São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002



EUCLIDES CONSELHEIRO DA CUNHA


Leia com exclusividade um trecho da biografia de Euclides da Cunha que o crítico Roberto Ventura, morto em agosto passado, estava preparando e em que destacava o papel do escritor na construção do líder messiânico


por Roberto Ventura

Mais importante do que apontar estes e outros erros que Euclides pode ter cometido na avaliação da comunidade e na reconstrução da guerra, é perceber como o escritor projetou sobre Antônio Conselheiro e Canudos muitas de suas obsessões, como o temor da sexualidade, da irracionalidade, da loucura, do caos e da anarquia. Viu Conselheiro e Canudos como desvios históricos capazes de ameaçar a linha reta que ele, Euclides, se impusera desde a juventude.
Recorria, em suas cartas aos amigos e ao pai, a esta imagem da linha reta para expressar sua fidelidade aos princípios éticos, ancorada na crença no progresso linear e inelutável da humanidade.
Surge, nas páginas de "Os Sertões", um Antônio Conselheiro ameaçador, ermitão sombrio, que escapou do hospício para entrar na história. Enfocou o Conselheiro como personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à queda na loucura e ao conflito com a República. Canudos surgia como uma povoação estranha, labirinto desesperador de becos estreitíssimos, com casas que se acumulavam em "absoluta desordem", como se tudo aquilo tivesse sido construído febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos.

Retorno mágico Euclides reinterpretou a guerra a partir de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas, encontrados em papéis e cadernos nas ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem de autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em "Os Sertões", o retrato do líder da comunidade. Propôs uma outra visão de Canudos como movimento messiânico e sebastianista, em que haveria a crença no retorno mágico do rei português d. Sebastião, para derrotar as forças da República e restaurar a monarquia.
Segundo Euclides, o isolamento histórico da sociedade sertaneja permitiu a preservação dos mitos sebastianistas, transmitidos com a colonização portuguesa. O movimento de Canudos teria reatualizado o mito de d. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, na tentativa de expandir os domínios portugueses na África. Com a morte de d. Sebastião, o trono português ficou vago e Portugal foi anexado a Castela, só tendo recuperado a autonomia política em 1640.
Surgiu o mito do retorno glorioso do monarca desaparecido, que se manteve em Portugal até o século 19. Este mito se manifestou, no Brasil, em movimentos messiânicos ou milenaristas, como na Cidade do Paraíso Terrestre, de 1817 a 1820, e em Pedra Bonita, de 1836 a 1838, ambos em Pernambuco, ou no Contestado, região entre o Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916. A crença esteve presente na vila de Canudos, de 1893 a 1897.
Construiu, com base nas profecias e nos poemas recolhidos em Canudos, um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua própria cultura, letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica.
O conflito armado trouxe uma tensão máxima entre a sua cultura e a cultura do oponente.
Tentou dar voz ao outro, objeto de seu discurso e inimigo de suas concepções políticas. Procurou incorporar ao seu discurso textos orais, produzidos segundo uma lógica mítica e religiosa que lhe era estranha. Mas tais fontes orais acabaram por servir de legitimação a uma engenhosa interpretação histórico-cultural, em que opôs tipos humanos, tempos históricos e lugares geográficos: o sertanejo ao mulato, a monarquia à República, o sertão ao litoral. Euclides se baseou nos poemas e profecias que recolheu em Canudos e transcreveu em uma caderneta de bolso. Os poemas fazem parte de dois abc's, narrativas da guerra, estruturadas como sequência de estrofes iniciadas com as letras do alfabeto, que servem como recurso de memorização. Copiou ainda duas profecias apocalípticas, que julgou serem do próprio Conselheiro.
Tais poemas e profecias revelariam, para Euclides, a visão messiânica comum aos habitantes de Canudos, em que a República aparece como obra do anticristo e o indício do fim dos tempos, quando d. Sebastião ressurgiria, com seus exércitos, para restabelecer a monarquia. As referências a d. Sebastião aparecem em uma das profecias e em duas quadras de um dos poemas transcritos na caderneta. Euclides citou parte destes textos em "Os Sertões".
Comentou, de forma negativa, estes manuscritos, que desqualificou como "pobres papéis", com "ortografia bárbara" e "escrita irregular e feia", que mostrariam o "pensamento torturado" dos sertanejos: "Valiam tudo porque nada valiam". Conselheiro pregava com uma "oratória bárbara e arrepiadora", "misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas...".

