São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002



"OS SERTÕES"
PASSO A PASSO


"Os Sertões" foi publicado pela editora Laemmert em 2/ 12/1902, com 637 páginas, contendo desenhos de paisagens e mapas geológicos, botânicos e geográficos como ilustrações, além de fotografias do conflito feitas por Flávio de Barros. No dia seguinte, um artigo elogioso do crítico literário paraense José Veríssimo, publicado no "Correio da Manhã", o apontava como obra de literatura, história e ciência, iniciando um padrão de interpretação sustentado por muito tempo. Veríssimo censurava, porém, o abuso de termos técnicos e o rebuscamento do estilo. Seguiram-se artigos de Coelho Neto, em "O Estado de S. Paulo", e de Araripe Júnior, no "Jornal do Commercio", atacando o colega paraense e exaltando o livro. Euclides da Cunha havia voltado deprimido e doente da cobertura da campanha de Canudos e demorou quatro anos para concluir o livro. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo (SP), onde o autor viveu de 1898 a 1901 executando um trabalho de engenharia pública (construção de uma ponte metálica em substituição a uma outra, destruída em uma enchente). É o relato mais famoso da Guerra de Canudos (novembro de 1896 a outubro de 1897), que terminou com o massacre pelas Forças Armadas do povoado liderado por Antônio Conselheiro (1830-97).
Entre as principais edições da obra de Euclides estão a de Alfredo Bosi, com texto cotejado e estabelecido por Hersílio Ângelo (ed. Cultrix, 1975), e a "Edição Crítica de "Os Sertões'" (Brasiliense, 1985), por Walnice Nogueira Galvão, que é considerada a edição de referência. Walnice Galvão também organizou, com Oswaldo Galotti, a "Correspondência de Euclides da Cunha" (Edusp, 1997), com quase 400 cartas do escritor. Em 2001, saiu outra edição -"Os Sertões - Campanha de Canudos" (Ateliê Editorial/Imprensa Oficial do Estado/Arquivo do Estado)-, em volume alentado, embora sem pretender ser crítica, organizada por Leopoldo M. Bernucci.
A obra-prima de Euclides é dividida em três partes: "A Terra", "O Homem" e "A Luta".

  A Terra Estudo da natureza que simula um vôo panorâmico sobre o planalto para descrever a geografia brasileira desde as escarpas do litoral ao sul, passando pela beira-mar do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia rumo à bacia do rio São Francisco, até o vale do rio Vaza-Barris, à margem do qual se encontrava a comunidade de Belo Monte. "O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas".
Além da explanação do clima semi-árido e da caatinga, Euclides aborda o problema das secas da região. Espécie de versão laica do "Gênesis", a primeira parte seria uma recriação de "mundos revoltos e instáveis, varridos por mares pré-históricos e labaredas bíblicas", em que o autor desce às profundezas do solo e recua até a origem da região e seus habitantes "para explicar a irrupção quase vulcânica do Conselheiro e de seus seguidores".
Outra iconologia que Euclides obtém na comparação entre a natureza e Canudos é a antecipação, pelo cenário árido, da tragédia: assim, as cabeças-de-frade estendidas sobre as pedras criariam "a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica". Para sustentar a profecia de Conselheiro, segundo a qual o sertão viraria mar, apóia teorias controversas sobre a existência pré-histórica de mar na região de Canudos. A propósito da passagem "em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão", Roberto Ventura sublinha que, designando zonas úmidas entre o litoral e o semi-árido, "praia" simboliza uma "terra de promissão, capaz de abrir as portas do paraíso".

  O Homem Estudo do sertanejo ou, em suas palavras, dos "traços mais expressivos das sub-raças sertanejas", tributário que era de teorias deterministas da época. Euclides afirmava que os sertanejos estavam destinados ao desaparecimento ante as exigências da civilização: "Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo".
Tendo por base concepções racistas de teóricos como o austríaco Ludwig Gumplowicz, Euclides apresentava uma visão fatalista do Brasil como resultado dos malefícios da mestiçagem. Os "mulatos" do litoral seriam desequilibrados por resultarem da mistura entre brancos e negros, e os "curibocas" do sertão apresentariam vantagem em relação àqueles devido ao isolamento histórico que contribuiria em sua evolução racial e cultural: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral".

  A Luta Narrativa da guerra de Canudos propriamente dita, em que o autor evidencia o fanatismo de ambas as partes: "A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada". Os soldados cultuavam a memória do marechal Floriano Peixoto assim como os jagunços aclamavam Antônio Conselheiro. Euclides observava tudo do alto do morro, ao lado dos oficias do alto comando e da comissão de engenharia: "Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos. A cena -real, concreta, iniludível- aparecia-lhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda, naquele palco revolto, no resplendor sinistro de uma gambiarra de incêndios".
A descrição da guerra encerra um paradoxo: o de, apesar de pretender-se denúncia do crime cometido em Canudos, não relata o massacre dos prisioneiros e a destruição da cidade, que seriam o mote principal de sua acusação contra as Forças Armadas. O autor argumenta tratar-se do inenarrável: "Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos".


Fonte: "Folha Explica "Os Sertões'" (2002, Publifolha), de Roberto Ventura.

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