Euclides da Cunha e a Amazônia:
visão mediada pela ciência
Footnote


José Carlos Barreto de Santana
Professor Titular da Universidade Estadual de feira de Santana (UEFS)
Rua São Jorge, 63 - Bairro Eucaliptos
44070-7380 - Feira de Santana - Bahia - Brasil
E-mail: zecarlos@uefs.br

Doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolve pesquisas sobre a história das ciências no Brasil entre os séculos XIX e XX. É autor do livro Ciência e arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais, publicado pela HUCITEC em 2001.



Resumo


Famoso e desempregado em 1904, Euclides da Cunha foi nomeado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Após percorrer uma parte da Amazônia, Euclides da Cunha pretendia escrever um livro que se chamaria Um paraíso perdido. Através da analise dos “ensaios amazônicos”, dos relatórios técnicos, da correspondência pessoal e das anotações de leituras de Euclides da Cunha, o que inclui uma caderneta ainda inédita, este trabalho busca entender as mediações feitas por Euclides da Cunha, entre as suas observações e a leitura intensa da produção de naturalistas e cientistas especializados sobre a Amazônia vista por ele como a região cujo conhecimento demarcaria o fecho da História Natural.



PALAVRAS-CHAVE: Euclides da Cunha, Amazônia, História das Ciências, Um paraíso perdido, naturalistas e cientistas.



          Após percorrer uma parte da Amazônia, em 1905, como chefe da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, Euclides da Cunha pretendia escrever um livro no qual registraria as suas idéias sobre a região. Para isso tinha até escolhido o título, Um paraíso perdido1, daquele que destinava-se a ser o seu segundo “livro vingador”. A morte, em forma de drama passional, no ano de 1909, chegou antes que fosse concretizada a sua pretensão, e “os ensaios amazônicos são o aspecto menos conhecido de sua obra. Encontram-se dispersos em artigos e entrevistas de jornal, em crônicas e prefácios, em sua correspondência particular e oficial, além dos relatórios técnicos da viagem” (Ventura, 1993, p.44)2.

          Francisco Foot Hardman, após esboçar sumariamente o espaço temático no qual se inserem os “ensaios amazônicos” de Euclides da Cunha, e considerando o que já foi feito até então, por autores diversos, sobre este assunto, propõe algumas direções possíveis em termos de fontes historiográficas e literárias. Das propostas de Foot Hardman destaco a que trata de um rastreamento documental em acervos diversos, e novas incursões à correspondência do escritor, além de um diálogo com os próprios escritos amazônicos de Euclides da Cunha, estendendo seus canais e pontes até uma série de tradições “(...) de que a ‘prosa perdida’ do escritor foi, em alguma medida tributária”, o que incluiria a tradição dos viajantes naturalistas e dos cientistas (Hardman, 1992a).

          É dentro desta possibilidade, que pretendo inserir a contribuição deste artigo. Através da investigação dos trabalhos publicados sobre a Amazônia, dos relatórios técnicos, da correspondência pessoal e das anotações de leituras de Euclides da Cunha, serão analisadas as mediações feitas por Euclides da Cunha, entre as suas observações e a leitura intensa da produção de naturalistas e cientistas especializados sobre a Amazônia (ou, de forma mais ampla, sobre a natureza brasileira, quando for possível interpretar estas leituras como parte do seu esforço para integrar aquela região no seu projeto de interpretação nacional), vista por ele como a região cujo conhecimento demarcaria o fecho da História Natural.

Visão pré-amazônica


          O sucesso de Euclides da Cunha, como escritor, após a publicação de Os sertões, significou a abertura, para ele, de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras (1903), mas isto não veio acompanhado de uma almejada estabilidade funcional e financeira.

          Após demitir-se do cargo de engenheiro da Superintendência de Obras Públicas de São Paulo, e de um breve período na Comissão de Saneamento de Santos, Euclides da Cunha viu-se famoso e desempregado em 1904.

          Pleiteando um cargo em comissão no Itamaraty, através de negociação envolvendo o diplomata e acadêmico Oliveira Lima e o crítico literário e também acadêmico José Veríssimo, Euclides da Cunha dispõe-se a seguir para o Mato Grosso, Acre ou para o alto Juruá, “remotos pontos da nossa terra que desejo ver e estudar de perto” (Cunha, 1904/1997, p.207).

          O primeiro registro do interesse de Euclides da Cunha em viajar ao Acre está contido numa carta a Luiz Cruls, datada de 20 de fevereiro de 1903, onde informou que “alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como realizá-lo. Nesta terra, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me repugnam. Elimino por isto a aspiração - é que talvez pudesse prestar alguns serviços” (Cunha, 1903/1997, p.149).

          A menção desse interesse numa carta a Luiz Cruls, parece encontrar a sua razão no fato de que o diretor do Observatório Astronômico estivera, entre 1900 e 1902, à disposição do Ministério das Relações Exteriores, servindo como Diretor da Comissão de Limites e Chefe da Comissão de Limites com a Bolívia (Morize, 1987, p.130-131)3.

          No intervalo de tempo entre as cartas a Luiz Cruls (fevereiro de 1903) e a José Veríssimo (junho de 1904), Euclides da Cunha escreveu, para os jornais O País e O Estado de S. Paulo, os quatro artigos relacionados com a Amazônia que foram posteriormente incorporados ao livro Contrastes e confrontos (1907).

