanáticos resistiram e derrotaram a força punitiva que fora encarregada de reduzir aquela tapera religiosa. As primeiras intervenções do Governo Federal não tiveram melhor resultado. As forças não foram apenas repelidas, mas ainda em condições humilhantes, deixando muitas armas em mãos dos sertanejos. Já aí começava a ganhar corpo em todo o País a idéia de que, em Canudos, estava o centro de resistência dos remanescentes monarquistas e que a traição rondava as portas da República. Nova expedição, comandada por um general de renome, e nova derrota em condições catastróficas, levaram a paixão ao auge. Foi quando num ambiente eletrizado, o Governo Federal organizou a expedição a que se incorporou Euclides da Cunha. Ia para ela como quem participa de uma cruzada redentora, defendendo os mais puros ideais. Dando vivas à República.

Duas semanas depois de chegar à Bahia, Euclides é assaltado pelas primeiras dúvidas a respeito de Canudos. Um soldado de raça, soldado por dentro e por fora, o Coronel Carlos Teles, participante da expedição comandada por Moreira César, revela de público que não há monarquismo em Canudos.'9 Mas é assistindo o espetáculo do cerco e do ataque ao arraial que o correspondente de guerra verifica a grandeza do crime que ali se comete. Dá cumprimento à sua missão e regressa. Traz o rascunho de um livro, um depoimento áspero, um libelo arrasador. Há de escrevê-lo algum dia, quando tiver uma pausa.


A PAUSA


Euclides regressa, em 1898, à sua engenharia "incerta e fatigante". Funcionário da Superintendência de Obras Públicas, no Estado de São Paulo, retoma as suas atividades, depois de uma licença em que se refaz. Acontece-lhe então o acidente feliz de São José do Rio Pardo. Deve dirigir ali a reconstrução de uma ponte. Passará três anos num lugar) e isso constitui, em sua vida nômade, a pausa de que necessita. Ã beira do rio, em barraca de zinco e sarrafos, ao mesmo tempo em que acompanha os trabalhos da ponte, escreve o livro que está dentro dele, exigindo a forma definitiva. Mas não é apenas a pausa que o ajuda é o meio. Mi encontra um ambiente, amigos, gente que participa do seu problema. Encontra Francisco Escobar, que lhe fornece livros, que os consegue mandar vir de longe, que o aproxima dos sabedores, que ouve os capítulos, que lhe traduz o latim. Em sua vida atormentada, Euclides da Cunha fez numerosos amigos. Ninguém teve o culto da amizade como ele. Em Escobar, entretanto, há mais do que o afeto de amigo, há uma colaboração constante, tenaz, carinhosa, cheia de cuidados. E como ele e Pascoal Artese que, numa cidadezinha do interior paulista, numa fase em que o operariado é reduzido no Brasil, em que as reivindicações de classe nem chegam a esboçar-se, Euclides da Cunha funda um Partido Socialista e lhe redige o programa. As atividades que o absorvem, com a capacidade que ele tem para dedicar-se às tarefas que empreende, são a ponte e o livro.

Entre 1897, quando presenciou os acontecimentos, e 1902, quando o seu libelo veio a público em forma de livro, decorrem cinco anos. Nesses cinco anos, Euclides mudou muito. A mudança fica denunciada, eloqüentemente, nas diferenças entre o Diário de uma expedição e Os sertões. Não são apenas diferenças de qualidade, de um rascunho para um livro. Há outras mais importantes. Euclides da Cunha fora a Canudos com uma idéia a respeito do problema. Sua profunda honestidade lhe fez ver que a posição antiga era falsa na volta da Bahia, é um outro homem. A diferença fundamental, entretanto, não está ainda nisso: está em que Euclides, antes de transformar o rascunho em livro, arma-se para a empresa que o absorve, consulta autores, testemunhas, compêndios, faz notas, elabora um andaime enorme para a sua construção, refaz a sua cultura, preenche os vazios de seus conhecimentos especializados, procura compreender uma série de aspectos. Os sertões têm uma história. São, na verdade, obra difícil, elaborada com lentidão, guardando uma finalidade, a acusatória. No libelo, justo em seu conjunto, haverá vítimas injustiçadas.

Apesar dos esforços que fez para dominar instrumentos de análise que lhe permitissem transformar um caderno de notas, mero rascunho dos acontecimentos, numa obra definitiva, Euclides da Cunha não poderia, por motivos independentes de sua vontade, ir ao fundo dos motivos essenciais do problema. Antes, anotara já, com honestidade que honra o escritor de raça que era, as suas deficiências em Geologia, em Botânica e em outros campos.20 Tentou superá-las todas, antes de lançar-se ao trabalho final. Nesse esforço, auxiliado por Escobar e outros amigos, operou uma completa revisão de seus conhecimentos. Mas, no conjunto, a ciência de que se utilizou não foi apenas a ciência de seu tempo - foi o que, da ciência de seu tempo, chegara ao Brasil. Nisso interfere, acima da vontade dos indivíduos, ainda que excepcionais, aquilo a que estão subordinados. E quando aparece a ideologia do colonialismo, a que Euclides, apesar de seus geniais lampejos de intuição, não ficou imune.

Toda ideologia é justificatória por definição e, gerando-se de condições concretas e, portanto, sendo constituída a posteriori, pretende sempre apresentar-se como apriorística. Por ideologia do colonialismo se entende aqui, o conjunto de idéias e conceitos que, gerado e desenvolvido com a expansão colonial das nações do Ocidente europeu, pretendia justificar a sua dominação sobre as áreas de que se haviam apossado em ultramar e que dominavam, direta ou indiretamente, gerindo-lhe os destinos, pela posse territorial, ou orientando-os ao sabor de seus interesses pela supremacia econômica sobre elas ou suas metrópoles. Surgiu e cresceu com a fase mercantilista e consolidou-se com o acabamento do processo que colocou o capitalismo como modo de produção predominante, desembocando na fase imperialista a que assistimos. Sumariamente, nos fins do século XIX, reunia tudo o que justificava a exploração colonial: conceitos de clima, conceitos de raça, conceitos de civilização. Sob o clima tropical não seria possível forma adiantada de organização social, econômica e política; a raça negra seria inferior e, como tal, destinada apenas ao trabalho, influindo negativamente nos cruzamentos em que concorresse, como de resto, seriam negativos os cruzamentos em si; as técnicas avançadas de organização política, como de produção, não poderiam ser adaptáveis a povos coloniais, onerados pelo clima e pela raça - tais foram, entre outras menos importantes, formas muito difundidas de uma ideologia que, no fundo, pretendia apenas coonestar e justificar a exploração colonial. Pela difusão dessa ideologia nas áreas coloniais, tornando as suas elites intelectuais suportes de sua vigência, responde a estrutura social nelas dominante, quando a classe senhorial tinha os seus interesses fundamente associados, ainda que subsidiários, da classe, que emergira vitoriosa no processo histórico que culminou com a Revolução Industrial.


ESPÍRITO CIENTÍFICO


Euclides da Cunha tivera uma formação científica que se constituiria em singularidade nos meios literários brasileiros. Pelas exigências da profissão e pelos pendores naturais, armara uma estrutura de conhecimentos em que os das ciências ditas exatas tinham um lugar destacado. A especialização científica, em seu tempo, apenas se esboçava entre nós. No mercado de trabalho intelectual, aquela especialização não encontrara ainda demanda propícia ao seu desenvolvimento - e isso era também um traço de colonialismo evidente. Não havia delimitações à expansão de conceitos e de hipóteses, nem policiamento crítico para isso. Os poucos dotados de base científica, ainda que rudimentar, ficavam habilitados a penetrar em todos os campos, encontrando credulidade suficiente para um papel de relevo. Que indivíduos assim desamparados aceitassem e difundissem os conceitos básicos da ideologia do colonialismo não seria de espantar. Ora, entre aqueles conceitos básicos, como campo extremamente propicio, apresentava-se o etnocentrismo, que a tudo pretendia explicar, desviando a atenção dos interessados de outras áreas de pesquisa. O etnocentrismo, com a sua carga de preconceitos, estava presente não apenas na ciência elaborada no Brasil, e que dava, na realidade, os primeiros passos, como na arte elaborada no Brasil. Seus efeitos, aliás, estão longe de ter desaparecido, aqui, embora tenham entrado em profundo e irremediável descrédito.

De qualquer forma, o teor científico de Os sertões valorizou muito o efeito do livro.

Com Os sertões viu-se, pela primeira vez no Brasil [escreveria Roquerte Pinto], o espírito científico concorrendo para a edificação de um grande monumento literário. Não digo que tenha sido o primeiro livro literário com preocupações científicas; isto seria inexato... e a literatura resultante teria sido, certamente, deplorável. O que desejo afirmar é que Euclides da Cunha mostrou como se pode tomar base lógica científica para supremas construções literárias. O que há de notável, n'Os sertões, desse ponto de vista, não é a minúcia técnica, às vezes até inaceitável; é o "espírito cientifico" que trava todo o edifício. Houve tempo em que se acreditava que a "verdade" repelia a "beleza" ou, pelo menos, dela não precisava. Euclides da Cunha provou que elegância e vigor de frase, imagens rutilantes, sombras e colorido, que são do manejo corrente dos bons escritores, nada perdem quando o autor conhece bem as relações que ligam os fenômenos descritos - o que, por si só, caracteriza o "espírito científico".21 Roquette Pinto acrescentaria, mostrando a associação entre a Arte e a Ciência como base das obras fundamentais de interpretação: "A introdução do espírito científico" na literatura histórica, o "colorido romântico" que ele deu, talvez sem querer, a todas as suas grandes páginas, sintonizando-as com o meio intelectual, a "identificação do escritor com a natureza", cujos acidentes ele estava perfeitamente bem preparado para entender, são parâmetros da grande figura.22

O aparato científico de Os sertões não apenas valorizou os efeitos que produziu, que foram profundos, embora não aqueles para que se preparara e esperava. Provinha de uma intenção, de uma cuidadosa e paciente elaboração, de consultas numerosas, de estudos tenazes. Fazem do livro um esforço, uma construção, uma obra difícil, que o autor ergueu penosamente, arrimando-a a estacas que julgava eternas. Gilberto Freyre viu esse lado do problema:

Juntando-se a colaboração do paciente pesquisador de Geografia Física e Humana e de História Colonial do Brasil que foi Teodoro Sampaio à do geólogo Orville Derby e, ainda, à orientação do psiquiatra Nina Rodrigues, quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos fanáticos de Canudos o próprio esforço de pesquisa de Euclides nos arquivos da Bahia, e, de campo, no interior do Estado, vê-se como é precária a posição dos que ingenuamente exaltam n'Os sertões um livro improvisado. Nem improvisado nem fácil.23

Euclides, que confessara, no Diário de uma expedição, seus fracos conhecimentos em diversos campos da ciência - das ciências da natureza, não das ciências do homem -, alinha, no mapa Geológico da Bahia,* que apresenta em Os sertões, uma série de nomes autorizados, Teodoro Sampaio, Derby, Spix e Martius, Hartt, Gardner, Burton, Halfeld, Rathburn, AHen, Aires do Casal, Príncipe de Neuwied, Wells, Bulhões, Bailys, Lopes Mendes. Vinha fortemente calçado. E nem perde oportunidade, aqui e ali a propósito de alguma observação mais ousada, ou mesmo sem propósito, de alinhar as suas "catacumbas famosas", os seus Broca, os seus Gumplowicz, os seus Foville, os seus Tanzi. Parecia-lhe, e talvez isso lhe proviesse da cultura matemática, que vivia num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumavam.24

Dentro de seus critérios, perseguia a certeza, detestava os meios tons, as dúvidas.25 Tudo lhe parecia fácil quando arrimado nas afirmações peremptórias, definitivas, irremovíveis. Dai, inclusive, as suas generalizações fáceis, seguindo-se, muitas vezes, a observações a que não faltava acuidade.26

A autoridade científica dos seus autores prediletos parecia-lhe incontestável. Na sua timidez de escritor, que se parecia tanto à sua timidez de homem, e que tinha menos motivos para manifestar-se, oscila entre afirmações avançadas, por vezes imprudentes em que se lança sozinho — e casos há em que a sua intuição abre clareiras por isso mesmo —, e conceitos que apenas subscreve, sem nenhuma análise, acontecendo o caso, inclusive, de contrariarem as suas próprias observações, a visão direta que tinha da paisagem física, da paisagem social, da paisagem humana. As teorias de Darwin estavam em fastígio, e Euclides as acompanha. Fala em "seleção natural", em muitas oportunidades, e acredita honestamente em tudo o que fala. Apresenta-se, em Os sertões, com um espírito científico que assusta os leitores como se os enfrentasse de armadura e o livro fosse uma fortaleza poderosamente artilhada cuja simples aparência seria convincente.


