MESTIÇOS NO PAÍS DOS ESPELHOS E O QUE ELES
VIRAM LÁ
José Carlos Barreto
de Santana
Professor Titular da Universidade Estadual de feira de Santana
(UEFS)
Rua São Jorge, 63 - Bairro Eucaliptos
44070-7380 - Feira de Santana - Bahia - Brasil
E-mail: zecarlos@uefs.br
Doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolve
pesquisas sobre a história das ciências no Brasil entre os séculos XIX e XX. É autor
do livro Ciência e arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais, publicado pela
HUCITEC em 2001.
Resumo
Vivendo num contexto fortemente marcado pelos principios deterministas,
positivistas e evolucionistas, baseando-se em teorias antropológicas e autores iguais
ou muito próximos, partilhando os mesmos pressupostos das desigualdades raciais e
consequente inferioridade das raças não brancas e dos prejuizos da mestiçagem e
combatendo as teses sobre a uniformidade étnica presente ou futura da população
brasileira, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha interpretaram as doutrinas
importadas, modificando-as e adaptando-as às suas necessidades explicativas e
chegaram a diferentes conclusões sobre as populações mestiças do litoral e do
interior, chegando mesmo, no caso de Euclides da Cunha, através da sua análise do
sertanejo, a desnudar a fragilidade da fantasia teórica do triunfo inevitável da raça
branca.
[ABSTRACT]
Living in an intelectual environment strongly subjected to determinist,
positivist and evolutionist ideas supported by some antropological theories and
authors either similar or very close, sharing the same racial inequality
presuppositions concerning the inferiority of non-white races and the consequences
of racial mixture, and fighting against the tesis on present and future ethnical
uniformity of Brasilian population, Nina Rodrigues and Euclides da Cunha explained
the imported doctrines, modifying and making these doctrines suitable to their own
methodological necessities which make them reach different conclusions about
mestizos along the cost and in the inland. With regard to Euclides da Cunha, by
means of the analysis of the inland inhabitant, he unveils the fragility of the
theorical fantasy of the unavoidable triunph of white race.
INTRODUÇÃO
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, morreu a 22 de
setembro de 1897, poucos dias antes do final da Guerra de Canudos a 5 de
outubro do mesmo ano. No dia seguinte à queda do arraial uma comissão
desenterrou o cadáver do Conselheiro para que fosse devidamente
identificado e fotografado, após o que cortou-se-lhe a “cabeça tantas vezes
maldita”.
“Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa,
aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no
relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da
loucura ...” (Cunha, 1902/1987: p. 572).
O representante da ciência a que se referiu Euclides da Cunha (1866-1909) era o médico legista Nina Rodrigues (1862-1906) que recebeu em
Salvador aquele “(...) crânio de mestiço onde se associam caracteres
antropológicos de raças diferentes” (Rodrigues, 1901/1939: p. 131).
No Brasil do final do século XIX, marcado por um “cientificismo
difuso”, as teorias racias, emanadas da Europa, encontram em boa parte dos
intelectuais locais uma recepção calorosa, transformando-se num
instrumento para a interpretação ou construção de suas idéias de nação.
É proposito deste trabalho estabelecer algumas comparações sobre as
idéias de Nina Rodrigues e Euclides da Cunha a respeito da questão racial no
Brasil do final do século XIX, levantando os seus muitos pontos
convergentes e analisando as expressivas diferenças que marcaram as suas
conclusões sobre o “litoral” e o “sertão” e os seus mestiços.
ELEMENTOS FORMADORES
Ao lado dos princípios deterministas, positivistas e evolucionistas,
Euclides da Cunha e Nina Rodrigues partilhavam os pressupostos correntes
das desigualdades raciais e conseqüente inferioridade das raças não brancas
e dos prejuízos da mestiçagem.
A uniformidade étnica, presente ou futura, da população brasileira,
admitida por Sílvio Romero, encontrava em Nina Rodrigues e Euclides da
Cunha oposição franca.
Para Nina Rodrigues “só podemos falar de um povo brasileiro do ponto
de vista político. Do ponto de vista sociológico e antropológico, muito tempo
se passará antes de podermos considerar unificada a população do Brasil”
(Rodrigues, 1895/1939: p.153).
Já o engenheiro Euclides da Cunha sintetizou esta afirmação ao
considerar que “não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca.