          A questão de limites entre o Brasil e a Bolívia desaguara no tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro de 1903, pelo qual a Bolívia cedia ao Brasil o território do Acre em troca de compensações territoriais e pecuniárias. Este acordo gerara reação de desagrado nos países vizinhos, principalmente no Peru, que tinha com a Bolívia, o Equador, a Colômbia e o Brasil pendências de limites na região Amazônica. Já desde 1896, caucheiros4 peruanos haviam atravessado o rio Javari, limite entre o Brasil e o Peru estabelecido desde meados do século XIX, e se mantinham nos vales do Juruá e Purus, garantidos por tropas peruanas (Rabello, 1966, p.249).

          Euclides da Cunha considerava as ações dos peruanos ditadas mais pelas condições do meio físico que os impeliria em direção ao Atlântico, sendo a sua saída obrigatória o Purus. Mostrava-se contrário ao envio de tropas regulares para a região em litígio, pelo prejuízo resultante para as negociações em torno das circunstâncias administrativas criadas pelo tratado de Petrópolis, e entendia que “está passado o tempo em que a honra e a segurança das nacionalidades se entregavam, exclusivamente, ao rigor das tropas arregimentadas”. Numa alusão aos imigrantes nordestinos, defendia que “as forças para repelir a invasão já ali se acham destras e aclimadas, nas tropas irregulares do Acre, constituídas pelos destemerosos sertanejos dos Estados do Norte, que estão transfigurando a Amazônia”. Contra os caucheiros haveria a ação dos jagunços (Cunha, 1966, p.159 e 162).

          Assim como já acontecera com os artigos que antecederam a sua ida para o sertão de Canudos, Euclides da Cunha escreveu sobre a Amazônia antes de conhecê-la “in situ”. Mais uma vez se fez acompanhar de autores/autoridades diversos, que passam por Humboldt, Agassiz, Bates, Chandless, Tavares Bastos e outros, demonstrando um esforço de leitura que o levou a tecer considerações sobre o meio físico, o homem e a cultura daquela região.

          Os textos escritos por Euclides da Cunha, antes da sua ida até a Amazônia, e que têm-na como tema, expressam a predominância da visão de mundo norteada pelo determinismo geográfico, evolucionismo e darwinismo social, que podem ser identificados nas relações entre o clima e a adaptabilidade do homem, nas idéias sobre o “isolamento étnico” como elemento de preservação e formação das “raças”, ou no emprego de “palavras-chaves”, como “aplicação dos princípios transformistas às sociedades”, “seleção natural dos fortes” e “concorrência vital entre os povos” (Antonio Filho, 1995, p.74-84). Novamente estavam em pauta os modelos do cientificismo que tanto impregnara Os sertões.


Euclides da Cunha na Amazônia


          Posicionando-se por meio da imprensa a respeito dos incidentes envolvendo os peruanos, Euclides da Cunha credenciava-se à comissão pretendida, mas, na carta de 24 de junho de 1904 a José Veríssimo, esclarecia estar determinado a seguir para o Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ainda que se antecipando à organização das comissões demarcatórias, pois era também seu interesse realizar apreciações sobre os aspectos físicos e riquezas da região. Para reforçar os seus argumentos sobre a decisão tomada, Euclides da Cunha lembrava ao crítico literário que “(...) se as nações estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que absurdo haverá no encarregar-se de idêntico objetivo um brasileiro?" (Cunha, 1904/1997, p.208).

          Contando ainda com a participação do diplomata Domício da Gama, secretário do Ministro do Exterior, o Barão do Rio Branco, a nomeação para chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus apresentava-se duplamente importante para Euclides da Cunha: para o engenheiro, “que não pode ter um trabalho mais digno” e para o escritor, “que não poderá ter melhor assunto” (Cunha, 1904/1997, p.219).

          O contato inicial de Euclides da Cunha com a Amazônia, em dezembro de 19045, está registrado nas cartas, quer escritas aos amigos quer por força do cargo exercido, e a primeira impressão é do

“(...) desapontamento que me causou o Amazonas, menos que o Amazonas que eu trazia na imaginação; a estranha tristeza que nos causa esta terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo onde o olhar descanse; e, principalmente, o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia dos que a habitam... Estou numa verdadeira sobrecarga de impressões todas novas, todas vivíssimas e empolgantes. Preciso de uma situação de equilíbrio para o espírito” (Cunha, 1905/1997:254-255).

          Mais tarde, ao discursar na sessão de posse na Academia Brasileira de Letras, em 18 de dezembro de 1906, Euclides da Cunha descreveria como se dera aquele encontro:

“há dois anos entrei pela primeira vez naquele estuário do Pará, ‘que já é rio e ainda é oceano’, tão inserido estes fáceis geográficos se mostram à entrada da Amazônia.

    Mas contra o que esperava não me surpreendi...

    Afinal, o que prefigurava grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem os mistérios da profundura (...). De permeio baixios indecisos, varridos de maretas, mal desenhando-se grosseiramente, à tona, à maneira de caricaturas de ilhas; ou ilhas rasas, meio servidas pelas marés, encharcadas de brejos - uma espécie de naufrágio da terra (...).

    Calei um desapontamento; e no obstinado propósito de achar aquilo prodigioso, de sentir o másculo lirismo de Frederico (sic) Hartt ou as impressões ‘gloriosas’ de Walter Bates, retraí-me a um recanto do convés e alinhei nas folhas da carteira os mais peregrinos adjetivos, os mais roçagantes substantivos e refulgentes verbos com que me acudiu um caprichoso vocabulário ... para ao cabo desse esforço rasgar as páginas inúteis onde alguns períodos muito sonoros bolhavam, empolgando-se, inexpressivos e vazios” (Cunha, 1906/1966, p.204).