ETNOCENTRISMO


Roquette Pinto, com a autoridade de admirador, poderá dizer um dia:

Tudo n'Os sertões é grandioso; nem tudo, porém, é certo. Já tive ocasião de mostrar quanto me parecem precárias três afirmativas de Euclides da Cunha: sobre a questão do cruzamento, a fatalidade da luta das raças, o autoctonismo do homem americano.27

O problema da ideologia do colonialismo é tão flagrante em Euclides que pode ser indicado no contraste entre o texto do Diário de uma expedição e o do grande livro em que se transforma. Naquele texto, realmente, não há uma só nota referente à inferioridade de raça, de clima, e apenas uma admite o fanatismo religioso como forma de paranóia, observação que, no domínio individual - Canudos era problema social e, portanto, coletivo -, pode ser aceita ainda hoje. Fala na "sobriedade espartana" dos jagunços, em "titãs bronzeados". Proclama:

Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável!

Adiante:

Com a temperatura máxima de 33o à sombra destes dias, deve ser crudelíssimo o martírio dessa gente indomável e custa a compreender a energia soberana que os alevanta por tal modo acima das imposições mais rudes da matéria.

Mais adiante:

Sejamos justos - há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estóica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política.

Outra vez:

O 5o de policia é todo constituído por sertanejos do interior da Bahia e de outros Estados e o seu desassombro no combate e a capacidade singular de adaptar-se às mais duras condições de uma campanha, patenteiam admiravelmente o valor e a têmpera resistentes dos nossos rudes patrícios dos sertões.

E este julgamento enfático:

Além disto o homem do sertão tem, como é de prever, uma capacidade de resistência prodigiosa e uma organização potente que impressiona. Não o vi ainda exausto pela luta, conheço-o já, porém, agora em plena exuberância de vida. Dificilmente se encontra um espécime igual de robustez soberana e energia indômita.

E a esperança final e culminante:

Depois da nossa vitória inevitável e próxima, resta-nos o dever de incorporar á civilização estes rudes patrícios que - digamos com segurança - constituem o cerne da nossa nacionalidade.

Incorporar a que civilização, seria o caso de perguntar, à do raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral? 28

Ora, a isto, escrito em 1897, vamos contrapor o que se segue, escrito entre 1898 e 1901, depois da consulta, da montagem dos andaimes, da articulação de materiais, do estabelecimento de uma cultura colhida nas melhores fontes da ideologia do colonialismo:

Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força. Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado (Os sertões, p. 66, da 15a ed.).

Vemos, aí, pois, Euclides mencionando, depois de indicar a Nina Rodrigues como fonte, traços culturais como genéticos, e mencionar, o que seria depois repetido por Oliveira Viana, o português como, no cruzamento, fator aristocrático. Assim se misturaram, de velhos e de novos tempos, problemas de antropologia e problemas de classe.

Mais adiante, citando outra fonte em que se abeberava a sua teoria, Gumplowicz, acrescentava:

A verdade, porém, é que se todo elemento étnico forte, tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco ante o qual se acha, encontra na mestiçagem um quadro perturbador.

Para concluir, incisivo:

E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feição definida, sem vigor, e as mais das vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades (Idem, p. 11).

O conflito a que se referia, e que constituía uma das teses do autor em que buscou arrimo, prende-se à luta das raças, que o referido autor considerava a força motriz da história.29

Nos artigos que seriam reunidos em Contrastes e confrontos, os andaimes estão ainda erguidos. A propósito do Peru, escreve:

Porque o peruano é, ainda mais do que nós, uma ficção etnográfica.

Descrevendo a vida dos povoadores da faixa entre o Madeira e o Javari — antes de conhecer a Amazônia, note-se bem —, menciona as suas teorias:

Ora estes sucessos, que formam um dos melhores capítulos de nossa História contemporânea, são também o exemplo mais empolgante da aplicação dos princípios transformistas às sociedades. Realmente, o que ali se realizou, e está realizando-se, é a seleção natural dos fortes.

Numa página de recordações da paisagem paulista do Vale do Paraíba, anota:

O caipira, sem o desempenho dos titãs bronzeados que lhe formam a linha obscura e heróica, saúda-nos com uma humildade revoltante, esboçando o momo de um sorriso deplorável, deixa-nos mais apreensivos, como se víssemos uma ruína maior por cima daquela enorme rumaria da terra.

Pouco adiante, no ensaio de sugestivo título de 'Nativismo provisório", tem duas observações interessantes na mesma linha de sua tendência doutrinária:

Falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de resistência diante dos caracteres de outros povos. Um código orgânico, como qualquer outra construção intelectual, surge naturalmente da observação consciente dos materiais objetivos do meio que ele procura definir e para o caso especial do Brasil exige ainda medidas que contrapesem ou equilibrem a nossa evidente fragilidade de raça ainda incompleta, com a integridade absorvente das raças já constituídas. 30

Em À margem da história, na parte inicial, constituída de fragmentos do malogrado Um paraíso perdido, já suas observações mudam de sentido. Escreveu-as depois de ter percorrido a Amazônia, de ter visto, como vira em Canudos - e quando conta o que viu é honesto, fiel e glorificador de sua gente -, os seus povoadores na conquista da floresta bravia. Conta daqueles homens que eram lançados à selva, como banidos, para desaparecerem:

E não desapareceram. Ao contrário, em menos de trinta anos, o Estado que era uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chofre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico.

Adiante refere-se à integridade orgânica a ressaltar-lhes das musculaturas inteiriças, ou a beleza moral das almas varonis que derrotaram o deserto.

Compara-os aos bandeirantes:

Os obscuros pioneiros prolongam a estes dias a tradição heróica das "entradas", que constituem o único aspecto original da nossa História.

Repete a comparação:

Para vencermos a terra houvemos que formar até o homem capaz de a combater - criando-se à imagem dela, com as suas rudezas e as suas energias revoltas - por maneira a talhar-se no tipo mestiço, e inteiramente novo do "bandeirante", a figura "excepcional do homem que se fez bárbaro para estradar o deserto, abrindo as primeiras trilhas ao progresso. 31

Ora bem, uma referência clara, incisiva, eloqüente ao malsinado mestiço...

Existe em Euclides da Cunha um dualismo singular, de que os seus livros estão pontilhados: enquanto observa, testemunha, assiste, conhece por si mesmo, tem uma veracidade, uma importância, uma profundidade e uma grandeza insuperáveis; enquanto transmite a ciência alheia, ainda sobre o que ele mesmo viu, testemunhou, assistiu, conheceu, descai para o teorismo vazio, para a digressão subjetiva, para a ênfase científica, para a tese desprovida de demonstração. Vai a Canudos, presencia a luta tremenda que ali se trava, e transmite ao seu Diário as impressões indeléveis, honestas, exatas - o sertanejo é um titã. Volta de Canudos e arma-se de bagagem teórica para fazer do rascunho um livro, e apenas traduz as teorias alheias, enfatizando-as - e o sertanejo é uma sub-raça, e o cruzamento é um desastre genético, e o negro e o índio são raças primitivas, e há uma seleção natural, e deve-se aplicar às sociedades as teses do transformismo e do evolucionismo, daquele falso materialismo que, em suma, foi o aborto científico de fase justificatória e apologética.

Mas, adiante, depois da introdução sobre o meio físico e sobre o meio humano, em que tais teses se expandem - descreve, com um vigor épico, as maravilhas dos sertanejos, a sua áspera noção de honra, a sua bravura, a sua inteireza, a sua resistência, porque transmite o que viu, o que assistiu, o que testemunhou. Sobre a Amazônia, o que escreve antes de a conhecer tem uma orientação, esposa as teses doutrinárias do colonialismo; o que escreve depois de a conhecer é o inverso, o seringueiro é um bravo, apenas vítima da espoliação econômica, um desbravador do deserto, um bandeirante. Tivesse aparecido Um paraíso perdido e, possivelmente, Euclides reveria algumas de suas posições.


INCOMPREENSÕES


As incompreensões de Euclides da Cunha, foram numerosas - incompreensões por desconhecimento do problema, incompreensões por refractariedade, incompreensões por aceitação de teorias falsas, incompreensões por deficiência de método de análise, e até incompreensões por mero ressentimento injustificado. No seu discurso de recepção, na Academia Brasileira de Letras, por exemplo, todos os seus louvores não são para Castro Alves, cuja cadeira vinha ocupar, são para Valentim Magalhães, figura secundaríssima, que o tempo se encarregou de apagar. L verdade que morrera há pouco, ao ser Euclides recebido na Academia, e tivera grande atividade nos meios literários do tempo. Valorizar Valentim Magalhães teria, entretanto, sido aceitável, se, no discurso não ficasse revelada, também, uma profunda incompreensão sobre Castro Alves.

Estou mais uma vez - diria - ante uma grandeza que à primeira vista não admiro porque não a compreendo. 32

Ia mais adiante:

Ora, ante estas coisas imponentes e fragílimas, tornam-se à primeira vista opináveis o renome e o valor de tão incorrigível fabricante de quimeras. O que tinha importância era o renome e o valor de Valentim Magalhães...

A própria República, que amou apaixonadamente, amarguradamente, tristemente, não foi por ele compreendida, no nosso caso. Trata-a, num de seus repentes, de arremedo de instituição política, tem referências, particularmente nas suas cartas, à desilusão sobre o regime. Já não está na fase da viagem a Canudos, quando, sob a ameaça dos fanáticos do Conselheiro, dava-lhe vivas e dizia que ela era imortal. O processo econômico e social de que resultou a queda da Monarquia, e em que ele fora parte, passou-lhe despercebido. Chegaria a escrever:

Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política.33

Frase em que se mostra claramente, a sua profunda incompreensão do problema da mudança das instituições brasileiras. Talvez influísse, no caso, uma outra de suas incompreensões, aquela que foi nele quase obsessão - sobre Floriano. Traça do consolidador do regime dois perfis.34 Há, em ambos, aquele jogo de imagens, aquele imprevisto, aquele movimento e aquele colorido com que Euclides salva qualquer assunto. No conteúdo, porém, revela-se a falsidade. O interessante é que, mesmo pretendendo destruir a imagem que, de Floriano, formavam Os que lhe seguiam as orientações, Euclides é obrigado a deixar transparecer algumas das notas dominantes naquela personalidade invulgar. Refere-se à sua lucidez incomparável,35 à sua tenacidade incoercível, tranqüila e formidável.36

Mais tarde, confessaria a Lúcio de Mendonça:

E, todavia, esse homem que me fez tremer de assombro num momento, com um gesto e uma frase incisiva de generosidade, repeliu-me de sua presença com uma tranqüilidade de que somente os verdadeiros fortes possuem o segredo.37

Euclides não compreendeu jamais, mesmo ao rever os seus conceitos sobre Floriano, o que representara o papel do Marechal de Ferro no processo republicano — porque não compreendeu o próprio processo.