Não há um tipo antropológico brasileiro” (Cunha, 1902/1985: p.158).
Analisando os três grupos étnicos cujo caldeamento influenciou a
gênese das raças mestiças do Brasil, o médico e o engenheiro viam no
elemento branco, representado pelos europeus aqui chegados, pelos
“brancos crioulos” não mesclados e pelos mestiços “(...)que por um
cruzamento unilateral com a raça branca conseguiram no fim de um certo
número de sangues voltar definitivamente a esta última raça” (Rodrigues,
1890/1939: p. 206), a “raça superior”, à qual caberia o papel de defesa da
civilização ariana, no que pese a sua situação de minoria e malgrado o
“complicado caldeamento” de onde emerge o português.
O indígena era, para Nina Rodrigues, representado pelo “brasílico-guarani selvagem que ainda vageia nas florestas (...) e pelos seus
descendentes civilizados, mas raros e só observados nos pontos vizinhos dos
recessos a que se têm refugiados os selvagens” (Rodrigues, 1894/1957: p.
84).
O indígena, “elemento autóctone”, que predominara numericamente
durante muito tempo, não teria se incorporado à população brasileira por
uma impossibilidade de civilização e cultura, mesmo em demorado contato
com a “raça branca”. “Tanto é verdade que no Brasil o índio extinguiu-se, ou
está em vias de extinção completa mas não civilizou-se” (Rodrigues,
1894/1957: p. 108-111). Embora aceitasse a condição de perfectibilidade da
“raça humana”, Nina Rodrigues entendia que o índio catequizado ou
“domesticado” não poderia ser considerado civilizado, mas sim um homem
degradado.
Já Euclides da Cunha entendia que “os nossos selvícolas (...) podem
ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa
terra” (Cunha, 1902/1985:142) , baseando a sua convicção sobre o
autoctonismo das raças americanas nos estudos de autores diversos, como
Wilhelm Lund e Frederick Hartt e principalmente na monografia de Trajano
de Moura - Do Homem Americano (ensaio de etnografia” de 1889.
Para Euclides da Cunha seria “quimérica” qualquer tentativa de elevar
o estado mental do “aborígene” às abstrações do monoteísmo. Apoiando-se
em Varnhagem, Euclides da Cunha atribuía mais aos cruzamentos
sucessivos que a verdadeiros extermínios a extinção do indígena em regiões
do país (Cunha, 1902/1985: p. 161).
Nina Rodrigues fundou a etnologia afro-brasileira delimitando um
objeto, o negro ou o africano e dedicou ao estudo da sua presença no Brasil
parte significativa dos seus trabalhos, nos quais pode-se identificar uma
manifesta simpatia pelos negros, a ponto de ter contra si a arrogância e a
violência de senhores acostumados a oprimir, a explorar e espancar os seres
humanos que se encontravam nas condições de seus escravos (Silveira,
1988: p. 181). Entretanto, esta admitida simpatia não deveria impedi-lo de
dar à questão étnica o tratamento da ciência “livre e imparcial”, que
proclamava a evidência da inferioridade das raças não-brancas, atribuindo
mesmo à presença da raça negra no Brasil um dos aspectos determinantes
da inferioridade industrial e técnica do país, sem que isto pudesse ser
confundido com a “revoltante exploração” realizada pelos escravistas
brasileiros contra os africanos (Rodrigues, 1933/1988: p.5).
Para Roberto Ventura (1991: p. 52), o enfoque adotado pelo médico
maranhense radicado na Bahia mostrava a compatibilidade entre a
consciência abolicionista e a etnologia racista, onde a defesa da abolição não
implicava na aceitação de igualdades étnicas.
Nina Rodrigues criticou o desprezo ao conhecimento dos povos negros
que tanto concorreram para a colonização do país e a mais completa
ignorância em que se vivia sobre tudo o que dizia respeito a eles. O médico
negava a tese do exclusivismo da origem banto dos negros que colonizaram
o Brasil, que, sendo já encontrada em Spix e Martius, era aceita e defendida
por João Ribeiro (História do Brasil, 1900), Sá Oliveira (Cranometria
comparada das espécies humanas na Bahia, sob o ponto de vista
evolucionista e médico legal, 1895) e Sílvio Romero (História da Literatura
Brasileira, 1888) (Rodrigues, 1933/1988).