          Com esta sensação de desapontamento Euclides da Cunha desembarcou em Belém e dirigiu-se para o Museu Paraense. Portava uma carta do seu amigo José Veríssimo para Emílio Goeldi, diretor do Museu6. Ali o escritor passaria “duas horas inolvidáveis” ao lado de Goeldi e do botânico Jacques Huber7. Impressionado pelo que viu no Museu Paraense, faria referência ainda às “(...) maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo. Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral” (Cunha, 1905/1997, p.252).

          Retornando ao navio levava consigo, oferecida pelo autor Jacques Huber, uma monografia sobre a região que lhe parecera tão desapontadora:

“deletreei-me a noite toda: e na antemanhã do outro dia - um daqueles glorious days de que nos fala Bates, subi para o convés, de onde, com os olhos ardidos da insônia, vi, pela primeira vez, o Amazonas ... Salteou-me, afinal, a comoção que eu não sentira (...) Atentei outra vez nos baixios, indecisos, nas ilhas ou pré-ilhas meio diluídas nas marejadas - e vi a gestação de um mundo” (Cunha, 1906/1966, p.205).

          Para Lourival Holanda,

“quando, entre 1904 e 1905, Euclides da Cunha chega à Amazônia, vem carregado já de expectativas criadas pelas tantas leituras feitas antes. Euclides faz a ‘invenção’ desta Amazônia ‘há muito tempo prefigurada’ (remetendo aqui ao étimo latino: alguém descobre além o que já trazia em si). O real imaginado vai sofrer o confronto do seu barco aportando em Belém e Manaus (...). Euclides vê a Amazônia ainda pelo olhar alheio: ele a vê como a lê nos tantos viajantes que deambulam Brasil afora. Caso singular de visão transversa; quando não de visão astigmata: as duas imagens não se justapõem inteiramente” (Holanda, 1992, p.44-45).

          Esta oscilação entre a admiração prévia, o desapontamento e a comoção final diante do grande rio é

“(...) mediada pela leitura dos cronistas e viajantes, com suas visões fantásticas e fabulosas, e pelo decifrar dos cartógrafos, cuja geografia se confunde com a mitologia. São projetadas imagens e pré-noções, fornecidas pela ciência européia (mas também pelos desbravadores brasileiros), sobre o meio amazônico e a floresta tropical. Como tais imagens e pré-noções não se ajustam à realidade observada, o escritor as irá retificando, até reencontrar o seu ponto de partida: o livro como metáfora ou símbolo da própria natureza” (Ventura, 1992:608).

          Função de mediação também tivera a monografia de Jacques Huber8. Só através dela foi possível a Euclides da Cunha compreender

“os mesmos céus resplandecentes e limpos; e que a terra toda surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz (...) Com efeito, a nova impressão verdadeiramente artística, que eu levava, não ma tinham inspirado os períodos de um estilista. O poeta que a sugerira não tinha metro, nem rimas (...) O que eu, filho da terra e perdidamente enamorado dela, não conseguira demasiando-me no escolher vocábulos, fizera-o ele usando um idioma estranho gravado do áspero dos dizeres técnicos” (Cunha, 1906/1966, p.205-206).

          As leituras de Euclides da Cunha sobre a Amazônia haveriam de prosseguir em Manaus, onde ele chegaria em 30 de dezembro de 1904 e ali esperaria por três meses, juntamente com o representante do Peru, para que fossem efetivamente iniciados os trabalhos da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus. Neste período a monografia de William Chandless sobre o Purus, fornecida por Domício da Gama ainda antes da partida de Euclides da Cunha para a Amazônia, foi objeto de permanente consulta, e o nome do inglês se fez presente nas cartas escritas de Manaus para os amigos (Cunha, 1904/1997, p.224). O mapa do Purus, de autoria de Chandless, foi devidamente ampliado pelo assistente Arnaldo Pimenta da Cunha para servir de base ao trabalho demarcatório.

          A viagem da “Comissão Mista” durou do início de abril ao final do mês de outubro de 1905, tendo se desenrolado em condições pouco propícias, porque coincidente com o período de vazante dos rios, diminuindo as facilidades da navegação a vapor e aumentando os trechos que deveriam ser percorrido em canoas. O reconhecimento foi feito ao longo de três mil e duzentos quilômetros, e dele resultou um relatório assinado pelos representantes brasileiro e peruano9, além de ofícios e notas complementares escritas por Euclides da Cunha.

          Esta viagem, que se destinava a servir para “um simples reconhecimento hidrográfico” (Cunha, 1905/1994, p.270), durante o qual se fariam as determinações de coordenadas geográficas, se converteria, para Euclides da Cunha, também numa missão científica ao completar a tarefa iniciada por Chandless para desvendar “aos olhos da ciência” o mistério da ligação das bacias dos rios Madre de Dios, Ucaiale e Purus.

          Nas “Notas complementares” ao Relatório10, escritas por Euclides da Cunha, já no Rio de Janeiro, em 1906, é apresentada a história do conhecimento do rio Purus, ressaltando que até o início da década de sessenta do século passado persistiam dúvidas quanto a se este rio seria um prolongamento do Madre de Dios ou um desaguadouro do lago Roguagoalo, na Bolívia. Mesmo em 1868 havia quem o tratasse como sendo o lendário Amaru-Maiu ou “Rio das Serpentes”, dos Incas, traçando-o a partir dos Andes.

“Diante de juízos tão contrapostos, compreende-se que a Royal Geographical Society, de Londres, comissionasse, em 1864, um dos seus membros, William Chandless, para resolver o controvertido assunto, ou, como se ousou dizer por muito tempo - o problema do Madre de Dios e do Purus” (Cunha, 1906/1994, p.140-143).