Levou a sua incompreensão desse processo ao extremo de uma posição contra o militar. Nessa posição poderia ter havido, e houve por certo, resíduos de família, ressentimentos pessoais, mas houve principalmente incompreensão política. De sua própria experiência militar sempre falou mal, como sempre falaria mal de sua profissão de engenheiro: me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo à força e desta engenharia mal-estreada.38

Um de seus biógrafos menciona:

Afirma Oliveira Lima que os seus colaboradores mais chegados queriam limpar a República da mácula militar com que nascera.39

Refere-se o historiador a "colaboradores mais chegados" a Prudente de Morais. Não se tratava, evidentemente, de mácula militar, que esta, mácula ou glória, era inapagável - mas de mácula de classe. Os senhores territoriais começavam a expulsar do Poder, com a saída de Floriano, os antigos aliados da classe média. Isto, Euclides da Cunha não poderia distinguir com clareza. Há que notar, ainda aqui, o contraste entre o texto do Diário e o texto de Os sertões. No primeiro, as referências glorificadoras aos militares são freqüentes. Euclides, de um dos chefes legalistas, escreve que é um velho lidador que atravessava, sob um chuveiro de balas, as gargantas das Termópilas do sertão, animando com um sorriso perene o soldado; de outro o assombra a placidez modesta de um homem cujo nome é hoje, na boca do nosso soldado, a palavra sagrada da vitória; o terceiro era, ao seu ver, uma magnífica existência heróica, atravessada ao ritmo febril das cargas guerreiras, uma vida que foi um poema de bravura tendo como ponto final uma bala de Manulicher; e completa um quadro sugestivo a sua galeria:

Vi, nessa ocasião, o Coronel Sampaio atravessar lentamente, a pé, a praça, na direção do combate. Não tirara os galões; encarava serenamente os perigos dentro do alvo tremendo da própria farda, francamente exposto aos tiros do inimigo, que visava de preferência os chefes. Desapareceu com o mesmo andar tranqüilo no seio dos combatentes.40

Em Os sertões, esses perfis glorificadores se repetem, sucedem-se, ocupam quase todas as páginas, ao lado das referências à bravura, ao estoicismo, à pugnacidade dos fanáticos. Surge delas, entretanto, o libelo. No que diz respeito aos militares, o libelo apenas atingia quanto ao que se refere aos degolamentos, ante os quais Euclides da Cunha se revoltara. Esperou, publicado o livro, um revide da classe. Decepcionou-se em não ter ocorrido. A sua incompreensão não viu que os militares, em conjunto, só podiam ter uma posição - ao lado do libelista. Em Canudos, na verdade, no cenário fechado, na praça da guerra, havia apenas brasileiros, de um lado e de outro, e brasileiros humildes, no máximo da classe média. Quem criara o problema de Canudos e quem o resolveria pelo extermínio não seria a classe média. Euclides da Cunha não estava em condições de ver o problema desse ângulo, entretanto. E cuidaria que os seus velhos companheiros de farda lhe jogariam à face uma afronta que não existiria. Ao contrário, nem há resposta do Exército, e sim os louvores de Moreira Guimarães, depois os de Dionisio Cerqueira, e ainda o carinho do testemunho de Cândido Rondon, de Tasso Fragoso e de tantos companheiros da Praia Vermelha.

Estas incompreensões de posição são agravadas por algumas incompreensões mais profundas. A respeito da sorte do Brasil, do destino do Brasil, dos rumos do Brasil, por exemplo. Aqui opera fortemente o pessimismo que a ideologia do colonialismo instala e que é um veneno mortal. Euclides combate a nossa vida fácil e perdulária, esta nossa vida à gandaia, ociosa e comodista, sobre a enorme fazenda de uns quatrocentos milhões de alqueires de terra, onde sesteamos, fartos e por aí vai. Trata, no caso, do imperialismo referindo-se ao perigo alemão.41 E a tese da preguiça, que será um dos motivos centrais do livro de Paulo Prado. No Vale do Paraíba, vê este quadro:

na calada dos ermos, todas as sombras de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza em ruinas.42

Explica o imperialismo:

E o darwinismo rudemente aplicado à vida das nações.43

A respeito da expansão norte-americana, quando se refere, objetivamente, ao desafogo de emigração forçada de capitais,

revela outra vez a incompreensão fundamental quando menciona como expansão naturalíssima o que tem a lucidez de classificar como o imperialismo dominante nos últimos tempos na política norte-americana. 44

Para responder a tais ameaças, Euclides tem uma fórmula singular:

Mesmo no balancear com segurança os únicos perigos reais que nos assoberbam, não se distinguiram males insanáveis - mas a crise transitória da adaptação repentina a um sistema de governo que, mais do que qualquer outro, requer, imperativamente, o influxo ininterrupto e tonificante da moral sobre a politica.45

Isto é, com as antigas virtudes do trabalho e perseverança [teríamos] as melhores garantias do nosso destino.46

Fórmula mágica, certamente, que traduz uma simplificação singular, a marca da classe média e que não poderia desembocar senão naquela profecia alucinada de que aquela Amazônia onde se opera agora uma seleção natural de energia e diante da qual o espírito de Humboldt foi empolgado pela visão de um deslumbrante palco, onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar à civilização do globo, a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.47

Outra de suas incompreensões deriva da fascinação a que se submete ante o evolucionismo e o transformismo. Citando o livro de Bryce — exemplo brutal de literatura colonialista, na sua cegueira irremediável e natural pelo que existia, efetivamente, atrás das aparências sul-americanas — Euclides não trepida em escrever:

Aplicando à vida superorgânica as conclusões positivas do transformismo, esta filosofia caracteristicamente saxônia,... e exercitando crítica formidável a que não escapam os mínimos sintomas mórbidos de uma política agitada, expressa no triunfo das mediocridades e na preferência dos atributos inferiores, já de exagerado mando, já de subserviência revoltante, o que eles lobrigam nas gentes sul-americanas é uma seleção natural invertida.48

Acredita na seleção natural até quando nos louva:

E é por certo clima admirável o que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons.

Refere-se à conquista da Amazônia e às condições climáticas ali imperantes. Esquece que a conquista da Amazônia foi feita pelos camponeses sertanejos, irmãos daqueles que lutavam em Canudos, não por aqueles que faziam uma política fundada no triunfo das mediocridades.49

Um dos calos mais expressivos da ideologia do colonialismo foi aquele da sedução dos aspectos mórbidos. Tudo era mais ou menos mórbido, e nem a literatura escapou, na época1 sendo o gênio tido como anormalidade e escrevendo-se longos compêndios para provar que os escritores marcantes tinham sido nervopatas, viciados, anormais. Uma fúria de classificação de caracteres dominou o campo da psicologia. Euclides não escapou aos seus efeitos. Já no segundo artigo, "A nossa Vendéia", antes de partir de São Paulo para Canudos, refere-se ao heroísmo mórbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados.

Do conselheiro, em Os sertões, num amplo estudo, dirá que é um doente grave [a que só] pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva.50

Mas, acrescenta:

Foi um documento raro de atavismo.51

Vai mais adiante:

A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhe as relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie.52

Já não se trata do estudo de um indivíduo, mas de uma coletividade. Euclides vai desmandar-se logo:

Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los, há pouco, de relance, em período angustioso da vida portuguesa.53

Mais adiante, depois de algumas lúcidas páginas sobre a sociedade sertaneja e as lutas de família, desgarra:

Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.

Aqui está, presente e eloqüente, o etnocentrismo desvairado. E continua:

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do estádio social inferior.

Para concluir, do sertanejo:

Absorvia-o a psicose coletiva.54

Por aí vai Euclides, na trilha largamente batida dos que apreciavam estudar "as coletividades anormais , a psicologia das multidões", e ficções que tais. Enquanto o diagnóstico, colhido aliás em Nina Rodrigues, e adotado sem filtragem, referia-se a um indivíduo, ao Conselheiro, os desmandos não se singularizam. Destacam-se, entretanto, quando são generalizados ao grupo. Aquela áspera revolta camponesa, tratada como fora tratado o problema dos quilombolas, dois séculos antes, e pela mesma gente e pela mesma classe, parecia a Euclides, no apego a um pretenso espírito científico", uma anormalidade monstruosa.

Esse mesmo "espírito científico" que criara, à sua conveniência, uma psicologia, uma sociologia, uma economia e até uma política, infiltrara-se largamente também na geografia, fazendo repontar um certo determinismo geográfico, que explicaria tudo e até justificaria. A pressão do meio físico - e esse fator, o meio , sempre nebuloso, excluindo a sociedade e as classes, penetrou até a literatura, crescendo com a obra de Taine - surgiria como razão última. Euclides acolheu-o, hospitaleiramente. Quando estuda "A missão da Rússia", num ensaio tido, sem nenhuma razão, como profético, enuncia uma das conhecidas "leis" do geografismo:

O conceito é de Havelok Ellis: o centro da vida universal dos povos tende a deslocar-se para o Pacífico circundado pelas nações mais jovens e vigorosas da terra - a Austrália, o Japão e as Américas.55

E uma "lei" - aliás aí atribuída a um fisiologista - que se liga, na inconsistência, àquela outra de que todas as civilizações importantes surgiram à margem dos grandes rios, fazendo crer que a rede hidrográfica condiciona e até determina as civilizações. Apreciando o que chama "Conflito inevitável" entre peruanos e brasileiros, Euclides acha que as incursões peruanas são determinadas pelas mesmas leis físicas invioláveis de toda aquela zona.56

Esse geografismo arbitrário preside a toda a construção de vários de seus ensaios, peculiares a um tempo em que, no Brasil, aos engenheiros coubera a tarefa de abrir caminhos à Geografia, em seus primeiros passos.

Onde esse geografismo acentua e endurece os seus traços, entretanto, é quando toca ao determinismo climático, uma das teses prediletas da ideologia do colonialismo. Euclides acha que determinadas áreas do globo, por suas condições de clima, estão fechadas à aristocracia dos povos.57

E o fator clima está atrás, evidentemente, de uma de suas mais perigosas generalizações, um daqueles esquemas cuja simetria ele apreciava e que apenas escondem a falsidade:

Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma - tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte - Capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da Corte remota.58

Explica adiante:

E que o filho do Norte não tinha um meio físico, que o blindasse de igual soma de energias.59

Antes, esposara, a rigor, a tese de Bulde, que também influíra em Sílvio Romero, a respeito da ação climática.60 Estava abrindo caminho, no seu ingênuo geografismo caboclo à larga estrada em que, hoje, o imperialismo faz transitar, perfeitamente lubrificada, essa chantagem de vulgarizadores conscientes e inconscientes que se chama geopolítica.