Na sua forma evolucionista de ver a questão racial, Nina Rodrigues
hierarquizou os povos negros, defendendo a superioridade dos sudaneses
sobre os bantos, considerando que “(...) povos há no Sudão que atingiram a
uma fase de organização, grandeza e cultura que nem foi excedida, nem
talvez atingida pelos bantos” (Rodrigues, 1933/1988: p. 271). Mesmo a
mitologia “ewe-iorubana” foi classificada por Nina como das mais evoluídas e
passível de contribuir para a conversão dos afro-brasileiros ao catolicismo.
Contra o “exclusivismo banto” no Brasil, o etnólogo criou por sua vez
o “exclusivismo sudanês” na Bahia, que fez escola e resultou numa
predominância dos estudos da cultura iorubana e no completo esquecimento
das contribuições dos bantos.. O “exclusivismo sudanês” fez escola e só foi
superado após a metade do século XX, a partir dos textos de Luiz Vianna
Filho e Yeda Castro sobre a importância numérica e cultural dos bantos na
Bahia (Risério, 1988: p. 156).
Euclides da Cunha reconhecia em Nina Rodrigues o “investigador
tenaz” que realizou uma análise cuidadosa do negro, o “nosso eterno
desprotegido”. Sem se ater a qual ramo africano pertenceria o negro
transplantado para o Brasil, entendia o engenheiro que para cá ele teria
trazido “(...) osatributos preponderantes do homo after, filho das paragens
adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que quaisquer outras, se
faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força” (Cunha, 1902/1985: p.
142).
A MISCIGENAÇÃO
O autóctone indígena e os alienígenas negro e branco seriam as
matrizes responsáveis pelo caldeamento que produziria o “espetáculo da
miscigenação” (Schwarcz, 1993), convertendo o país num laboratório racial
onde todos seriam mestiços “(...) senão no sangue ao menos na alma” na
expressão de Sílvio Romero na sua “História da Literatura Brasileira (1888)“.
Nina Rodrigues tinha uma visão pessimista sobre a mestiçagem, que
considerava um elemento negativo no processo de formação da população
brasileira. Os defeitos da mestiçagem poderiam ser explicados através das
ciências naturais: “é verdade biológica bem conhecida que nos cruzamentos
de espécies diferentes o êxito é tanto menos favorável quanto mais
afastadas na hierarquia zoológicas estão entre si as espécies que se
cruzam”. No caso mais específico dos humanos, onde não se poderia
comprovar a existência de híbridos estéreis, “(...) certos cruzamentos dão
origem em todo caso a produtos morais e sociais, evidentemente inviáveis e
certamente híbridos” (Rodrigues, 1894/1957: p. 126-127).
Segundo Gilberto Freyre, os trabalhos de Nina foram referências para
Euclides da Cunha na elaboração de “Os Sertões” e teriam sido as
afirmações do médico sobre a inferioridade do negro e do mestiço que
desorientaram o engenheiro, inclinado inicialmente “(...)a um diagnóstico
mais sociológico do que étnico ou biológico da patologia da miscigenação
brasileira” (Freyre, 1987: p. 193).Talvez corrobore esta consideração de
Gilberto Freyre o trecho de “Os Sertões” em que pretendendo descrever a
figura do sertanejo, o autor decide fazê-lo sem método,
despretensiosamente, “evitando os garbosos neologismos etnológicos” sem
se enredar em “(...) fantasias psico-geométricas, que hoje se exageram num
quase materialismo filosófico, medindo o angulo facial, ou traçando a norma
verticalis dos jagunços”, recusando-se a embarcar nas “imaginosas linhas
dessa espécie de topografia psíquica” (Cunha, 1902/1985: p. 178).
Apoiando-se em Herbert Spencer (Essais cientifiques), Nina Rodrigues
provavelmente não hesitaria em assinar a seguinte passagem de “Os
Sertões” sobre a mestiçagem: “a mistura de raças mui diversas é, na
maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda
quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam
vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso
(...) de sorte que o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência
individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um
desequilibrado” (Cunha, 1902/1985: p.174).
Tanto para o médico quanto para o engenheiro, o produto do
cruzamento de indivíduos de “raça superior” com indivíduos de “raça
inferior” não traria em si nenhum aspecto positivo das “raças matrizes”,
assim o mestiço não teria a força física dos ascendentes selvagens nem a
capacidade intelectual dos antepassados civilizados.