          William Chandless fez a sua primeira viagem à Amazônia em 1861, quando percorreu 2.000 km entre Porto Velho e a confluência do Tapajós com o Amazonas, escrevendo vários artigos sobre a navegabilidade de tributários do rio Amazonas, publicados na revista da Royal Geographical Society e que são considerados como uma importante contribuição para o conhecimento da Amazônia (Dickenson, 1994, p.134-136).

          Por causa das suas pesquisas no rio Purus, entre 1864 e 1865, quando percorreu aproximadamente 3.000 km, a Royal Geographical Society resolveu premiar, em 1866, William Chandless com a “Medalha de Ouro Victoria”, destacando que o mesmo realizou o seu trabalho “por puro amor à ciência, para solucionar um problema geográfico, e que é plenamente sucedido” (Leonardos, 1970, p.172-173) e que resultara em profundas modificações nos mapas da América do Sul (Dickenson, 1994, p.135). Em homenagem ao geógrafo inglês foi dado o seu nome a um dos afluentes do Alto Purus, que seria percorrido por Euclides da Cunha.

          Contemporâneos de William Chandless, dois brasileiros também haviam realizado expedições pelo Purus. Um deles foi Manuel Urbano, que, assim como o inglês, também emprestaria o seu nome a um dos afluentes do Purus. Euclides da Cunha o caracteriza como “um cafuz destemeroso e sagaz” (Cunha, 1906/1994, p.144), no qual William Chandless via “um mulato de pouca instrução, mas que sabia usar a grande e natural inteligência” (Chandless, citado por Leonardos, 1970, p.174). Antes de Chandless, em 1860, sob as ordens do governo provincial do Amazonas, Manuel Urbano percorrera um longo itinerário com o objetivo de verificar a existência de uma comunicação entre os rios Purus e Madeira. “Efetuadas por um homem inculto, apenas aparelhado de um tino admirável, essas viagens, entretanto, forneceram os primeiros dados seguros a respeito do Purus e de três dos seus maiores afluentes” (Cunha, 1906/1994, p.145). As viagens de Manuel Urbano serviram de base para explorações posteriores do Purus, inclusive as de Chandless.

          Como conseqüência da sua experiência e conhecimento do rio, Manoel Urbano acompanhou, em 1862, o engenheiro militar e professor de geologia e mineralogia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, João Martins da Silva Coutinho11, encarregado pelo governo provincial da realização de levantamento do Purus, que, além dos elementos hidrográficos, incluía também a geologia, a flora e as tribos da região. O trabalho de Coutinho seria uma fonte de referência utilizada por Euclides da Cunha para a elaboração das suas “Notas Complementares” ao relatório da Comissão.

          William Chandless explorou o rio Purus para desvendar a questão das sua ligações com o Madre de Dios, um dos aspectos da ligação das bacias do Amazonas e do Prata, e fixou os pontos principais do Purus em coordenadas, realizando um trabalho que seria, durante muitos anos, a principal referência sobre a região, e concluiu que aquele rio não era uma extensão do Madre de Dios. No entanto, por não ter chegado até os pontos mais extremos da cabeceira do Purus, resguardou-se de um juízo definitivo sobre o assunto: “certainly the simplest solution of the problem would be a descent of the Madre de Dios from the cordilheira” (Chandless, citado por Cunha, 1906/1994, p.148).

          Depois de William Chandless, o único reconhecimento que se fez até as cabeceiras do Purus foi o realizado pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana, cujos resultados, em grande parte, são um complemento dos trabalhos do inglês, conforme reconhece o próprio Euclides da Cunha (1906/1994, p.150) . O que de mais importante diferenciou os trabalhos do membro da Royal Geographical Society dos realizados pela Comissão foi que, chegando nas cabeceiras do Purus, num trecho onde o mesmo se reparte em dois galhos, um dos quais leva o nome de Cavaljani, e o outro leva o nome do rio principal, William Chandless resolveu seguir por este último, não prosseguindo além de poucas milhas, enquanto a Comissão decidiu subir o Cavaljani, chegando até a parte mais extrema da origem do Purus.

          Do ponto em que divergira da direção tomada por Chandless em diante, a Comissão avançaria “para lugares nunca cientificamente explorados”. Chegaria, enfim, ao varadouro12, no qual cinco minutos de marcha levaria ao divisor das águas dos rios Purus e Madre de Dios13 (Cunha, 1906/1994, p.155). O próprio relatório da Comissão afirmava tratar-se de uma região conhecida pelos caucheiros, ainda mais incultos que Manuel Urbano, que percorriam a região e teriam construído os varadouros, mas este trecho do Purus ainda não havia sido “apresentado às ciências geográficas”, capazes de torná-lo finalmente integrado à cultura ( Cunha, 1905/1994, p.118).

          Utilizando-se do recurso de imaginar William Chandless seguindo o trecho final percorrido pela Comissão, Euclides da Cunha considera que, chegando até esta parte mais extrema do Purus, o inglês,

“(...) num só dia chegaria a muitas conclusões valiosíssimas”: constataria a independência da bacia do Purus em relação ao Madre de Dios - já presumida por Chandless - e a proximidade das nascentes dos rios Purus, Madre de Deus e Ucaiale, que justificaria, em parte, as confusões que durante anos persistiu quando se tratava das origens destes rios, revelando assim um “fato geográfico, absolutamente sem par” (Cunha, 1906/1994, p.149).

          Como este foi o roteiro seguido pela Comissão, e não por William Chandless, talvez Euclides da Cunha estivesse chamando a atenção para a sua própria realização.

          Nos meios científicos a valorização da “descoberta” é um dos aspectos mais consagrados. Tratando-se de Euclides da Cunha, que buscava o reconhecimento da comunidade científica, revelar para o mundo culto a existência de um novo “fato geográfico” certamente se constituía num elemento de grande importância.

