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A EPOPÉIA FIN-DE-SIÈCLE
Reatualizando em chave científica o maravilhoso de Homero, Euclides
da Cunha impregnou de loucura e violência a sua principal obra
e embaralhou o lugar da civilização e da barbárie no Brasil
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por Jorge Coli
Os Sertões" se inscreve na tradição das epopéias. A metáfora "Tróia de
taipa", designando Canudos, que surge tantas vezes no livro, por si só
indica a "Ilíada" como precursor reivindicado. Poema épico moderno, ele
pressupõe não o maravilhoso mitológico, em que os deuses intervêm nas
ações humanas, mas o maravilhoso científico, capaz de explicar o
determinismo das ações. Embora as teorias que o sustentam se encontrem
hoje velhas ou mortas, os poderes da escrita interrogam e compreendem por
eles mesmos. Com Euclides da Cunha, o leitor revive o conflito pavoroso
dentro de seu quadro natural, mas vai além: à medida que avança no livro,
ele aprende. Há algo de iniciático nisto. Depois da última página de "Os
Sertões", nenhum leitor é mais o mesmo. Civilização e barbárie são
cruciais no livro. Mas surgem numa vertigem incapaz de definir o lugar de
uma e de outra. De início, os bárbaros são os arcaicos, os atrasados, a
população mística de Canudos. A civilização se encontra nas forças armadas
ou na capital sofisticada do país. Os antônimos se misturam, porém, no
decorrer da escrita, e um dos termos devora o outro. Euclides da Cunha
gostaria, com certeza, que a civilização e a racionalidade
triunfassem. "Os Sertões", porém, desmente essa vitória: barbárie e
loucura encontram-se em tudo, no misticismo dos sertanejos e nas
estratégias absurdas das forças armadas; no fanatismo extremado daquelas
paragens distantes, mas também nos irracionalismos das cidades litorâneas.
Uma vez decepada a cabeça do Conselheiro, o autor evoca uma sarabanda
coletiva dos civilizados: "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam
multidões em festa, aquele crânio". É possível perceber essa barbárie
primordial de modos diversos. Euclides da Cunha refere-se à "proverbial
indiferença com que nos volvemos às coisas desta terra, com uma inércia
cômoda de mendigos fartos". Para que nós, leitores, que somos estes
mendigos indignos e repletos, possamos acordar, fazem-se necessárias
imagens poderosas, truculentas. Por outro lado, o rigor científico afasta
o que Euclides da Cunha chama, de modo implacável, de "nossa
sentimentalidade suspeita" e autoriza uma brutalidade indiferente de
necropsia. Pode-se pensar também que o autor é um desiludido da República,
ao menos tal como ela se iniciava, e que a campanha de Canudos significou
um fracasso nas crenças em um expansionismo e em uma pedagogia da
civilização. No entanto, mais sutil que convicções e idéias, a barbárie
infiltra-se no texto, embebendo-o e provocando uma embriaguez
perturbadora. "Os Sertões", decerto, se horroriza com a ferocidade,
com a carnificina, mas há, nesse horror, um prazer inconfesso. Nisso o
livro mostra-se fruto de seu tempo. Para além das classificações habituais
dos movimentos literários ou artísticos -parnasianismo, simbolismo,
decadentismo, entre outros-, perpassa, nas décadas finais do século 19 e
nas primeiras do século 20, uma sensibilidade apurada e saturada, carente
de experiências fortes, que explorou a própria deliquescência.
Ortografia antiga Em "À Rebours" ["Às Avessas", 1884],
Huysmans traça o retrato dos antepassados de seu herói, "athlétiques
soudards", para melhor relevar a fragilidade doentia e nervosa do
protagonista contemporâneo, ávido de volúpias. Em resposta a esses desejos
de emoções fortes, dos "Poèmes Barbares" (1862), de Leconte de Lisle, à
"Sagração da Primavera" (1913), de Stravinsky, os artistas procuraram
emoções violentas, primitivas, "bárbaras", vazadas na mais sofisticada das
linguagens, em que erotismo e crueldade se mesclavam, em nuanças preciosas
de cores, matérias, sensações. "Os Sertões" é epopéia nascida nesses
tempos de refinamentos perversos, em que a barbárie era moda. Na
"História da Eternidade", Borges analisa traduções das "1.001 Noites" e
caracteriza aquela feita por volta de 1900 pelo dr. Mardrus: o texto
adquiriu novas configurações culturais, em que convivem, diz Borges,
"Salambô" [de Flaubert] e os balés russos. Isso ocorre também com "Os
Sertões". Nesse mundo das traduções, Leconte de Lisle é ainda sugestivo.
Ele traduziu incessantemente os gregos: Teócrito (1861), Homero, a
"Ilíada" (1866) e a "Odisséia" (1867), Ésquilo (1872), Sófocles (1877),
Eurípides (1885). Aqui, mais uma vez, paira a sombra de "Salambô" e o
prenúncio de Diaghilev. Leconte de Lisle transpõe esses textos para um
clima ao mesmo tempo bárbaro e requintado. Ele reescreve o nome dos
personagens, abandonando as formas banalizadas pela tradição: Akhilleus
por Aquiles, Athènaiè por Atenas, Pènélopéia por Penélope e assim por
diante. Essas formas introduziam um sabor ao mesmo tempo arcaico e
precioso. Na mesma direção, há um prazer suplementar em ler "Os
Sertões" nos velhos livros impressos com a ortografia antiga, cheia de
consoantes duplas, ph, th, y, k, w. Coerente com o apuro e a estranheza
vocabular de Euclides da Cunha, esse modo de escrever lhe era caro;
falta-nos uma rigorosa edição crítica, recente, que conservasse a
ortografia em que o livro foi escrito, o que complementaria, de modo
justo, pelo modo de grafar, o espírito do escrito. O clima artístico,
estético, das barbáries desejadas, que evoquei aqui, não era avesso às
ciências. Ao contrário, as artes incorporaram um prazer perverso oriundo
da frieza científica, cruel, em nome do saber. No Brasil, uma outra grande
obra, um quadro, oferecia um exemplo radical. "O Tiradentes Esquartejado",
de Pedro Américo (1894), legitimava-se no rigor de uma leitura histórica
não enfática ou apologética, mas "científica", objetiva, e dispunha o
corpo cortado com uma fleuma de anatomista. "Os Sertões" mostra-se
menos clean, e a decapitação do Conselheiro, feita no fundo da cova,
revelou "a face horrenda, empastada de escaras e de sânie". A caatinga é
vista como um jardim dos suplícios, para evocar aqui o livro de Octave
Mirbeau (1898), cruel, perverso, mas, de certa forma, delicioso. Nossa
epopéia "fin-de-siècle" também está prenhe de evolucionismo, de violências
naturais, de uma história humana iniciada em âmbito geológico, biológico,
animal. Isso não lhe é exclusivo: artistas de todas as artes, e dos
maiores, foram, naquela época, afetados por essas energias ao mesmo tempo
científicas e primitivas: basta lembrar Rodin e seu "Homem Que Anda" ou
seu "Pensador".
Jorge Coli é professor de história da arte na
Universidade Estadual de Campinas. Traduziu "Os Sertões" para o francês,
juntamente com Antoine Seel.
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Sertões" passo a passo
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