Sílvio Romero, na sua “História da Literatura Brasileira (1888)”,
desenvolveu uma tese do branqueamento da “raça brasileira”, baseado nos
conceitos da “Seleção Natural” e supondo que enquanto o número de
brancos no Brasil tendia a aumentar, o número de índios e negros
apresentaria uma diminuição que apontava para o desaparecimento num
futuro não muito remoto, resultando em que o mestiço haveria de, mais
cedo ou mais tarde, haveria de se confundir com o branco.
Nina Rodrigues, advogando a inexistência, presente ou próxima, de
uma unidade étnica da população brasileira, criticou a tese de Sílvio Romero,
por não ser representativa de um Brasil real. Os próprios mestiços
careceriam de unidade antropológica: “realmente - e é este um ponto sobre
que convém insistir-se - não se deve crer que haja completa identidade da
população mestiça do país” (Rodrigues, 1890/1939: p.211).
Euclides da Cunha, acorde com Nina Rodrigues no que diz respeito à
unidade etnica, lembrava que aos três elementos étnicos essenciais haveria
de se juntar o meio físico diferenciador e ainda as condições históricas
adversas e favoráveis que sobre eles reagiriam, o que resultava num alto
grau de complexidade que impedia a aplicação das “leis antropológicas”
voltadas para a aplicação nos casos binários: “os elementos iniciais não se
resumem, não se unificam; desdobram-se; originam número igual de
subformações - substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em
uma mestiçagem embaralhada (...)” (Cunha, 1902/1985: p. 143).
Tanto para o engenheiro quanto para o médico, os três mais
característicos grupos mestiços seriam os dos mulatos (produto do
cruzamento de brancos com negros), mamelucos (produto do cruzamento
de índios com brancos) e cafuz(o)s (produto do cruzamento de negros com
índios). Cada um destes grupos poderia ser subdividido em pelo menos três
subgrupos, como por exemplo, no caso dos mulatos: “a) mulatos de
primeiro sangue, b) mulatos claros, de retorno à raça branca e que
ameaçam absorve-a de todo; c) mulatos escuros, cabras, produto do retorno
à raça negra, uns quase completamente confundidos com os negros crioulos,
outros de mais fácil distinção ainda” (Rodrigues, 1894/1957: p. 85).
Um quarto grupo a ser acrescentado aos três anteriores seria o dos
pardos, que apenas teoricamente deveriam ser o produto brasileiro por
excelência por convergirem para ele os cruzamentos sucessivos do mulato,
do mameluco, e do cafuz(o).
Mapeando a mestiçagem num Brasil dividido em 4 regiões, Nina
Rodrigues analisou os elementos preponderantes nesta processo,
encontrando a predominância de uma mestiçagem luso-africana ligeiramente
indígena entre o litoral do Norte da Bahia ao Maranhão, observando que aí o
indígena puro quase desapareceu de tudo, cogitando que num futuro muito
remoto os seus traços estariam completamente excluídos dos mestiços
resultantes (Rodrigues, 1894/1957).
Para a região identificada como centro do país (São Paulo, Minas e Rio
de Janeiro) e a região sul, o médico vê a migração predominantemente ítalo-portuguesa e germânica, respectivamente, como responsável pelo
predomínio futuro da “raça branca”, ligeiramente mesclada, salientando a
insignificância do elemento negro no extremo sul.
A quarta e última região - Amazônia e estados ocidentais - teria uma
composição étnica diferente das anteriores, pois nem o branco (o clima
impediria a imigração européia à região), nem o negro (porque estancada a
fonte de imigração africana e os negros existentes já estariam em processo
de mestiçagem) haveriam de desalojar o índio. O futuro reservaria a esta
região o cruzamento do elemento indígena e os mulatos e pardos
(Rodrigues, 1890/1939 e 1894/1957).
Chamando a atenção para o fato de que mesmo internamente às
regiões descritas não existia uniformidade étnica, Nina Rodrigues encontrava
na diferenciação climática e na conformação física geral do país as principais
garantias das futuras distinções previstas.