INTUIÇÕES


Mas há nele, sem a menor dúvida, em todos os momentos, em todas as páginas, intuições lampejantes, acertos profundos, visões exatas das coisas e dos homens. Nos ensaios em que pretende doutrinar sobre o mundo, problemas de política internacional por exemplo, expansão de povos, competição de povos etc. - a Alemanha do Kaiser, a Rússia dos czares, o Japão dos militaristas em ascensão, a América de Teddy Roosevelt, a Inglaterra de Curzon, toda a ebulição imperialista do início do século ou em que se comporta como cartógrafo, traçando, ao sabor dos mapas, longas ferrovias cortando o continente - não está, evidentemente, o melhor Euclides. Fala muito do que não sabe, ou daquilo em que a armadura da cultura livresca o esmaga, quando cede à ideologia do colonialismo. Quando depõe sobre o que conhece de fato, sobre o que viu, é outro. Mas, ainda em páginas carregadas de "espírito científico" muito suspeito, tem intuições geniais. E o seu saldo, e não é pequeno.

Distingue bem a importância de Diderot entre os enciclopedistas.61 Combate os que persistem em esperar tudo, no Brasil, das artificiosas e estéreis combinações políticas, olvidando que ao revés de causas elas são meros efeitos dos estados sociais.62

Compreende que:

a tarefa dos futuros legisladores será mais social do que política e inçada de dificuldades, talvez insuperáveis.63

Entende que foi com Marx que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.64

Acusa o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.65

Distingue, porque o assiste falar, a fragilidade intelectual de Ferrero.66 Glorifica objetivamente a Machado de Assis, situando a sua importância em nosso meio.67Vê com justeza a paisagem pobre da Amazônia, não vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio à ponta do Munduba, e sente que ela é:

uma construção estupenda a que falta toda a decoração interior.68

Verifica a férrea campanha do seringueiro que, numa afirmativa crescente da vontade, vai estirando de rio, retramada com os infinitos fios dos igarapés, a rede aprisionadora, de malhas cada vez menores e mais numerosas, que lhe entregará em breve a terra dominada.69

Conhece bem o caráter daquela conquista, feita por uma sociedade nascente e titubeante.70

Compreende as razões do nativismo, ainda em terras de colonização espanhola.71 Analisa o conselheiro, friamente, sabendo que

é inimigo da República não porque lhe explorem a imaginação mórbida e extravagante de grande transviado, mas porque o encalçam o fanatismo e o erro.72

Entende claramente, que, em Canudos, trata-se dos

restos de uma sociedade velha de retardatários tendo como capital a cidade de taipa dos jagunços.73

Acusa, nos sertões, a presença de

um feudalismo achamboado [que transmuda] em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos.74

Vê a origem desse "feudalismo tacanho" nas largas concessões de sesmarias.75 Mostra, na zona conflagrada, os vaqueiros como "servos submissos" 76. E, pois, exato no diagnóstico social da mazela extensa que esteriliza o meio nordestino.

E por isso, e não pelas suas incompreensões ou pela sua aceitação passiva de uma ciência interessada, que merece a gratidão dos brasileiros e os juízos laudatórios que sua obra tem recebido. Sílvio Rabelo, seu biógrafo mais exato, pode escrever, com justiça:

O seu brasileirismo, o seu continentalismo, o seu socialismo não foram mais do que um sinal de sua identificação com os problemas, as realizações e os interesses do seu tempo: de solidariedade com os homens, as inquietações e as vicissitudes de todos os tempos.77

E Gilberto Freyre, cujo perfil de Euclides é uma de suas páginas excelentes, pode dizer, com acerto:

Mas para o redimir dos erros de técnica, havia em Euclides da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais. O Euclides que descobrira na paisagem e no homem dos sertões valores para além do certo e do errado da gramática da ciência. 78

Acrescentando:

Da História, como geografia, ele teve a visão mais larga, que é a social, a humana. Seu mestre Carlyle não o afastou do amor fraternal dos homens simplesmente homens, para O tornar um devoto exagerado dos heróis. Nos heróicos jagunços ele nunca deixou de sentir homens; em Antônio Conselheiro, não deixou de ver o brasileiro nem de sentir o irmão. Nos documentos que estudou, que interpretou, que esclareceu, foi sempre O que interessou mais profundamente: a nota humana, a expressão social, a significação brasileira.79

Mais, sem dúvida, a significação brasileira. Euclides, em vários episódios, manifestou as suas apreensões sobre a resistência da nossa cultura, dos valores de nosso povo, ante as ameaças que via surgir de todos os lados, naquele avanço singular do imperialismo, que percebeu, embora não lhe distinguisse a essência. Escalpelou o que julgava apatia de nossa parte:

Ao patriotismo diferenciado alia-se, pior, o cosmopolitismo - essa espécie de regime colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo.80

Pecado de que ele não ficou isento, como se viu. Ia mais além, entretanto:

Parafraseando, diríamos: os nossos melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores da terra, os que engenharam as melhores leis e as cumpriram, os homens de energia ativa e de coração, que definiram com mais brilho a nossa robustez e o nosso espírito - todos sentiram, pensaram e agiram principalmente como brasileiros. 81

Glória de que não ficou isento, por outro lado, pois quando pensou como brasileiro sempre teve as suas lampejantes intuições, os seus rasgos de objetividade, a sua grandeza realmente profética. Na academia, chega a acusar:

A nossa gente, que bem ou mal ia seguindo com os seus caracteres mais ou menos fixos, entrou de golpe, num suntuoso parasitismo. Começamos a aprender de cor a civilização.82

Ora aprender de cor a civilização não era apenas copiar costumes, legislação, normas de vida - era copiar também a sua ideologia, aquilo que justificava a nossa subalternidade.


O ESTILO


Desde o seu aparecimento, com Os sertões, Euclides da Cunha foi criticado particularmente em seu estilo. Demais, começava a despertar um interesse ainda mais vivo daquilo que já existia — e existia antes dele — pela forma suntuosa, sonora, ornada. Sumariando um período do nosso desenvolvimento literário, por isso mesmo, Lúcia Miguel Pereira assinala o problema criado com o irrompimento daquela prosa violenta:

Afeiçoando-se à simplicidade das cenas que evocava, tirando grande efeito dos dialetos populares, o regionalismo buscou, de início - embora nem sempre o conseguisse - uma certa ingenuidade de estilo. Mas no princípio do século, sobreveio um acontecimento que o modificaria: a publicação de Os sertões. A prosa hirsuta, grandiosa e solene de Euclides da Cunha impressionou - porque era de fato impressionante - muitos espíritos, e pareceu sobretudo particularmente sedutora a alguns escritores que, sob aspectos diversos, buscavam também o homem e a terra do Brasil agreste.53

Há, possivelmente, algum exagero nessa influência atribuída ao estilo de Euclides, mas tal influência existiu, sem a menor dúvida. Um rápido, sumário e distraído exame da prosa brasileira do tempo, os primeiros anos do século XX, prova, entretanto, que Euclides não foi o único a adotar aquela forma torturada, nem mesmo o iniciador dela. No mesmo ano em que aparece Os sertões, Graça Aranha estréia com Canaã. Há diversidades, evidentemente, entre um e outro - mas há, também, a mesma fascinação pela sonoridade. Pouco depois, Domingos Olímpio publica Luzia Homem, livro regionalista, em que embora atenuada, está presente a preocupação da música vocabular. Nos dois casos, com uma agravante: tratava-se de ficção, e os diálogos de um e outro livro, por isso mesmo, parecem discursos acadêmicos.

Ainda os que ouviram a leitura dos originais de Euclides, sentiram, embora de forma diversa, os efeitos daquele estilo imponente, daquela solenidade formal levada aos extremos limites. Entre estes, Teodoro Sampaio. Conta Silvio Rabelo:

Entretanto, não passara despercebida ao amigo complacente a tendência do escritor para o emprego de termos raros e mesmos desusados, que ele chamava calhaus no meio de uma corrente harmoniosa.

Ao que Euclides contestava sem se zangar:

Por velho ou esquecido, não perde para mim a força de expressão que eu procuro no vocábulo. Que me importa, a mim, que o leitor estaque na leitura corrente, se a expressão que lhe dou com esse termo esquecido é a mais verdadeira, a mais nítida, e, em verdade, a única que eu lhe queria dar?54

Roquette Pinto, nesse ponto, acompanha a opinião de Teodoro Sampaio:

Muitos leitores têm-se diante do encanto do "estilo" de Euclides da Cunha. Não é por aí, seguramente, que eu mais o admiro. E, de certo, "estilo" pessoal, que recorda, como disse Araripe, algo das nossas cachoeiras, impetuosas, cheias de força e, ao mesmo tempo, envoltas em delicadas irisações, graciosamente disfarçadas na gaze fina do nevoeiro que o vento esgarça. Percebe-se, naquele estilo, a influência da raça sonhadora, tocada do romantismo, que tanto tem pesado ás nossas gerações ativas... No entanto, penetrando profundamente na obra de Euclides da Cunha, vê-se que, ali, a forma vale muito menos do que o conceito. Os sertões é o grande livro do Brasil porque ele soube, ali, indicar á elite dos seus compatriotas, com a verdade de uma fórmula imponente, as feições mais características do pais. E certo, porém, que outro qualquer, no lugar de Euclides da Cunha, não teria sido escutado, mesmo quando houvesse posto na obra igual espírito científico. Para ser ouvido, é preciso falar de certo modo... Foi o que aconteceu em Os sertões, escrito para a alma ardente de um povo inquieto. Dai o encantamento. Era novo - porque não era clássico; mas agradava porque as verdades científicas ali estavam apresentadas com desejado brilho romântico.55

Com Roquette Pinto, entramos na análise objetiva do problema do estilo euclidiano, cumprindo notar, em primeiro lugar, que não houve um segundo Fuclides. Imitada, embora, aquela prosa - na realidade inimitável - reduzia-se a pouco. Os sub-Euclides que tivemos descambaram para o ridículo. Roquette Pinto levanta, de maneira apropriada mostrando-se refratário ao estilo pomposo - a idéia de qual estilo facilitou a penetração daquilo que era essencial no livro, a parte conceitual, o conteúdo. Verifica a verdade de que aquele conteúdo exigia uma forma apropriada, para chegar a um povo amodornado na aceitação passiva. Era preciso acudi-lo, com uma protofonia ruidosa, a seu gosto, despertando-o para a música profunda do que vinha depois, e isto é que era importante. Euclides da Cunha teve, assim, a intuição de oferecer aquilo que a nossa gente não podia esperar, mas da forma que ela apreciava.