A "lei do Cão" Citou, em "Os Sertões", sete quadras de um dos abc's, que colocou em ordem cronológica e histórica, de forma a sintetizar a concepção mítica e religiosa dos seguidores do Conselheiro, que acreditariam no retorno de d. Sebastião. O primeiro abc, composto de 28 quadras e um terceto, contém uma narrativa popular dos primeiros anos da república, que introduziu o casamento civil, perseguiu Antônio Conselheiro e trouxe guerras civis e especulação financeira. Duas dessas quadras se referem à vinda de d. Sebastião, para extinguir o casamento civil e punir aqueles que se encontrariam sob a República:
"Sebastião já chegou/
comta muito rijimento/
acabando com o Civil/
e fazendo os casamento//
Visita vem fazer
Rei D. Sebastião
Coitadinho d'aquele pobre
que estiver nalei de Cão".
A "lei do Cão", contrária à lei de Deus, é a eleição dos governantes, introduzida pela República, vista pelos sertanejos como "obra do demônio":
"Muito disgraçados eles/
de fazerem alei-ção/
abatendo alei de Deus/
suspendendo alei do Cão".
A República é tida como o reino do anticristo, personagem do Apocalipse que chegará antes do fim do mundo, para semear a impiedade e a discórdia até ser vencido pelas forças divinas. Caberia ao Conselheiro a tarefa de derrotar o anticristo republicano:
Nassio o Antecristo/
p.a o mundo governar/
ahi estar o concelheiro/
p.a dele nos livrar".
O segundo conjunto de versos é o "abc das incredulidade", com 26 estrofes, que Euclides copiou na caderneta, mas não chegou a utilizar em "Os Sertões". Este abc foi escrito em comemoração da vitória de Canudos contra a terceira expedição. Seu comandante, o coronel Moreira César, vindo a Canudos "para dar carne aos urubu", recebe a alcunha de "corta-cabeças" ou "corta-pescoço", por seus atos de violência na repressão à Revolução Federalista, em Santa Catarina. Morto em Canudos, seu corpo foi retalhado e queimado pelos jagunços após ficar exposto por alguns dias.
Euclides mencionou, em "Os Sertões", duas profecias apocalípticas que atribuiu, de forma errônea, a Antônio Conselheiro: a profecia das nações e a profecia de Jerusalém. A profecia das nações se refere ao fim do mundo, em que irá aparecer um anjo, para fazer pregações, fundar cidades e construir igrejas e capelas. É provável que os sertanejos identificassem o Conselheiro a esse anjo. São previstas desgraças, como a construção de estradas de ferro, a grande fome, a prisão de fiéis e guerras civis, que antecederão o surgimento de d. Sebastião e de Jesus, para inaugurar uma nova era: "Em verdade vos digo, quando as Nações brigarem com as Nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prúcia com a Prúcia; das ondas do mar dom Sebastião sair com todo seu exército, em guerra, e restituiu em guerra".

Visão escatológica A profecia de Jerusalém é datada de 1890, tendo Belo Monte, ou Canudos, como local. Essas referências são problemáticas, pois Conselheiro só se fixou em Canudos em 1893, três anos depois da data atribuída ao texto. Não há referências a d. Sebastião nessa profecia, que contém uma cronologia política, que vai da Independência do Brasil até o fim do mundo, anunciado para 1901, passando pela abolição da escravatura e a Proclamação da República. São previstos o apagar de todas as luzes, seguido de chuvas de estrelas e queda de meteoros, até que apareça o pastor capaz de guiar o rebanho. Guerras são profetizadas para o ano de 1896, que coincide com o início do conflito de Canudos: "Em 1896 há de haver guerra Nação com a mesma Nação, o sangue há de correr na terra".
Ambas as profecias contêm uma visão escatológica, que anuncia o fim do mundo e a criação do reino dos céus na Terra, em que serão eliminadas as diferenças sociais -"não se conhecerá rico nem pobre"- e erradicados os conflitos políticos pela unificação dos homens sob a autoridade divina: "um só pastor e um só rebanho". As regiões climáticas também serão invertidas e o sertão se tornará terra de promissão, com fartura de carne e peixe, ao virar "praia", expressão utilizada para designar as zonas úmidas entre o litoral e o semi-árido: "Em 1894 há de vir rebanhos de mil correndo do centro da Praia para o certão então o certão virará Praia e a Praia virará certão".
Os poemas populares, junto com as profecias, encenam a história de forma cíclica e redentora, em oposição à representação linear-evolutiva adotada por republicanos. Trata-se do conflito entre periodizações distintas da história. As fontes orais indicam a existência de algum tipo de crença sebastianista em Canudos, ainda que não se possa afirmar, com precisão, sobre o grau de adesão dos habitantes da vila a tais concepções.


O catolicismo nos sermões do Conselheiro revela que o sebastianismo pode ter sido menos difundido do que Euclides supôs


Um pouco de poesia e mistério Euclides reconheceu, nas reportagens escritas para "O Estado de S.Paulo", que havia subestimado a resistência dos sertanejos e sua capacidade de sustentação da luta. Observou, em artigo de 16 de agosto de 1897, que o combate apresentava uma "feição primitiva, incompreensível, misteriosa". Surpreendia-se que os jagunços, já em número reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco à cidade, em vez de fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação.
Euclides procurou esclarecer o mistério, ao defender, em "Os Sertões", a existência de crenças sebastianistas em Canudos, que permitiriam explicar alguns dos aspectos subterrâneos da guerra, como o apelo da mensagem do Conselheiro e a resistência heróica dos combatentes. O catolicismo devocional presente nos sermões do Conselheiro revela, porém, que o sebastianismo pode ter sido menos difundido do que Euclides supôs.
Machado de Assis já havia enfocado tal feição de mistério, ao escrever sobre Canudos na "Gazeta de Notícias". Em crônica de 22 de julho de 1894, comparava, com bastante humor, os seguidores do Conselheiro aos piratas das canções românticas de Victor Hugo. Deixava-se encantar pelo toque de poesia e mistério que envolvia o líder religioso, além de criticar a imprecisão das notícias sobre o movimento.
Machado protestou, em 31 de janeiro de 1897, já em plena guerra, contra a perseguição que se fazia ao Conselheiro e à sua gente. Comentava que pouco se sabia sobre sua seita e doutrina, capazes de mobilizar milhares de seguidores: "De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos". Como as mortes nos combates não afastaram os fiéis de seu líder, perguntava-se: "Que vínculo é esse [...] que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?". Devido à falta de informações sobre o grupo, concluía que só restava a imaginação para descobrir a doutrina da seita e a poesia para floreá-la.


Roberto Ventura foi professor de teoria literária e literatura comparada na USP e um dos grandes especialistas na obra de Euclides da Cunha. Escreveu, entre outros "Estilo Tropical" (Companhia das Letras), "Folha Explica "Casa-Grande & Senzala'" e "Folha Explica "Os Sertões'" (ambos pelo Publifolha).


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