          A comparação entre as cartas hidrográficas elaboradas por William Chandless e pela Comissão Brasileiro-Peruana mostra diferenças que são atribuídas por Euclides da Cunha ao caráter divagante do rio Purus, “um rio em plena evolução geológica, modificando ainda de maneira sensível o seu traçado”. O Purus seria parte de um mundo em formação, modificando o seu leito numa velocidade tal que, no prazo de quarenta anos, o mesmo local onde o “notável cientista inglês” navegou, a Comissão encontrou coberto de imbaúbas, enquanto trechos atravessados pela Comissão em canoas corresponderiam a “belos recantos de florestas” contemplados por Chandless (Cunha, 1905/1994, p.122-127). As considerações de Euclides da Cunha sobre o caráter divagante do rio Purus, baseadas nas concepções de “ciclo vital” dos rios de Morris Davis, mostram a sua atualização em relação às teorias hidrográficas mais respeitadas na virada do século XIX, o que permitiu a Roquette Pinto considerá-las como representando “(...) um dos mais importantes fatos geológicos adquiridos pela ciência brasileira” (Roquette Pinto, 1919, p.66-67).

          No Relatório da Comissão de Exploração não existem indicações geológicas capazes de elucidarem as relações entre topografia e estrutura dos terrenos estudados. Durante a viagem foram recolhidas amostras de fósseis e rochas, posteriormente encaminhadas ao Museu Paraense para que fossem apreciadas pelos “raros competentes no assunto” (Cunha, 1905/1984, p.133).

          Na carta de 28 de outubro de 1905, que trata do recebimento dos materiais enviados por Euclides da Cunha, Emílio Goeldi lamenta a impossibilidade de os mesmos serem avaliados pelo geólogo do museu, que só chegaria ali no ano seguinte, ou por Jacques Huber, ausente do museu naquele momento, mas apresenta uma “exposição rápida” do que havia conseguido observar:

“impressionou-me principalmente de encontrar lá, como fato geológico integrante de feição predominante, outra vez o elemento, como aqui no baixo Amazonas - o grés limonítico, o Pará Sandstein, como ele ficou batizado pelos nossos geologistas no Museu. É a mesma pedra, ora com grão de areia fina, ora com seixos pequenos e maiores, reunidos em conglomerados, ligado e cimentado [sic.] por óxido de ferro, que na superfície e pela ação da água e dos agentes atmosféricos se transformam em limonitos (‘Brauneisen’) (...)/O grés limonítico deve a sua origem - tanto quanto me lembro das minhas conversas com os nossos geologistas - a vastas inundações, por dilatado tempo, de água doce” (Goeldi, citado por Tocantins, 1992, p.123).

          Como já acontecerá em Os sertões, Euclides da Cunha iria retrabalhar o texto de um cientista, sem a preocupação de citar a fonte. Esta considerações de Goeldi viriam aparecer no relatório, com a seguinte redação:

    “Apenas conseguimos notar como fator preponderante desde a confluência do Solimões, até a foz do Chandless, o mesmo grés limonítico que sob o nome cientificamente consagrado de Parasandstein forma a base dos terrenos amazônicos.

    “É a mesma rocha, já finamente granulada, já com seixos conglomerados pelo óxido de ferro - e uma disposição estratigráfica idêntica. E, como ela, francamente sedimentária, se originou no seio de vastas massas de água doce, concluí-se com segurança que o Purus até quase às suas cabeceiras, a exemplo da maioria dos tributários do Amazonas, se traduz como um resto de amplíssimo lago que na época terciária, após a sublevação dos Andes, cobria tão desmedidas superfícies” (Cunha, 1905/1994, p.125).

          Concluído o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus em dezembro de 1905, Euclides da Cunha retornou ao Rio de Janeiro. Durante os primeiros meses dedicou-se à tarefa de revisão do Relatório e à elaboração das “Notas Complementares”, que seriam incorporadas àquele, quando da publicação pelo Itamaraty em 1906.


A visão do “paraíso perdido”


          Euclides da Cunha pretendia que o livro através do qual expressaria as suas idéias sobre a Amazônia estivesse à altura de Os sertões. Em Um paraíso perdido, o escritor procuraria “(...) vingar a Hiloe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII. Que tarefa e que ideal!” (Cunha, 1905/1997, p.266). O escritor se dispunha a demonstrar que a Amazônia

“é uma terra que ainda se está preparando para o homem que a invadiu fora do tempo, impertinentemente, em plena arrumação de um cenário maravilhoso. Hei de tentar demonstrar isto. Mostrarei, talvez, esteiando-me nos mais secos números meteorológicos, que a natureza, aqui, soberanamente brutal ainda na expansão de suas energias, é uma perigosa adversária do homem. Pelo menos em nenhum outro ponto lhe impõe mais duramente o regime animal” (Cunha, 1905/1997, p.252).

          Um paraíso perdido não seria um livro escrito ao sabor das suas primeiras impressões, o tema requeria um grande esforço para compreender uma terra que “esconde-se em si mesma” e que “(...) para ser bem compreendida, requer o trato permanente de uma vida inteira” (Cunha, 1905/1997, p.266). O livro não foi escrito e a produção de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, após os trabalhos da Comissão de Reconhecimento, é composta de ensaios dispersos em artigos, discursos, crônicas e prefácios.

          Parte desses ensaios foi reunido por Euclides da Cunha, e publicada postumamente no livro À margem da história14 (1909). Para Foot Hardman, esses ensaios amazônicos, apesar de incompletos, formam um conjunto dos mais expressivos.