LITORAL E SERTÃO
Nesta organização regional apresentada por Nina Rodrigues nos
trabalhos “Mestiços Brasileiros” (1890/1939) e “Raças Humanas e a
responsabilidade penal no Brasil” (1894/1957) estava caracterizada uma
linha demarcatória e o autor não se aventurava muito além dos limites do
litoral, mas a Guerra de Canudos levou-o a explicitar suas opiniões sobre a
população sertaneja (“A loucura Epidêmica de Canudos: Antônio Conselheiro
e os jagunços” - 1897/1939), vista como “nômade” e “guerreira”,
representada pelo “jagunço”, “(...) um produto tão mestiço no físico que
reproduz os caracteres antropológicos combinados das raças de que provém,
quanto híbrido nas suas manifestações sociais que representam a fusão
quase inviável de civilizações muito desiguais” (Rodrigues, 1897/1939: p.
64).
O sertão seria o espaço de uma população mestiça no “estádio inferior
da evolução social”, sem capacidade mental para compreender as abstratas
transformações políticas decorrentes da mudança da monarquia para a
república. Incapazes de compreender a república como forma superior de
organização política, os sertanejos “serão monarquistas como são
fetichistas, menos por ignorância, do que por um desenvolvimento
intelectual, étnico e religioso, insuficiente ou incompleto” (Rodrigues,
1897/1939: p.70).
Nas “longínquas paragens” sertanejas não haveriam de ser entendidos
elementos fundamentais da civilização, como o direito de voto,
funcionamento regular dos tribunais, etc, predominando a vontade e os
sentimentos dos “chefões, régulos ou mandões” (Rodrigues, 1897/1933).
Nina Rodrigues opõe o litoral- reduto da civilização e dos grupos
brancos, ao sertão - dominado por uma população mestiça, infantil, inculta.
Para o médico, “seria desconhecer o nosso próprio país acreditar que nessas
vastas regiões seja mais do que nominal a existência da civilização européia”
Rodrigues, 1897/1939: p. 66).
Embora reconheça no jagunço elementos de uma mestiçagem que
envolve o branco, o índio e o negro, Nina Rodrigues o descreve como
revelador na sua inteireza do “caráter indomável do índio selvagem”,
portanto, essencialmente um mameluco, considerado por ele como o
mestiço menos apto à civilização e à educação (Rodrigues, 1894/1957: p.
144).
Da mesma forma que procedeu com os diferentes grupos oriundos da
África, Nina Rodrigues, na sua ânsia evolutiva/classificatória, estabeleceu
uma hierarquização para os mestiços brasileiros, dentre os quais “os
mestiços do negro, as diversas espécies de mulatos, são incontestavelmente
muito superiores pela inteligência aos outros mestiços do país” (Rodrigues,
1894/1957:145), determinando ser fato a inferioridade do mameluco ao
mulato.
Paradoxalmente, esta superioridade não aparece no trecho de “A
loucura epidêmica de Canudos” (1897/1939), onde o jagunço - mameluco -
de espírito infantil e inculto, aparece à frente do mestiço do litoral - mulato.
Os primeiros souberam “(...) acomodar as qualidades viris de seus
ascendentes selvagens (...)”, enquanto os segundos se enfraqueceram
quando colocados diante de “(...) uma vida mais intelectual do que física,
uma civilização superior às exigências de sua organização física e mental
(...)”(Rodrigues, 1897/1939: p.65).
Se para Nina Rodrigues o clima era apenas um aspecto que selava a
impossibilidade da imigração européia para a região amazônica, para
Euclides da Cunha o meio físico era um elemento diferenciador que
juntamente com os três elementos étnicos principais e com as condições
históricas comporiam as incógnitas a serem desvendadas para que se
pudesse “esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros
historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do
Brasil” (Cunha, 1902/1985: p. 85).
Assim é que o autor de “Os Sertões” traça considerações sobre um
“meio físico amplíssimo e variável”, contrapondo-se às opiniões que
consideravam o meio físico brasileiro uniforme, e o subdivide em três zonas
claramente distintas: a francamente tropical (estados do norte do País até o
sul da Bahia), a temperada (de São Paulo ao Rio Grande do Sul) e a
subtropical (alongando-se pelo centro e norte de alguns estados de Minas ao
Paraná) (Cunha, 1902/1985: p. 145-153).
Após comentar as “modalidades mesológicas”, parte Euclides da
Cunha para caracterizar a situação histórica do Brasil que ainda nos seus
primórdios viu-se objeto de uma separação radical entre o sul e o norte(Cunha, 1902/1985: p. 153).