Alberto Rangel, o mais destacado dos sub-Euclides, mas aqui falando como apreciador de seu modelo, distinguiu também alguns dos aspectos fundamentais da forma euclidiana:

O vocábulo — [escreveu ele] , resultado de uma escolha, é ipso facto o elemento identificador, a manifestação de uma maneira, no processo individual da forma. Participa do feitio do escritor, entrando pelo caráter da preferência, no facies peculiar a cada temperamento e a cada estilo. Não é somente um material, é um arranjo e um sistema. O desuso de palavras, reconhecido a todo momento numa língua, é a confissão de sua morte lenta e por inanição. E a árvore que seca, reduzida ao esqueleto do tronco; é o lago que se evapora, ficando a vasa empedrada no fundo. E não é o português de uma riqueza tal, que assim se possa ir-lhe desperdiçando, por imprestável e velho, o patrimônio. Enriquecer um idioma é também não lhe deixarem esfriar os sinais componentes, ser vindo-se da multiplicidade dos seus elementos constitutivos, ressurgidos a cada passo. A digna aspiração das línguas não é criar, mas renovar-se, fornecendo-se de meios, na utilização artística da totalidade de seus recursos gráficos e verbais. O arcaísmo deve ser portanto uma exceção, uma anquilose fortuita e inexplicável nos órgãos particulares da comunicação. Euclides compreendeu-o muito bem. Foi mais longe, e, em sentido contrário, acariciou o neologismo imposto pelas condições da vida moderna, e amou os brasileirismos, soprados na exigência da vida sertaneja; não se espantando na adoção das raízes ou desinências tupis, cujas derivações vivificam, desiguando, através dos tempos, tantas expressões nossas, domésticas ou mateiras, indizíveis pelo rol clássico de Morais ou de Vieira.56

A prosa euclidiana está por ser estudada - e já é tempo. Convém verificar, desde logo, a procedência das considerações de Alberto Rangel, não só naquilo em que mostra a unidade que existe entre o estilo e o autor, um velho tema, batido por todos os Acácios da critica formal, verdade absoluta, indiscutível - mas naquilo que afeta dois pontos. O primeiro, a busca da expressão popular, que foi, em Euclides, uma preocupação constante.87 Ele sabia, reconhecia e aceitava que o povo é quem faz a língua. Inúmeras vezes colheu formas coloquiais, nomes, expressões, guardando-as para emprego futuro, incorporando-as ao seu vocabulário. Foi um traço, e não dos insignificantes. Em segundo lugar, o problema dos arcaísmos. Talvez não seja o caso de defendê-los como Rangel, que exige a mobilização de todo o vocabulário histórico, de modo que nada se perca com a passagem dos tempos. Aqui a consideração é outra: nos grupos sociais estratificados, de que o grupo sertanejo se aproximou tanto, constituindo quase um modelo, a conservação atinge o idioma. O homem do interior conserva as expressões desusadas, e os vocábulos, com a significação originária, e faz disso emprego corrente. Sua vida em redoma permite essa aparente anomalia. E de supor que Euclides tenha atendido, com uma sensibilidade aguçada, esse hábito da gente que pintou e com a qual conviveu. Desse modo, muito do que nos choca, pareceria talvez linguagem comum ao sertanejo.

A propósito do estilo em Euclides, porém, quem teve uma visão também penetrante foi Gilberto Freyre. Começa por distinguir o falso naquela prosa, e particularmente o falso da eloqüência, que é falso pretensamente quintessenciado:

Nem o poeta, nem o profeta, nem o artista me parece que turvam n' Os sertões - ou noutro qualquer dos grandes ensaios de Euclides da Cunha - as qualidades essenciais de escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900 que ele foi: escritor fortalecido pelo traquejo científico, enriquecido pela cultura sociológica, aguçado pela especialização geográfica. Aquelas qualidades científicas, quem às vezes as diminui no autor d'Os sertões, comprometendo-as na sua essência, é o orador perdido de amor - amor físico - pela palavra simplesmente bonita ou rara: o orador que a formação científica de Euclides da Cunha não conseguiu esmagar no grande sensual das frases sonoras, deslumbrado desde os dias de colégio, desde o tempo de menino criado em fazenda - quando, informa o Sr. Elói Pontes, discursava aos bois no fim das tardes quietas do Rio de Janeiro - pelo efeito das frases, das palavras, dos polissílabos, primeiro sobre os ouvidos, depois sobre os olhos pervertidos em ouvidos. Daí a exagerada sensualidade verbal, a ênfase anticientífica e também antiartística em que ás vezes se empasta sua palavra nem sempre a serviço fiel dos seus olhos: traindo-o ás vezes para seguir aos ouvidos ou a imaginação de adolescente.88

Mas encontra, e pela primeira vez entre nós, com uma agudeza singular, aquilo que era característico na forma euclidiana, a tendência ao monumentalismo que quase nunca o abandona.89

Definindo-a, nitidamente:

Toda a obra de Euclides está cheia de flagrantes de atitudes heróicas oferecidos pelos homens e até pelos animais e pelas árvores nos seus momentos de resistência, de dor, de sacrifício, de fome. Flagrantes surpreendidos pelo olhar arregalado do estilista mais dominado pelo sentido escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil e talvez em língua portuguesa.90

Repetindo:

Nunca porém sem relevo. Sempre impressionantes e quase sempre vigoroso — de um vigor novo na língua: um vigor escultural.98

E até a respeito de um detalhe, de um friso:

Há evidentemente nas páginas comovidas de Euclides sobre Anchieta o desejo de "fixar em bronze" - sempre o artista a querer pôr a estatuária simplificadora a serviço das complexidades da história ou da biografia.92

Esse traço escultórico, realmente, é o que tem a prosa imponente de Euclides de inconfundível, é o seu próprio segredo.


BALANÇO


No inevitável balanço da obra euclidiana, tão distante da simetria, do rigor, dos paralelismos rígidos de seu homônimo grego, mestre de uma ciência que ele tanto freqüentou e que foi um dos segredos da escultura clássica, a coordenada negativa de maior valor absoluto foi, certamente, a do preconceito de raça, que esposou. Não tendo sido possível exculpá-lo, várias atenuantes foram alinhadas. A primeira, e sem dúvida aquela que encontra base mais sólida, foi a de ter sido aquela a ciência de seu tempo, e no Brasil, servindo a uma ideologia caracterizada, a do colonialismo, numa fase em que dominava o País, inteiramente, uma classe a que tal ideologia servia integralmente e que, por isso mesmo, procurava, em tudo e por tudo, assemelhar a nossa vitrina litorânea, inclusive a cultural e literária, ao modelo europeu. Outra atenuante, também digna de considerar-se, a de suas imensas e claras qualidades, face a uma deficiência que desaparecia no conjunto.

E o caminho que segue Gilberto Freyre:

Noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais para qualquer escritor menos vigoroso.93

E, tocando na ferida:

Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não foi absorvente. Não o afastou de todo da consideração e da analise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia e de vida já mortas na Europa; traços aparentemente cacogênicos mas, na realidade, de patologia social, que o isolamento de populações, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral, conservaria até os nosso5 dias. Aqueles fazendeiros de sertão que o escritor conheceu a usufruírem "parasitariamente as rendas de terras dilatadas, sem divisas fixas", eram bem o prolongamento, no espaço e no tempo, dos sesmeiros da Colônia. Uns e outros senhores de escravos ou de semi-escravos " perdidos nos arrastadores e mucambos". Semi-escravos, os dos sertões, "cuidando a vida inteira, fielmente, os rebanhos que lhes não pertencem". Aliás, é possível que o movimento messiânico de Antônio Conselheiro tenha tido alguma coisa da revolta de oprimidos, entrevista apenas por Euclides. Foi assim que Canudos ficou para a opinião européia mais aguçada no diagnóstico de revoluções exóticas: como revolta de classe oprimida. A resenha do Hacherte, de Paris, para o ano de 1897, pode ser considerada típica daquele diagnóstico quando faz do Conselheiro - um dos raros sul-americanos que alcançaram então fama mundial - curiosa figura de profeta que pregava le communisme eri même temps que le rétablissement de la monarchie...94

Quem colocou nos devidos termos, entretanto, a atenuante que caberia a Euclides da Cunha, aceitando os prejuízos de teorias antinacionais, foi Roquette Pinto:

Para não repetir, basta recordar que ele, tendo feito um processo monumental ao cruzamento, conclui que a mistura de raças é um mal. Depois, acentua que, em Canudos, o cruzamento tinha atingido ao máximo. E, adiante, mostra que os mestiços, ao invés de degenerados e pusilânimes trapos humanos desprezíveis, que a teoria profetizava, eram gente que se podia comparar aos heróis de Homero (Tróia sertaneja...); eram "titãs"; eram "antes de tudo, fortes"; eram dedicados, sóbrios, resistentes; eram honestos ao ponto de entregar toda a descendência de uma novilha desgarrada no seu campo, ao cabo de muitos anos, ao dono verdadeiro de quem fugira a rês... Assim como fez Euclides da Cunha, consinto, sem protesto, que falem mal de nossos mestiços. Mas... como ele fez; exponham a "teoria" predileta, contrária ao cruzamento, e depois narrem, honestamente, o que a "prática" tiver demonstrado.. .95

A um Euclides amador de teorias originadas de uma ideologia antinacional, a do colonialismo, Roquette Pinto opunha, assim, o Euclides formidável dos depoimentos exaustivos, dos testemunhos concludentes, da prática honesta. E aí está, sem a menor dúvida, a sua atenuante fundamental. Vendo o drama de uma gente cuja culpa estava ancorada num regime feudal, a que vivia jungida há séculos, e que apenas se rebelava para viver, e nem sendo o primeiro no protesto, levantara um libelo grandioso.96 Modelara-o numa forma torturada, capaz de fascinar os seus contemporâneos, na música que os ouvidos brasileiros estavam acostumados a entender. Explicara-o, a seu modo, como um choque de culturas, deixando entrever, entretanto, a verdade essencial, o motivo recôndito, aquilo que de longe haviam sentido estrangeiros, e que o sociólogo patrício coloca atravessado como um dubitativo talvez. Não - Canudos foi uma rebelião camponesa, foi uma luta de classe, de oprimidos contra opressores. Os opressores, entretanto não eram aqueles soldados que sitiaram e expugnaram o formidável reduto sertanejos também, brasileiros também.

Euclides da Cunha tinha estranhos pressentimentos. Em carta a Alberto Rangel, escreveria, certa vez:

Tenho a crença largamente metafísica de que a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior a realizar-se. E eu tenho tanto que escrever ainda...

Tinha, sem dúvida, escrevendo, que rever conceitos. Conhecera outra forma de escravidão, e também de luta, na Amazônia. As páginas que deixou de Um paraíso perdido não têm já aqueles conceitos de Os sertões ou dos ensaios de Contrastes e confrontos. E até são, do ponto de vista de estilo, muito mais límpidas, com a clareza que se convizinha com a simplicidade, embora dentro de sua forma pessoal, inconfundível, torturada. Mas já ao avizinhar-se do instante trágico em que pereceu, doente, sentindo-se vencido, escreve, num desalento:

Já dei o que tinha que dar.. .97

Sentiu a sua importância, a sua força de brasileirismo, o seu cerne nacional, sob as roupagens das estranhas teorias em que se abeberou, Roquette Pinto, quando escreveu as linhas de admiração enorme:

E quando o desânimo te infiltrar o coração, procura Euclides; ele te mostrará, com verdade e fulgor, o mundo encantador de que és dono. E tu, meu irmão, como o Fausto de lenda medieval, erguerás de novo o grito da esperança: - Espírito sublime! Permitiste que eu lesse no seio profundo da minha terra, como no peito de um amigo; revelaste as forças secretas da minha própria existência.