“À margem da história e da literatura, pode-se acrescentar. Pois entre os traços mais interessantes destes textos amazônicos, encontram-se, sem dúvida, alguns sentidos dessa ‘prosa perdida’, a meio caminho entre o ‘literário’ e o ‘não literário’, entre a natureza e a cultura, entre a geografia e a história, entre a civilização técnica e a barbárie, entre o elogio da ciência, da cultura letrada, e a dramatização épica dos seringueiros esquecidos, dos ‘rios em abandono’” (Hardman, 1992b, p.295).

          A primeira parte do livro À margem da história leva o subtítulo de “Terra sem história” e é iniciada pelas “impressões gerais” da Amazônia,

“o maior quadro de terra; porém chatamente rebatido num plano horizontal (...) o homem ali é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido - quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão (...). Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta toda a decoração interior” (Cunha, 1909/1994, p. 25-26).

          Baseando-se em Alfred Wallace e Frederick Hartt, os quais cita, a Amazônia é tratada com sendo, provavelmente, a região mais nova do mundo e, apesar de percorrida pelos viajantes naturalistas e cientistas, seria também a menos conhecida. Convidando à leitura dos trabalhos realizados pelos pesquisadores que estiveram na região entre o início do século passado ao início e século XX, “de Humboldt a Goeldi”, Euclides da Cunha afirma que nenhum deles deixou a calha principal do vale do Amazonas, o que seria ainda agravado pelo fato de cada qual haver se recolhido aos aspectos das suas especialidades, transformando-se em “geniais escrevedores de monografias”, resultando deste esforço uma bibliografia científica amazônica que refletiria bem a fisiografia amazônica: “é surpreendente, preciosíssima, desconexa. Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse esforço, bem pouco além do limiar de um mundo maravilhoso” (Cunha, 1909/1994, p.26-27).

          No preâmbulo do livro Inferno Verde, de Alberto Rangel, Euclides da Cunha fala de uma Amazônia conhecida aos fragmentos das especialidades, na qual

“aos geólogos, iludidos a princípio pelas aparências de uma falsa uniformidade estrutural, ainda não lhes sobrou o tempo para definirem um só horizonte paleontológico; aos botânicos não lhes chegam as vidas, adicionadas desde Martius a Jacques Huber, para atravessá-las à sombra de todas as palmeiras... Lemo-los (...) e, à medida que os distinguimos melhor, vai-se-nos turvando, mais e mais, o conspecto da fisionomia geral (...) Escapa-se-nos de todo a enormidade que só se pode medir repartida” (Cunha, 1907/1994, p.200).

          Este repartir para conhecer seria o único caminho a ser adotado pela ciência diante da terra misteriosa, cujo espaço esconde-se em si mesmo. Walter Bates, Frederick Hartt, os naturalistas do Museu Paraense e os que os seguissem, realizariam ali uma tarefa lenta e contínua de vitórias parciais, que em “futuro remotíssimo”, numa “guerra de mil anos contra o desconhecido” desvendariam, diante da inteligência humana, os seus derradeiros segredos. “Mas então não haverá segredos na própria Natureza. A definição dos últimos aspectos da Amazônia será o fecho de toda a História Natural...” (Cunha, 1907/1994, p.200-201).

          Antes que isto aconteça, Euclides da Cunha continua as suas “impressões gerais” na companhia dos “escrevedores de monografias”, aos quais segue apontando abundantemente, e discute o papel geológico do rio Amazonas, visto como um agente do qual se destaca a função destruidora sobre a capacidade criativa, por não formar um delta, transportando os sedimentos retirados pela ação da erosão, ao longo do seu trajeto, para o Atlântico, onde as correntes marinhas se encarregariam de dissipar todo o material, levando-o para lugares distantes, como o litoral da Geórgia e das Carolinas, nos Estados Unidos. Diante deste comportamento do grande rio, Euclides da Cunha cria a metáfora do brasileiro que, saltando naqueles lugares,

“é estrangeiro - e está pisando terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritoriedade, que é a pátria sem a terra, contrapõe-se uma outra, rudemente física que é a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de imigração telúrica. A terra abandona o homem” (Cunha, 1909/1994, p.27-31).

          Importa assinalar que as observações feitas por Euclides da Cunha aos trabalhos dos cientistas e viajantes naturalistas, que antes dele percorreram a Amazônia, se encaixam com perfeição em seu próprio trabalho, uma vez que dele também se pode dizer não haver se afastado da calha do Purus e ter produzido um relatório que é a monografia de um rio. Quase todos os seus ensaios amazônicos escritos após a viagem pelo Purus, têm este rio como pano de fundo. Assim acontece no “Rios em abandono” (um perfil do Purus completamente baseado no “ciclo vital” de Moris Davis), “Um clima caluniado”, “Os caucheiros”, “Judas-Asvero” (todos integrantes de À margem da história) e “Entre os seringais” (publicado na revista Kosmos em 1906).

          Assim, ganha sentido a observação de Franklin de Oliveira de que, nos textos que escreveu sobre a Amazônia, Euclides da Cunha apresenta um painel simplificado e generalizado a partir da experiência, obtido num único trecho daquela região: o rio Purus. “Este rio o absorveu: ele pesquisou, com a maior atenção, as suas cabeceiras, seu povoamento (da foz às nascentes); suas condições de navegabilidade; seus varadouros; a flora e as condições de trabalho e vida nos seus seringais” (Oliveira, 1983, p.98).





Uma caderneta de estudos


          Um paraíso perdido não foi escrito, mas não consta em nenhum dos materiais consultados que Euclides da Cunha tenha desistido do seu intento, é de supor que parte do tempo disponível entre os trabalhos profissionais e a preparação para o concurso para o Colégio Pedro II, tenha sido empregado nos estudos para a elaboração do livro. Parte destes estudos pode ser encontrada diretamente nos trabalhos que tratam da Amazônia, e é sobre ela que geralmente se debruçam os que se dedicam a este aspecto da produção euclidiana.

