São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002



A EPOPÉIA FIN-DE-SIÈCLE


Reatualizando em chave científica o maravilhoso de Homero, Euclides da Cunha impregnou de loucura e violência a sua principal obra e embaralhou o lugar da civilização e da barbárie no Brasil


por Jorge Coli

Os Sertões" se inscreve na tradição das epopéias. A metáfora "Tróia de taipa", designando Canudos, que surge tantas vezes no livro, por si só indica a "Ilíada" como precursor reivindicado. Poema épico moderno, ele pressupõe não o maravilhoso mitológico, em que os deuses intervêm nas ações humanas, mas o maravilhoso científico, capaz de explicar o determinismo das ações. Embora as teorias que o sustentam se encontrem hoje velhas ou mortas, os poderes da escrita interrogam e compreendem por eles mesmos. Com Euclides da Cunha, o leitor revive o conflito pavoroso dentro de seu quadro natural, mas vai além: à medida que avança no livro, ele aprende. Há algo de iniciático nisto. Depois da última página de "Os Sertões", nenhum leitor é mais o mesmo.
Civilização e barbárie são cruciais no livro. Mas surgem numa vertigem incapaz de definir o lugar de uma e de outra. De início, os bárbaros são os arcaicos, os atrasados, a população mística de Canudos. A civilização se encontra nas forças armadas ou na capital sofisticada do país. Os antônimos se misturam, porém, no decorrer da escrita, e um dos termos devora o outro. Euclides da Cunha gostaria, com certeza, que a civilização e a racionalidade triunfassem.
"Os Sertões", porém, desmente essa vitória: barbárie e loucura encontram-se em tudo, no misticismo dos sertanejos e nas estratégias absurdas das forças armadas; no fanatismo extremado daquelas paragens distantes, mas também nos irracionalismos das cidades litorâneas. Uma vez decepada a cabeça do Conselheiro, o autor evoca uma sarabanda coletiva dos civilizados: "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio".
É possível perceber essa barbárie primordial de modos diversos. Euclides da Cunha refere-se à "proverbial indiferença com que nos volvemos às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos". Para que nós, leitores, que somos estes mendigos indignos e repletos, possamos acordar, fazem-se necessárias imagens poderosas, truculentas. Por outro lado, o rigor científico afasta o que Euclides da Cunha chama, de modo implacável, de "nossa sentimentalidade suspeita" e autoriza uma brutalidade indiferente de necropsia. Pode-se pensar também que o autor é um desiludido da República, ao menos tal como ela se iniciava, e que a campanha de Canudos significou um fracasso nas crenças em um expansionismo e em uma pedagogia da civilização. No entanto, mais sutil que convicções e idéias, a barbárie infiltra-se no texto, embebendo-o e provocando uma embriaguez perturbadora.
"Os Sertões", decerto, se horroriza com a ferocidade, com a carnificina, mas há, nesse horror, um prazer inconfesso. Nisso o livro mostra-se fruto de seu tempo. Para além das classificações habituais dos movimentos literários ou artísticos -parnasianismo, simbolismo, decadentismo, entre outros-, perpassa, nas décadas finais do século 19 e nas primeiras do século 20, uma sensibilidade apurada e saturada, carente de experiências fortes, que explorou a própria deliquescência.

Ortografia antiga Em "À Rebours" ["Às Avessas", 1884], Huysmans traça o retrato dos antepassados de seu herói, "athlétiques soudards", para melhor relevar a fragilidade doentia e nervosa do protagonista contemporâneo, ávido de volúpias. Em resposta a esses desejos de emoções fortes, dos "Poèmes Barbares" (1862), de Leconte de Lisle, à "Sagração da Primavera" (1913), de Stravinsky, os artistas procuraram emoções violentas, primitivas, "bárbaras", vazadas na mais sofisticada das linguagens, em que erotismo e crueldade se mesclavam, em nuanças preciosas de cores, matérias, sensações. "Os Sertões" é epopéia nascida nesses tempos de refinamentos perversos, em que a barbárie era moda.
Na "História da Eternidade", Borges analisa traduções das "1.001 Noites" e caracteriza aquela feita por volta de 1900 pelo dr. Mardrus: o texto adquiriu novas configurações culturais, em que convivem, diz Borges, "Salambô" [de Flaubert] e os balés russos. Isso ocorre também com "Os Sertões". Nesse mundo das traduções, Leconte de Lisle é ainda sugestivo. Ele traduziu incessantemente os gregos: Teócrito (1861), Homero, a "Ilíada" (1866) e a "Odisséia" (1867), Ésquilo (1872), Sófocles (1877), Eurípides (1885).
Aqui, mais uma vez, paira a sombra de "Salambô" e o prenúncio de Diaghilev. Leconte de Lisle transpõe esses textos para um clima ao mesmo tempo bárbaro e requintado. Ele reescreve o nome dos personagens, abandonando as formas banalizadas pela tradição: Akhilleus por Aquiles, Athènaiè por Atenas, Pènélopéia por Penélope e assim por diante. Essas formas introduziam um sabor ao mesmo tempo arcaico e precioso.
Na mesma direção, há um prazer suplementar em ler "Os Sertões" nos velhos livros impressos com a ortografia antiga, cheia de consoantes duplas, ph, th, y, k, w. Coerente com o apuro e a estranheza vocabular de Euclides da Cunha, esse modo de escrever lhe era caro; falta-nos uma rigorosa edição crítica, recente, que conservasse a ortografia em que o livro foi escrito, o que complementaria, de modo justo, pelo modo de grafar, o espírito do escrito.
O clima artístico, estético, das barbáries desejadas, que evoquei aqui, não era avesso às ciências. Ao contrário, as artes incorporaram um prazer perverso oriundo da frieza científica, cruel, em nome do saber. No Brasil, uma outra grande obra, um quadro, oferecia um exemplo radical. "O Tiradentes Esquartejado", de Pedro Américo (1894), legitimava-se no rigor de uma leitura histórica não enfática ou apologética, mas "científica", objetiva, e dispunha o corpo cortado com uma fleuma de anatomista.
"Os Sertões" mostra-se menos clean, e a decapitação do Conselheiro, feita no fundo da cova, revelou "a face horrenda, empastada de escaras e de sânie". A caatinga é vista como um jardim dos suplícios, para evocar aqui o livro de Octave Mirbeau (1898), cruel, perverso, mas, de certa forma, delicioso. Nossa epopéia "fin-de-siècle" também está prenhe de evolucionismo, de violências naturais, de uma história humana iniciada em âmbito geológico, biológico, animal. Isso não lhe é exclusivo: artistas de todas as artes, e dos maiores, foram, naquela época, afetados por essas energias ao mesmo tempo científicas e primitivas: basta lembrar Rodin e seu "Homem Que Anda" ou seu "Pensador".


Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas. Traduziu "Os Sertões" para o francês, juntamente com Antoine Seel.


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