Porque a Euclides da Cunha caberia, com propriedade, aquela definição de grandeza que ele próprio escreveu:

O que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com as forças infinitas da humanidade.99



NOTAS


1 "Daí talvez, o poder explicar-se muito do seu desajustamento às condições normais da vida, da sua vida doméstica, e da sua vida profissional que quase absorvia ou abafava aquela. E também a sua instabilidade, as suas vacilações, as suas incoerências, a sua tristeza, o seu sentimento de desamparo, o seu 'orgulho silencioso'." (SÍLVIO RABELO, Euclides da Cunha. RJ, 1948 p. 8). "O que ele tinha de caboclo os cabelos duros e corridos, os malares salientes e, sobretudo, o temperamento um tanto agreste e esquivo vinha dessa avó que descendia da gente da terra sertanejos dos antigos currais baianos." (Idem, p. 19)

2 "Em todo caso, àqueles homens de formação extranacional, é que estaria reservada a missão de modelar o Brasil, durante quase um século, segundo a filosofia política que então corria o mundo e não segundo as conveniências de uma sociedade de costumes patriarcais. ainda sob a dieta de uma economia privativa e sem consciência de sua unidade" (Idem, p. 33). "Se a Câmara e o Senado trouxeram à Capital os agentes da política estadual, as novas empresas, as companhias de seguros e as sociedades anônimas trouxeram uma multidão de pressurosos por compensar os prejuízos que se seguiram ao desmantelamento da velha economia escravocrata" (Idem, p. 66). "Um escritor desse porte não poderia ter surgido aqui senão depois de 70, ou mesmo de 89; só poderia aparecer depois da cristalização de certos elementos da nossa vida social. As belezas do grande livro, e até os seus defeitos, nasceram de fatores que condicionaram a vida mental das últimas gerações do Império. Foi o livro manifestação natural; surgiu, livremente a seu tempo, como a árvore que brota de uma semente humilde, quando o solo consente, sem hora fixa nem destino, no meio da mata, sem outros cuidados além dos que lhe dão os raios de sol, a água e o ar" (E. ROQUETTE PINTO. Ensaios brasilianos. SP, 1940, p. 136).

3 Esses lavradores sedentários, mesmo que fossem postos em liberdade, não retornariam ás condições de vida do selvagem porque só sabiam ganhar o próprio pão lavrando a terra. Conseqüentemente, quem dominasse a terra tinha-os seguros na mão, no sentido de que podia obrigá-los a entregar, em troca do direito de lavrar um trato de terra, parte do produto que obtinham com seu próprio esforço. Esta foi a base real em que assentou o feudalismo, onde quer que se tenha estabelecido na Europa como na Ásia. No Brasil, o feudalismo tomou a forma específica de latifúndio, tal como este chegou à década dos 30, quando tomou corpo o nosso atual processo de industrialização" (INÁCIO RANGEL. Introdução ao estudo do desenvolvimento econômico brasileiro. Salvador, 1957).

4 "Sendo um estabelecimento gratuito, acorriam à Escola Militar rapazes de todas as condições sociais, inclusive os das classes mais humildes que não possuíam recursos para custear os seus estudos. Mas, ao lado deles, freqüentavam o curso militar os filhos de personalidades eminentes - titulares e políticos nas boas graças da Coroa. E eram exatamente esses privilegiados que depressa galgavam os postos superiores do currículo" (Sílvio RABELO. Op. cit., p. 52). "Não se tem dado, a meu ver, o relevo devido a esse fato capital da nossa História: a identificação do Exército com a classe média. Se é verdade que entre nós a classe média não surge com a estruturação econômica robusta, que lhe daria tanta influência no destino de outras sociedades, é também certo que essa influência surge compensada pela concentração de força política, que lhe seria proporcionada pelo surgimento de um verdadeiro poder novo: o poder militar.

Foi a partir da Guerra do Paraguai que o Exército ganhou, entre nós a estabilidade e coesão interna, que dele fariam, daí por diante, o ponto de maior resistência do nosso organismo político. A monarquia agrária, impregnada de civilismo, não quis ou não soube captar a nova força, para a qual também não contribuíram os filhos da aristocracia produtora de algodão, açúcar e café.

Na classe média nascente é que o Exército vai escolher os seus oficiais, alguns vindos de soldados, outros preparados nesse centro de estudo da classe média, que seria, por oposição às faculdades jurídicas da aristocracia agrária, desde 1874, a Escola Militar" (SANTIAGO DANTAS. Dois momentos de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1949, p. t8).

5 "Mas antepõe-se um obstáculo grave: a legião inumerável de engenheiros desempregados, que entope as escadas das secretarias. Não imaginas o que eu vi..... Vê se concebes, de momento, como melhor da tua fantasia, o quadro de uma espécie de 'Encilhamento da Miséria'. Há em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes dos ministros uma espiral de Dante" (Carta de Euclides da Cunha a Coelho Neto, de 22 de abril de 1904. ln FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. Euclides da Cunha a seus amigos. SP, 1938, p. 121).

6 "Euclides, durante os muitos anos em que vivera, de déu em déu, como engenheiro das obras do Estado de São Paulo, nunca chegou a possuir residência confortável: nem móveis adequados, nem serviço de mesa suficiente, nem roupa abundante na sua 'tenda de árabe'." (SILVIO RABELO. Op. cit., p. 220). De referências a viagens a nomadismo, está cheia a correspondência de Euclides.

7 "Aceito com verdadeira ufania, na minha rude mão de engenheiro, a sua mão fidalga e imaculada. Somos dois homens igualmente conscientes dos princípios que adotam; e embora estes nos separem, ligamo-nos num plano mais alto: o mesmo amor à nossa terra" (Carta a Afonso Celso, em 17 de setembro de 1903). "Um contraste: depois de responder a tua carta, irei responder outra do Príncipe D. Luís de Bragança!... Recebi-a há dias. Tem oito páginas maciças, escritas num português impecável e surpreendente. Não preciso dizer-te que ela não me fere a integridade republicana. D. Luís é sobretudo um escritor. Escreveu ao adversário político - ele mesmo o observa - obedecendo apenas às afinidades de temperamento. De qualquer modo é um compatriota que estuda as nossas coisas e que ama o Brasil. E como, ao mesmo tempo, parece-me ter lucidez bastante para compreender que a missão de sua dinastia está completamente acabada, irei responder-lhe desafogadamente" (Carta a Francisco Escobar, de lº de abril de 1908. Esta e a anterior em FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. Op. cit. p. 104 e 207).

8 No Diário que escreveu durante a viagem a Canudos e permanência ali, as referências são numerosas (EUCLIDES DA CUNHA, Canudos diário de uma expedição]. RJ, 1939): "Maiores milagres porém tem realizado o exército nacional e a fé republicana" (p. 5). "Ao mesmo tempo, porém, como um antídoto enérgico, um reagente infalível, alevanta-se, ao Norte, o nosso grande ideal - a República - profundamente consolador e forte, amparando vigorosamente os que cedem às mágoas, impelindo-as à linha reta nobilitadora do dever" (p. 6). "As cometas tocaram a marcha batida e um viva à República imenso e retumbante saiu de milhares de peitos" (p. 117). "E ao observá-la, vigorosa e impávida, o moço republicano, que era um oficial valente, jovial e bom, tirou o chapéu, agitando-o entusiasticamente e ergueu - febricitante - um viva fervoroso à República" (p. 118). "Os próprios soldados, que estavam a expirar, tentavam levantar entusiásticos vivas à República! Desenhou-se um quadro sobre-humano" (p. 130). "Termina dizendo que tenham confiança no valor, no patriotismo, na bravura e na dedicação do general-chefe, porque ele desafrontará a República ou morrerá por ela" (p. 149). "Está completo o sitio de Canudos. Viva a República" (p. 152). A vitória é infalível. A República é imortal" (p. 152). "A República sairá triunfante desta última prova" (p. 167).

9 "O deserto é para mim o Brasil, o verdadeiro Brasil ainda indene, ainda não ocupado por uma gente que não o merece. Mas não sei quando terei a ventura de ver-me outra vez na sociedade feliz dos rios, das constelações e das montanhas" (Carta a Alberto Rangel, de data desconhecida. In ALBERTO RANGEL. Rumos perspectivas. SP,1934, p. 79). "Mas penso, com tristeza, que eles te estejam apagando na alma a lembrança da nossa rude e formosíssima terra. Precisas reagir, contra a feitiçaria da Velha toda ataviada de primores - e que, afinal, não vale a nossa Pátria tão cheia de robusta e esplêndida virgindade" (Carta a Alberto Rangel, de 10 de dezembro de 1907. In FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. Op. cit., p. 199).

10 "Há quantos anos tenho eu passado indiferente, nas cidades ricas, pelas opulentas catedrais da cruz?... E assisti à missa numa saleta modesta, tendo aos cantos espingardas, cinturões e cantis e um selim suspenso no teto - servindo uma mesa tosca de altar e estando nove décimos dos crentes fora, na rua, ajoelhados. E ajoelhei-me quando todos se ajoelharam e bati, como todos, no peito, murmurando com os crentes o mea culpa consagrado. Não me apedrejeis, companheiros de impiedade; poupai-me, livres pensadores, iconoclastas ferozes! Violento e inamolgável na luta franca das idéias, firmemente abroquelado na única filosofia que merece tal nome, eu não menti às minhas crenças e não trai a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão..." (EUCLIDES DA CUNHA. Canudos [diário de uma expedição]. RJ, i939, p. 74). "Então... eu não creio em Deus?! Quem te disse isto? Puseste-me na mesma roda dos singulares infelizes, que usam do ateísmo como usam de gravatas - por chic, e para se darem ares de sábios ... Não. Rezo, sem palavras, no meu grande panteísmo, na perpétua adoração das coisas; e na minha miserabilíssima e falha ciência sei, positivamente, que há alguma coisa que eu não sei... Aí está neste bastardinho (e é a primeira vez, depois da aula primária, que o escrevo) a minha profissão de fé. Há de adivinhá-lo o teu valente coração. Se existir o teu céu, meu brilhante amigo para lá irei direitinho, num vôo, num largo vôo retilíneo desta alma aquilina e santa com assombro de não sei quantos rezadores, cujas asinhas de bacurau servem para os voejos, na penumbra do Purgatório. E serás o meu companheiro de jornada, porque é na nossa super-enervação e é no nosso idealismo sem fadigas, e é na nossa perpétua ânsia do belo, que eu adivinho e sinto o que não sei. Singularíssimo ateu (Carta a Coelho Neto, de 22 de novembro de 1903. In FRANCISCO VENANCIO FILHO. Op. cit, p. 112).

11 "Porque na realidade, o que houve foi a transfiguração de uma sociedade em que penetrava pela primeira vez o impulso tonificador da filosofia contemporânea. E esta, certo, não a vamos buscar nesse tão malsinado e incompreendido Positivismo, que ai está sem a influência que se lhe empresta imóvel, cristalizado na alma profundamente religiosa e incorruptível de Teixeira Mendes. As novas correntes, forças conjugadas de todos os princípios e de todas as escolas - do comtismo ortodoxo ao positivismo desafogado de Litré, das conclusões restritas de Darwin às generalizações ousadas de Spencer - o que nos trouxeram, de fato, não foram os seus princípios abstratos, ou leis incompreensíveis à grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século; e estas compondo-se com uma aspiração antiga e não encontrando entre nós arraigadas tradições monárquicas, removeram, naturalmente, sem ruído - no espaço de uma manhã - um trono que encontraram (EUCLIDES DA CUNHA. À margem da história. 4ª ed. Porto, 1926, p. 308). "Assim ela chegou até meados do último século - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva ... De feito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que "cada homem produz sempre mais do que consome, persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução" - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo"... " Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental: Socialização dos meios de produção e circulação; Posse individual somente dos objetos de uso" (EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. 6 ed. Porto, 1923, p. 237, 238 e 239).