A história do norte era, para ele, mais teatral, porém menos
eloqüente. Preso no litoral, entre o sertão inarredável e os mares, “surgem
heróis, mas a estatura avulta-lhe, maior, pelo contraste com o meio; belas
páginas vibrantes mas truncadas, sem objetivo certo, em que colaborem, de
todo desquitadas entre si, as três raças formadoras.
Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam,
claramente distintos em suas tendas de campanha, os negros de Henrique
Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra,
distanciam-se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos selvícolas, os
conflitos na orla do sertão violam a transitória convergência contra o batavo”
(Cunha, 1902/1985: p. 156).
No sul surge o paulista que “erigiu-se como um tipo autônomo,
aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da
terra, emancipando-se, insurrecto, da tutela longínqua, e afastando-se do
mar e dos galeões da metrópole, investindocom os sertões desconhecidos,
delineando a epopéia inédita das bandeiras...” (Cunha, 1902/1985: p. 156).
Tratando ainda do meio físico, Euclides da Cunha introduz, através de
uma descrição da Serra do Mar, o conceito de isolador étnico e histórico que
seria particularmente importante para ele entender o sertanejo.
“Convindo em que o meio não forma as raças[Euclides de Cunha
considerava que] no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos
do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento
de sub-raças diferentes pela própria diversidade das condições da
adaptação” (Cunha, 1902/1985: p.158).
Se Euclides afirmava que a mistura das raças é prejudicial, se o
mestiço é quase sempre um desequilibrado sobre quem pesava a “fatalidade
das leis biológicas” - e “não há terapêutica para esse embater de tendências
antagônicas” - o mestiço sertanejo constitui-se num caso à parte.
O mulato, que é um mestiço, é um degenerado, mas o sertanejo, que
é um mestiço, não o é: “é um retrogrado, não é um degenerado” (Cunha,
1902/1985: p.171).
Por que tal paradoxo?
Primeiro porque na sua classificação racial Euclides vislumbrava a
existência de uma “raça superior”, o branco, e duas “raças inferiores”, o
índio e o negro. No meio destas, uma outra classificação, quanto à origem, o
fazia optar por uma supremacia dos índios, julgados autóctone, sobre o
negro, julgado alienígena.
Em segundo lugar porque Euclides da Cunha se vale de uma idéia que
lhe é fundamental: a tese do isolamento/insulamento étnico e histórico.
A primeira mestiçagem teria acontecido logo nos primeiros tempos,
intensamente, entre o europeu e o índio, e quando isto se deu no interior do
país a contribuição africana não teria sido significativa no processo de
mestiçagem pois “o elemento africano de algum modo estacou nos vastos
canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo
diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o
indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos
aldeamentos pela tenacidade dos missionários” (Cunha, 1902/1985: p. 162).
O próprio mulato, por sua vez, teria uma origem fora do nosso país,
vez que o “consórcio afro-lusitano” já havia se estabelecido no século XV,
portanto, antes mesmo da vinda deles para o “novo mundo”. E no caso do
Brasil a concentração destes mestiços dera-se no litoral, onde a presença do
africano debruava uma grande “tarja negra” que iria da costa da Bahia ao
Maranhão, mas pouco penetrava o interior (Cunha, 1902/1985: p.162).
Assim, para Euclides da Cunha, estaria estabelecida a “distinção
perfeita” entre os cruzamento realizados no sertão e no litoral, e ele se volta
para explicar como, a partir da mestiçagem predominantemente entre índios
e brancos se deu a formação de uma “raça forte”, o sertanejo, para quem
faltara até então um historiador, que, de alguma forma, o próprio Euclides
ensaia ser, como que a resgatar “aqueles desconhecidos singulares, que ali
estão - abandonados - há três séculos” (Cunha, 1902/1985: p. 178).
Mestiço do sertão, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral” (Cunha, 1902/1985: p. 178).
Euclides da Cunha exercita com o sertanejo a sua capacidade de
trabalhar imagens antitéticas, já explicitada na primeira parte do livro, “A
terra”, como por exemplo nas páginas sobre o clima. E o homem aparece
então com a mesma inconstância que o meio, numa similaridade que não
deve ser estranhada, já que “A terra” é uma espécie de antecipação do que
virá em todo o restante de “Os Sertões”.