          Entendo, no entanto, que uma outra faceta dos esforços do escritor na preparação do livro, que não chegou a ser escrito, pode ser observada através da leitura de uma caderneta de estudos que se encontra no Grêmio Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo (SP)15. Embora não seja possível determinar qual a data do início das anotações, pode-se afirmar que esta caderneta contém anotações feitas até o ano de 1909, o que significa considerar que a mesma estava sendo utilizada no período em que o escritor se dedicava aos seus estudos para a produção de Um paraíso perdido16.

          A caderneta, inédita, contendo 252 páginas, não traz um estudo específico da Região Amazônica, mas caracteriza-se por uma peça bem mais abrangente, envolvendo todas as regiões do país. Às vezes são feitas longas transcrições dos trabalhos escolhidos. A maioria das transcrições envolve informações sobre o meio físico, principalmente os aspectos relacionados à geologia, clima, topografia e hidrografia. Também são comuns anotações sobre a flora, aparecendo, em menor número que estas, as anotações sobre a fauna e a história.

          Algumas anotações podem ser agrupadas por assunto, como por exemplo as páginas que são baseadas nos Relatórios do Ministro da Agricultura, com uma preocupação em relacionar os trabalhos de exploração de diversos rios, destacando-se a presença dos estudos de João Martins da Silva Coutinho sobre o Amazonas e suas afluentes, inclusive o Purus e o Madeira.

          Vários trabalhos sobre o Brasil que foram publicados no The Journal of the Royal Geographical Society, de Londres, entre 1862 e 1888 ocupam mais de trinta páginas da caderneta de Euclides da Cunha. Outra revista que passa a ter os seus artigos apontados predominantemente é a Brazilian Engineering and Mining Review. Aí, são os recursos minerais do Brasil o objeto mais destacado de atenção.

          A maior parte da caderneta está dominada pela leitura de geólogos ou profissionais afins a este ramo do conhecimento, vários deles contemporâneos e até mesmo amigos de Euclides da Cunha, a exemplo de Teodoro Sampaio, Orville Derby, Gonzaga de Campos, Arrojado Lisboa, Henry Gorceix e Eugênio Hussak.

          Como se pode verificar nas principais anotações contidas na caderneta de Euclides da Cunha, trata-se de estudos de grande abrangência. É possível interpretá-los como parte dos levantamentos do escritor para a elaboração de um livro sobre a Amazônia se, além das datas de alguns dos materiais utilizados e da possibilidade de que a idéia do livro não fora abandonada, levarmos em conta que, como já acontecera em Os sertões, existia em Euclides da Cunha um projeto maior de interpretação nacional.

          Euclides da Cunha encontrou dificuldades para integrar a Amazônia neste projeto de interpretação nacional e isto se deveu, em parte, ao fato de que os enfoques existentes, como os de Martius, Agassiz, Bates, Wallace, Hartt, Derby, Coutinho, Chandlles etc. “(...) não bastam porque, ainda que profundos, não se alargam numa visão de conjunto como queria Euclides” (Holanda, 1992, p.45). A esta observação pode ser acrescida a consideração de que se tratava de um esforço duplo: a busca de uma visão de conjunto da Amazônia em si e a inserção desta no universo mais amplo da natureza do Brasil. Assim, enquanto os “ensaios amazônicos” corresponderiam à primeira parte do esforço citado, a caderneta seria significativa para a segunda parte.

          Franklin de Oliveira acha possível que os “ensaios amazônicos” sejam, para o projeto de escrever Um paraíso perdido, o equivalente ao Diário de uma Expedição, para a elaboração de Os sertões, que só foi escrito após o regresso de Canudos, e para o que Euclides da Cunha “mobilizou todo o repertório de saberes que considerou essenciais à elaboração do seu livro. É provável que esta experiência se repetisse nos caso do seu segundo ‘livro vingador’” (Oliveira, 1983, p.100).

          A partir do conteúdo da caderneta e dos ensaios amazônicos pode-se admitir que, assim como em Os sertões, o traçado das condições físicas precederia o quadro antropológico e cultural. Também como em Os sertões, a geologia ganha destaque entre os cenários estudados, como se o autor mais uma vez pretendesse, antes de mais nada, descrever o anfiteatro onde atuariam os demais atores.


Notas:

1- Título extraído do livro Paradise Lost, do inglês John Milton.

2- Os “ensaios amazônicos” de Euclides da Cunha são compostos por: três artigos publicados no ano de 1904 no jornal O Estado de S. Paulo (“Conflito inevitável”, “Contra os caucheiros” e “Entre o Madeira e o Javari”), um artigo publicado no mesmo ano pelo jornal O País (“Contrastes e confrontos”), incluídos posteriormente no livro Contrastes e confrontos (1907) (juntamente com outros 22 artigos e estudos diversos); o artigo “Fronteira Sul do Amazonas: questões de limites”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo (1898); toda a primeira parte do livro À margem da História (1909) (“Terra sem história: impressões gerais”, “Rios em abandono”, “Um clima caluniado”, “Os caucheiros”, “Judas-Asvero”, “Brasileiros”, “A Transacreana”); o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus (1905) as “Notas complementares” a este relatório (1906) e o Relatório Confidencial ao Barão do Rio Branco (1905); o livro Peru versus Bolívia (1907); o artigo “Entre os seringais”, publicado na revista Kosmos (1906); o preâmbulo do livro Inferno verde de Alberto Rangel (1907) e mais entrevistas, discursos e correspondência.