12 Numa de suas últimas cartas, ao cunhado, de 6 de julho de 1909, Euclides escreveria: "Não tenho grandes recursos; continuo - felizmente - a ser o mesmo heróico pobretão de sempre"... (FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. Op. cit., p. 241). A Oliveira Lima, em carta de 13 de novembro de 1908, escreveria sobre a premência em manter a família: '1Como traçar-se a linha reta da vida com tantas mãozinhas a nos puxarem pelas abas do casaco?" (Idem, p. 222) Euclides não residiu muito tempo na mesma casa. Mudava-se freqüentemente. Não apenas de casa, mas de lugar, no seu nomadismo constante. Não teve biblioteca. Em carta a Vicente de Carvalho, pedindo auxilio para escrever o prefácio dos Poemas e canções do amigo, diz: 'Manda-me um exemplar da Rosa de amor. Duas terças partes dos meus livros estão ainda encaixotados, e no meio deles, ela. Não te zangues: lá estão também as melhores páginas da minha livraria errante, desde Shakespeare a Antero de Quental. Ao meu lado - enquanto não se fixar a minha posição no planeta - apenas os estúpidos livros profissionais (Idem, p. 214), Não tinha também arquivos: "As que lhe escreveram os seus amigos desapareceram na dispersão inevitável de sua vida e na perda irremediável de seu arquivo". É o que depõe Francisco Venâncio Filho, prefaciando o volume de sua correspondência (Idem, p. 50).

13 "Uma noite estava ele com um amigo à entrada de um Cassino. Enquanto o amigo, despreocupadamente, se entregava ao prazer da música e à contemplação dos pares que dançavam, Euclides caiu em profunda tristeza, ao ver, não o baile, mas a massa esfarrapada, sublimemente asquerosa da multidão que, imóvel ao relento, queda-se ante aquele espetáculo que era uma gargalhada horrível, irônica à sua fome, à sua nudez." (SILVIO RABELO. Op. cit., p. 43). 1'Dizia ele num dos seus artigos: impelido pelas tradições de sua terra, repleta de um majestoso rumor revolucionário, cheia da encantadora magia dos mais belos exemplos, desde o estoicismo heróico de Tiradentes à heróica abnegação de Nunes Machado - o republicano brasileiro deve ser forçosamente revolucionário" (Idem, p. 59). "Euclides chegava aos povoados, pedia pousada, procurando contatos com a gente simples - roceiros e trabalhadores que não sentiam nada mais do que o presente; nada mais do que as vozes obscuras do seu ser" (Idem p. 219). "Ele viu na resistência heróica dos jagunços do Conselheiro mais do que uma possível ameaça às instituições e á ordem estabelecida. Ele viu o direito de sobrevivência de uma população que estacionara por não ter tido condições favoráveis à assimilação dos valores culturais do litoral, em bases econômicas mais sólidas e sob a influência de idéias mais avançadas. Os sertões são, desse modo, um brado e brado quase inútil, contra o crime de um governo que abandonara a sua gente a uma natureza nem sempre propícia à vida e a uma organização social nem sempre compatível com a dignidade humana; e, mais do que isto, exterminara-a sem nenhuma condescendência" (Idem, p. 224). "Todavia, nunca a sua voz faltou como um protesto contra todas as modalidades de exploração do homem pelo homem. A miséria brasileira sempre despertou em Euclides as suas melhores reservas de humanidade. Defendendo os trabalhadores dos seringais, um pouco mais tarde, ele iria colocar-se ainda em defesa dos oprimidos contra os opressores" (Idem, p. 301). Sílvio Rabelo tem razão. Depois do libelo a favor dos sertanejos, em Os sertões, Euclides tentaria levantar novo libelo, no malogrado Um paraíso perdido, a favor dos seringueiros. Mencionaria o desbravador da selva amazônica como vítima da "tremenda anomalia" de ser "o homem que trabalha para escravizar-se", escalpelando "o patrão inflexível" que 'decreta, num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas." (FUCLIDES DA CUNHA. À margem da história. 4ª ed. Porto, 1923, p. 22 e 25). Para definir, com uma clareza impregnada de revolta: "Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fora inútil apontá-los. Dela ressalta impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra" (Idem, p. 26). Voltava, adiante, aos mesmos termos: "Repitamos: o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir; é o homem que trabalha para escravizar-se. Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de São Paulo, paternalmente assistido pelos nossos Poderes Públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para sempre insolvente" (Idem, p. 58). Mencionaria o papel do "deserto, feitor perpetuamente vigilante" que, trabalhando para o patrão, "guarda-lhe a escravatura numerosa" (Idem, p. 76). Mostraria o seringueiro entregue ao "grande isolamento da sua desventura", acrescentando: "Além disso, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para o entregar, manietado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem e este pecado é o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arranca-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua"... (Idem, p. 87). Contando, em trechos de imperecível beleza a festa de Aleluia nos seringais, brada contra a passividade dos escravizados: "E um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra... e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram" (Idem, p. 90). Gilberto Freyre, referindo-se ao "largo sentido humano, social e cultural, mas brasileiro", confirma: "Este último sentido nunca faltou ao engenheiro social animado de ideal político que foi Euclides da Cunha" (GILBERTO FREYRE. Perfil de Euclides e outros perfis. RJ, 1944, p. 62).

14 "E toda vez que se sente fraco diante de problemas complexos de interpretação de personalidades ou de tipos Euclides resvala no seu vício fatal: a oratória" (GILBERTO FREYRE. Op. cit., p.33).

15 "Euclides sabia tudo. Sabia o que eu sabia em letras e mais toda a sociologia e a economia e a política de um pensador enciclopédico. Era a realização do verdadeiro homem de letras reforçado por um sábio, que Fichte preconizara" (Testemunho de Domicio da Gama. In FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. Op. cit., p. 30).

16 0s ressentimentos provinham, particularmente, de sua posição face a Floriano, transparentes nos trabalhos: "O marechal de ferro" e a "Esfinge", ambos recolhidos ao volume Contrastes e confrontos.

17 "Há entretanto uma diferença decisiva entre a alpercata do vaqueiro nordestino e o sapato do operário carioca. Essa diferença se refere não ao calçado em si, nem à necessidade que visa satisfazer, mas aos modos de produção de um e outro: nosso vaqueiro produziu, ele próprio, o boi que lhe deu o couro para a alpercata, por ter sido ele quem o criou, matou-o e tirou-lhe o couro, salgando e curtindo este como pôde, para depois cortá-lo e fazer a alpercata. Inversamente, o sapato que usa o operário não foi feito por ele, mas comprado com o salário ganho, suponhamos, numa fábrica de tecidos. Os sapatos prontos para o uso, resultam: i) Do trabalho do vaqueiro que criou os bois; 2) Do trabalho do curtidor; 3) Do trabalho do ferroviário que transportou o couro curtido para a fábrica de calçados; 4) Do trabalho do fabricante de calçados; 5) Do trabalho do fabricante de equipamentos para o curtume, estrada de ferro e fábrica de calçados etc... Se examinarmos bem, quase não haverá ninguém neste pais que não tenha contribuído de algum modo para produzir aquele par de sapatos" (INÁCIO RANGEL. Op. cit., p. 23). Cumpriria acrescentar, para nosso uso, que o sapato é um produto do modo de produção capitalista, e a alpercata o é de um modo de produção feudal. Aí está a diferença essencial entre a vida no sertão e a vida no litoral, e não na distância e proximidade do oceano.

18 "Desde os primeiros tempos da Colônia, a região compreendida entre os vales do São Francisco e do Parnaíba haveria de ser uma expansão dos currais baianos. Pouco importava que ela estivesse, até certo ponto, sob a jurisdição dos Capitães-mores de Pernambuco. Ali, as seculares trilhas de gado venceram facilmente as convenções administrativas. Porque, atravessando os chapadões do Araripe e da Ibiapaba, os baianos se espalhariam pelas terras altas do sertão nordestino, até os campos onde cresce o 'capim mimoso', bom como nenhum para a engorda das reses" (SILVIO RABELO. Op. cit., p. 81). Deste modo, a agressividade dos instintos estaria em correspondência com as incertezas do meio físico e com o regime de trabalho nem sempre compensador; nem sempre favorável a uma distribuição eqüitativa da riqueza e a um equilíbrio mais estável dos grupos sociais. Por sua vez, a falta de comunicações com a faixa litorânea e com os núcleos de população mais densa tornava os sertanejos distantes, não apenas quanto ao espaço, mas distantes quanto à cultura" (Idem, p. 83). "O bárbaro e o místico que se encontravam no sertanejo eram, assim, uma conseqüência do desajustamento a condições de vida pouco propicias à normalidade: um derivativo e uma compensação ao mesmo tempo" (Idem, p. 84). "O sertanejo pagou com a vida o seu atraso; o litoral não pode compreender o fenômeno social que Euclides da Cunha pôs em foco, de um modo fulgurante. Só lhe faltou, ao grande criador, encontrar na mecânica o termo que a sua linda imagem sugere: a defasagem social. 'Canudos' e o 'Contestado' - muito diferentes do caso dos Muckers do Rio Grande - foram tradução do mesmo fenômeno, em regiões extremas do pais" (ROQUETE PINTO. Op. cit., p. 134). "Absorvidos os sertanejos nos instintos da conservação, bastam-lhe muitas vezes ao regalo do estômago: o palmito, o punhado de farinha, a banda do peixe, a canjica, o beiju, o gole de congonha, umas tucumãs, a carne do mocó, do guariba ou do lagarto. a cruzada dos abstêmios na fartura da Canaã bíblica" (ALBERTO RÂNGEL. Op. cit., p.30). "Mestres no tiro ao alvo, não lhes custa escorvar o bacamarte ou aperrar o rifle das vinganças. O banditismo é uma moléstia do sertão, mas é a hipertrofia da coragem, provocada e aproveitada pela conflagração permanente e depravante do litoral. O que é certo é que a terra vazou o homem, o homem bater-se-á pela terra. Soldados sem soldo, chamou-os Afonso Arinos" (Idem, p.30). "Não houve ainda congregação possível a esses elementos, fracos na sua falta de coesão social, a não ser a conformidade travada pelas tradições que não morrem, pelos descantes que se renovam, pelas tristezas que os abatem e pelas festas em que folgam. Têm eles a sensibilidade mal coordenada das crianças, a inteligência percuciente dos primitivos que descobriram o fogo e a domesticação do boi, do cavalo e do cão. Seus gênios são anônimos. A graça de suas respostas, a vivacidade das observações e descaídas sentimentais contrastam com o silêncio do macambúzio, as reservas do desconfiado" (Idem, p. 32).

19 O primeiro despacho de Euclides da Cunha para o jornal que o enviara a Canudos, em que revela outra face da questão política, a de que não havia reduto monarquista naquela tapera de fanáticos, tinha a data de 21 de agosto, e dizia: "O Coronel Carlos Teles confirmará amanhã, em carta ao Diário da Bahia, as suas declarações anteriores, afirmando o número reduzido de jagunços existentes em Canudos, que tem pouco mais de mil casas, e não quatro mil, como propalam. Garante que a expedição Moreira César venceria se não fosse morto o bravo coronel. Explica o grande número de mortos e feridos pelas posições admiráveis dos inimigos. Diz não acreditar que haja intuitos monárquicos entre os fanáticos" (EUCLIDES DA CUNHA. Canudos [diário de uma expedição]. Rio de Janeiro, 1939, p. 140). Em despacho de 22 de agosto, em que acrescenta maiores detalhes das declarações do Coronel Carlos Teles, constam, como palavras do chefe militar, que "não há fim restaurador nem influência de pessoa estranha nesse sentido; não há lá estrangeiro algum".