O sertanejo é forte e fraco, Hércules Quasímodo, ao mesmo tempo
junta-se no mesmo ser, a fortaleza e a fraqueza, a beleza e a feiúra,
inerentes ao sertanejo brasileiro - representação cujo personagem carrega
em si a sua própria ambigüidade, como a sua simplicidade “a um tempo
ridícula e adorável” (Cunha, 1902/1985: p. 179).
Euclides da Cunha escreveu páginas das mais vivas representações
imagéticas, como por exemplo as que descrevem o homem
permanentemente fatigado, refletindo “preguiça invencível, a atonia
muscular perene”, que é uma aparência que ilude pois que um simples
“alevantamento” de uma rês o transforma num “centauro bronco”, num
“cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo frágil”, mas que, terminada
a refrega, volta a oscilar “à feição da andadura lenta, com a aparência triste
de inválido” (Cunha, 1902/1985: p. 179-181).
CONLUSÃO
Da leitura até aqui feita dos trabalhos de Nina Rodrigues e Euclides da
Cunha pode-se entender que as teorias antropológicas e os autores que os
influenciaram (Le-Bon, Taine, Buckle, Gumplowicz, etc) foram os mesmos ou
muito próximos e que os trabalhos de Nina Rodrigues tiveram importância
na elaboração de “Os Sertões” de Euclides da Cunha.
No entanto, partindo dos pressupostos da inferioridade das “raças não
brancas” e dos prejuízos da mestiçagem, médico e engenheiro chegaram a
diferentes conclusões.
Enquanto Nina Rodrigues defendia a primazia evolutiva das
populações litorâneas, Euclides da Cunha negava tal interpretação
invertendo a oposição litoral X sertão.
Se Nina Rodrigues desenvolveu os seus trabalhos fundamentalmente
dentro da “tarja negra” do litoral, Euclides da Cunha voltou-se para o país
interior, pouco lembrado, onde “descobriu” no sertanejo a “rocha viva da
nossa raça” (Cunha, 1902/1985: p. 559).
Nina Rodrigues entrou para a história como o principal doutrinador
racista da sua época. Não hesitava em seguir as implicações de suas
doutrinas raciais, por mais ortodoxas que fossem, sem se deixar influenciar
pela “viva simpatia” que lhe inspirava o negro brasileiro. Tudo em nome da
“ciência que não conhece estes sentimentos” (Rodrigues, 1933/1988: p. 4).
O médico Nina Rodrigues era um mestiço, mulato, que, apesar de
suas considerações sobre a inferioridade dos negros e mestiços, “(...)
tomava posição publicamente (isto é, politicamente) contra a violência e o
arbítrio que atingiam os descendentes dos africanos, era o advogado que
defendia diante do público bem-pensante, embora dentro de uma ótica
evolucionista, a dignidade da cultura negra” (Silveira, 1933/1988: p. 182).
O mulato Nina Rodrigues teve sempre abertas as portas dos terreiros
de candomblé, e demais instituições do povo negro, e foi consagrado Ogando Terreiro do Gantois, um dos mais tradicionais da Bahia.
Já se disse que não se deve tomar ao pé da letra as doutrinas que
Euclides da Cunha seguia (Ventura, 1993). Mais que um simples aplicador,
ele as modificava, adaptando-as às suas necessidades explicativas.
Euclides da Cunha era um mestiço, mameluco - “misto de celta,
tapuia e grego” como se auto definia - que admitia a tese do triunfo
inevitável da “raça branca” sobre as demais. No entanto, “Os Sertões”
desnuda a fragilidade desta fantasia teórica quando confrontada com o
sertanejo.
O mulato Nina Rodrigues estudou o crânio de Antônio Conselheiro
para desvendar os mistérios da loucura.
Após a morte do mameluco Euclides da Cunha, o seu cérebro foi
retirado por Afrânio Peixoto (nas suas próprias palavras, primeiro dos
discípulos de Nina Rodrigues) para que se pudesse entender as linhas da
genialidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS CITADAS
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por Walnice N. Galvão. São Paulo, Brasiliense. 1985.
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VENÂNCIO FILHO. F.. Fundamentos científicos de “Os Sertões”. Em Revista
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de São Paulo. São Paulo, 10 out. 1993, p. 6/9.
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Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias
no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 1991.
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