3- Como as Comissões de Limites necessitavam realizar levantamentos de astronomia posicional, o Observatório Astronômico fornecia, com certa freqüência, parte dos seus quadros para estes trabalhos. Henrique Morize faz referência a participação de pessoal oriundo do Observatório nas Comissões de Limites com a Guiana Francesa, com a Bolívia e com a Argentina. Além de pessoal, o Observatório também fornecia diversos instrumentos para as Comissões, inclusive a do Alto Purus, que teve Euclides da Cunha como Chefe (Morize, 1927/1987, p.134).

4- Caucheiros era a denominação dada aos que se dedicavam à atividade nômade de extração da seiva do caucho. Concorrente da seringa na produção da borracha, o caucho difere desta pelo fato de não renovar a seiva que lhe é retirada, o que levava os caucheiros a derrubarem a árvore para a extração imediata da seiva e ao abandono da área em busca de novas árvores.

5- As cartas de Euclides da Cunha para os seus amigos, indicam que em 22 de dezembro de 1904 ele se encontrava em Fortaleza e teria chegado a Belém no dia 26 de dezembro, quando visitaria o Museu Paraense e o jornal Província do Pará, que registrou está passagem do escritor na edição do dia 27 de dezembro de 1904.

 

6- José Veríssimo participara do processo de recriação do Museu Paraense, em 1891, quando ocupara o cargo de Diretor Geral de Instrução Pública do Pará (1889-1891) (Veríssimo, 1894).

Emil Augusto Goeldi, zoólogo suíço (1859-1917), viera ao Brasil em 1884 e ocupara o cargo de subdiretor da seção de Zoologia do Museu Nacional (1885-1890). Exerceria o cargo de Diretor do Museu Paraense entre 1894 e 1907, período em que, “de fato, transformaria a instituição em um museu científico característico do final do século passado” (Lopes, 1993, p.275).

7- Jacques Huber (1867-1914), botânico suíço, veio para o Museu Paraense em 1895 e organizou a Seção de Botânica. Foi diretor do Museu Paraense a partir de 1907 até a sua morte.

8- Não existem maiores evidências nos textos de Euclides da Cunha sobre qual trabalho de Huber, vários deles publicados no Boletim do Museu Paraense, teria sido lido por ele quando da chegada a Manaus.

9- O Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Alto Purus foi assinado pelos representantes dos dois países (Euclides da Cunha e Pedro Buenaño, respectivamente), mas, em carta ao Barão do Rio Branco, datada de 30 de novembro de 1905, Euclides da Cunha afirma que o Relatório “está sendo feito por mim e, apenas traduzido e em poucos trechos modificado, pelo comissário peruano” (Cunha, 1905/1997, p.292). Esta declaração de autoria será assumida sempre que, neste trabalho, se tratar do Relatório. Utilizarei aqui a versão publicada com o título de “O rio Purus” no livro Um paraíso perdido: ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia, organizado por Leandro Tocantins, edição de 1994.

10- Será utilizada neste trabalho a versão publicada sob o título de “Geografia do alto Purus” ” no livro Um paraíso perdido: ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia, organizado por Leandro Tocantins, edição de 1994.

11- O Major Silva Coutinho, por causa das suas atividades de exploração de rios amazônicos, se tornou conhecido de Agassiz, que solicitou ao Imperador autorização para que o engenheiro o acompanhasse na sua viagem até a Amazônia. A participação de Silva Coutinho na expedição é elogiada por Agassiz, que teve nele “um colaborador dos mais preciosos, de atividade e devotamento à ciência infatigáveis, um guia sem igual e um amigo cuja afeição espero conservar para sempre” (Agassiz, 1975, p.91).

12- No próprio relatório da Comissão julga-se necessário explicar o que se chama varadouro: “Assim se denominam as veredas ou trechos rapidamente abertos e que têm por objeto passar de um rio para outro em curtíssimo tempo; às vezes encurtam grandes distâncias, comunicando seções de um mesmo rio” (Cunha, 1905/1994, p.120).

13- Além do varadouro ligando o Purus e o Madre de Dios, a Comissão indicaria ainda o local de existência do varadouro que ligaria os rios Madre de Dios e Ucaiale. Resolvia-se assim as dúvidas relacionadas à nascentes destes três rios.

14- O livro À margem da história esta estruturado em quatro partes, sendo que apenas a primeira delas, intitulada “Terra sem história”, trata de questões amazônicas. Na segunda parte o autor reuniu, sob o título de “Vários escritos” artigos sob um tema mais amplo, a América do Sul, a terceira parte é composta por um ensaio de história brasileira, “Da Independência à República”, enquanto a quarta parte é destinada ao ensaio “Estrelas indecifráveis”, onde o aparecimento da estrela guia dos reis magos é analisada sob o ponto de vista da astronomia (Cunha, 1909/1966a, p.221-384).

15- O Grêmio Euclides da Cunha possui ainda uma outra caderneta de estudos de Euclides da Cunha, sem título e sem data, e contendo, principalmente, trechos extraídos do trabalho “Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e Goiás, seguido de uma descrição corográfica de Goiás e dos roteiros desta província as de Mato Grosso e São Paulo” (1836) de Raimundo José da Cunha Matos. Entre os trechos transcritos de Cunha Matos aparecem anotações em francês, aparentemente acrescidas posteriormente pelo próprio Euclides, de trabalhos de P. S. Victor.

16- A “Carta geográfica do Território do Acre”, que integra a edição de 1907 do livro Navegação do Acre, de Plácido de Castro, encontra-se colada à página 45 da caderneta e parece indicar com maior clareza que Euclides da Cunha encontrava-se em plena fase de estudos daquela região.


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