Teles acrescentaria, e isto consta do despacho: "Adulterar a verdade para encarecer Canudos é alarmar o espírito público, e a isto não me presto. Não vivo de reclamos, digo sempre o que se me afigura ser a verdade" (Idem, p. 143).

20 "Em alguns cortes da estrada pareceu-me distinguir nitidamente a transição entre os dois terrenos: a minha observação, porém, já de si mesma resumida aos breves horizontes de imperfeitissimos conhecimentos geológicos, fez-se em condições anormais na passagem rápida de um trem. Mudo cautelosamente de assunto." (EUCLIDES DÁ CUNHA. Canudos [diário de uma expedição. RJ, 1939, p. 54). "Um quadro absolutamente novo; uma flora inteiramente estranha e impressionadora, capaz de assombrar ao mais experimentado botânico. De um, sei eu, que ante ela faria prodígios. Eu, porém, perdi-me desastradamente no meio da multiplicidade das espécies e atravessando, supliciado como Tântalo, o dédalo das veredas estreitas, ignorante deslumbrado - nunca lamentei tanto a ausência de uma educação prática e sólida e nunca reconheci tanto a inutilidade das maravilhas teóricas com as quais nos iludimos nos tempos acadêmicos" (Idem, p. 59). "Recolhi um pouco de areia claríssima, destinada ao exame futuro de pessoa mais competente" (Idem, p. 68).

21 E. ROQUETTE PINTO. Op. cit., p. 135.

22 E. ROQUETTE PINTO. Op. cit., p. 138. O julgamento de Roquette Pinto sobre Os sertões é, aliás, eloqüente: "Percorro toda a nossa história literária e penso que Os sertões serão, no faturo, para o Brasil, o grande livro nacional; o que D. Quixote é para Espanha ou Os Lusíadas para Portugal; o livro em que a raça encontra a floração das suas qualidades, o espinheiral dos seus defeitos, tudo o que, em suma, é sombra ou luz na vida dos povos." (Idem, p.138).

23 GILBERTO FREYRE. Op. cit., p. 46.

* Ver página 97.

24EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. 6a ed. Porto, p. 41.

25Observação de Afrânio Peixoto. Citada de G. FREYRE. Op. cit., p. 35.

26São as 'generalizações violentas", a que se refere ainda Gilberto Freyre (op. cit., p. 34). Ou quando menciona: "Deixou-nos, apenas, sobre o assunto, alguns reparos críticos de rara lucidez, entre generalizações perigosamente enfáticas" (Idem, p. 59).

27E. ROQUETTE PINTO. Op. cit., p. 134.

28 As citações são de Canudos [diário de uma expedição, p. 12, 27, 95,100, 113, 114, 64. A última, cabeça do trecho antológico sobre o sertanejo, é o de Os sertões, p. 1l4, da 15ª ed. de 1940.

29 O trecho fundamental, em Os sertões, de condenação ao cruzamento, é o seguinte: "A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um desequilibra do. Foville, compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado" (EUCLJDIES DA CUNHA. Os sertões. 15 ed. Rio de Janeiro, 1940, p. io8).

 página seguinte, estes dois trechos: "E quando avulta - não são raros os casos - capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores." A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade. E a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio." (p. 109). Na página seguinte, a sua sentença é cortante: "... não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu..."

30EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 132, i6i, 213, 222 e 224, respectivamente.

31 EUCLIDES DA CUNHA. À margem da história. Op. cit., p. 55, 62,120 e 140, respectivamente.

32 EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e Confrontos. Op. cit., p. 190.

33 EUCLIDES DA CUNHA. À margem da história. Op. cit., p. 237.

34 Os dois perfis, nos ensaios "O marechal de ferro" e "A esfinge", encontram-se em Contrastes e confrontos.

35 EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 17.

36Idem, p. 19.

37F. VENÁNCIO FILHO. Op. cit., p. 42.

38EUCLIDE5 DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 190.

39SÍLVIO RABELO. Op. cit., p. 101.

40EUCLIDES DA CUNHA. Canudos (diário de uma expedição). Op. cit., p. 121.

41 EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 190.

42Idem, p. 218.

43Idem, p. i8o.

44Tdem, p. 182.

45 Idem, p. 187.

46Idem, p. 187.

47Idem, p. 163.

48ldem, p. 167.

49ldem, p. í68.

50 EUCLIDES DA CUNHA. Os sertões. Op. cit., p. 151.

51 Idem, p. 151.

52 Idem, p. 151.

53 Idem. p. 151.

54 Idem, p. 189.

55EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 107.

56ldem, p. 137.

57ldem, p. 96.

58EUCLIDES DA CUNHA. Os sertões. Op. cit., p. 8o.

59 Idem, p. 85.

60 "Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de um clima tropical. Esta exercita-o, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa marítima do Norte e em grande parte dos estados que lhe corresponde, até ao Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por ex., deprime e exaure. Modela organizações tolhiças um que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; inervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas (EUCLIDE5 DA CUNHA. Os sertões. Citado na página 78.)

61 EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 66

62 Idem, p. 186.

63Idem, p. 255.

64Idem, p. 237.

65ldem, p. 238.

66 "As conferências de Ferrero desiludiram-me. Sou um maravilhado diante de tudo (disse-o Veríssimo ultimamente), e a minha admiração não raro ultrapassa a realidade. Ferrero deixou-me a impressão de ser o Fregoli da história. Desapontou-me. E na noite em que, com uma seriedade adorável, declarou haver descoberto uma lei histórica (uma lei histórica! e não se apagaram as luzes do Palácio Monroe! o auditório não desmaiou!! o Governo não decretou o estado de sitio!!), entrei a desconfiar que ele não conhecia a significação científica dessa perigosa palavra - lei. Quem fará, um dia, a história da glorificação das mediocridades? (Carta a Domício da Gama, de 16 de novembro de1907. In FRANCISCO VENÃNCIO FILHO. Op. cit., p. 196). Euclides escreveu isso antes de Croce definir a desimportância de Ferrero. Mas acreditava na lei de Broca, e na da luta de raças de Gumplowicz...

67Carta a Regueira Costa, sem data. In FRANCISCO VENÁNCIO FILHO. Op. cit., p. 217. E Iam juízo sincero e exato sobre o romancista.

68 EUCLIDES DA CUNHA. Á margem da história. Op. cit., p. 6.

69 Idem, p. 119.

70 Idem, p. 118.

71 EUCLIDES DA CUNHA. Perus versus Bolívia. 2ª ed. RJ, 1939, p. 36: "O forasteiro mais achamboado e bronco fulminava-o com uma frase, que rompeu séculos, entre o espanto dos cronistas, concentrando a fórmula mais altaneira e pejorativa de um domínio: — Eres criolio, y basta..."

72EUCLIDES DA CUNHA. Canudos (diário de uma expedição). Op. cit., p. 24.

73Idem, p. 25.

74EUCLIDES DA CUNHA. Os sertões. Op. cit., p. 103.

75Idem, p. 104.

76Idem, p. 122.

77SILVIO RABELO. Op. cit., p. l0.

78GILBERTO FREYRE. Op. cit., p. 25.

79 Idem, p. 37.

80 EUCLIDES DA CUNHA. Contrastes e confrontos. Op. cit., p. 178.

81 Idem, p. 179.

82 Idem, p. 276.

83 LÚCIA MIGUEL PEREIRA. História da literatura brasileira. XII. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de Janeiro, 1957, p. 184.

84S1LVIO RABELO. Euclides da Cunha. RJ, 1948, p. 190.

85E. ROQUETTE PINTO. Ensaios brasilianos. SP, 1940, p. 136.

86 ALBERTO RANGEL. Op. cit., p. 97.

87 S1LVI0 RABELO. Op. cit., p. 11.

88 GILBERT0 FREIRE. Op. cit., p. 26.

89 ldem, p. 29.

90 ldem, p. 29.

91 Idem, p. 30.

92 Idem, p. 54.

93Idem, p. 36.

94Idem, p. 42. Há em Gilberto Freyre a tendência a exculpar totalmente Euclides da Cunha de sua posição em relação ao preconceito de raça. A esse respeito, suas razões são as seguintes: "Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre a formação social do Brasil, concede importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a extensão e a profundidade da influência da chamada "economia agrário-feudal" sobre a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário escravocrata na análise de nossa patologia social; e exalta a importância do processo biológico - a mistura de raças - como fator, ora de valorização, ora de deterioração regional e nacional." (...)"Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha a quem faltavam estudos rigorosamente especializados de antropologia física e cultural ainda mais que os de geologia, nos quais nos informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim e a Rodrigo Melo Franco de Andrade ter o autor d'Os sertões recebido forte auxilio técnico de Orvile Derby - impressionasse de forma particular o aspecto étnico, da geografia humana do Brasil. Nem que, nos seus ensaios, resvalasse como resvalou, em mais de uma página eloqüente, no pessimismo dos que descrêem da capacidade dos povos de meio sangue - ou de vários sangues - para se afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas de economia, de governo e de caráter nacional. Descrença baseada em fatalismo de raça. Em determinismo biológico. Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides da Cunha, o próprio Nina Rodrigues, com estudos especializados de antropologia (e cujo diagnóstico de psiquiatria do caso do Conselheiro, Euclides seguiu muito de perto>, não escapou a exageros etnocêntricos na análise e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos por largos anos, quase sem retificação, por vários discípulos do sábio maranhense; e retomados pelo Professor Oliveira Viana em obra erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já se esboçara, com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo Professor Roquette Pinto, no sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vitima de preconceitos cientificistas com aparência de verdades antropológicas. Tais conceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às vezes o próprio Sílvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias está cheia de contradições." (Idem, p. 40.) Continuando: "Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer teoria de superioridade de raça. O perfil que traça do sertanejo não é de um devoto absoluto de tal superioridade." (Idem, p. 41) Numa justificativa final: "E esse sentido social e altamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o da raça lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de algum dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos."(Idem, p. 44)

95E. ROQUETE PINTO. Op. cit., p. 134.

96"Antes de Os sertões, o mais veemente protesto contra as atrocidades cometidas pelas tropas vitoriosas da última expedição partira dos estudantes de Direito da Bahia. Em "Manifesto á nação" de 3 de novembro, declaravam os seus signatários que, tendo esperado em vão que "alguma voz se levantasse para vingar o direito, a lei e o futuro da República", comprometidos no massacre dos prisioneiros de Canudos, chamavam a si o dever de denunciar e reprovar "como aberração monstruosa" o procedimento das forças republicanas, ao afogar inutilmente em sangue os vencidos da campanha." (ln: SILVIO RABELO. Op. cit., p. 223.)

97Carta de Euclides da Cunha, de 5 de julho de 1909, ao seu cunhado Otaviano Vieira. lo. FRANCISCO VENANCIO FILHO. Op. cit., p. 240.

98Citado de FRANCISCO VENANCIO FILHO. Op. cit., p. 3.

99ldem, p. 3.


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