Duas vezes morto,
duas ressuscitado

Excertos de um diário do sertão: as pessoas,
os locais, o estigma de um arraial malfadado


Foto: Orlando Brito

Foto: Flavio de Barros
A obra de Travessa
no Alto Alegre: conjunto
de igreja, museu, salão,
cruz e estátua do Conselheiro.
Ao lado: vista do arraial primitivo

Cigarro não ofende?

Não, não ofende, e então Manuel Alves, mais conhecido por "Manuel Travessa", de 57 anos mas aparentando mais, pele morena e estorricada de sertanejo, chapéu de couro, dentes ruins, acende o cigarrinho que é seu companheiro inseparável. Estamos no carro que conduz o autor desta reportagem e o fotógrafo de VEJA do lugar chamado Bendegó, dentro do município de Canudos, à beira da estrada, antes de chegar à cidade propriamente dita, ao lugar chamado Alto Alegre, uma elevação à margem do lago no fundo do qual se encontram as ruínas da antiga Canudos. Quem foi Antônio Conselheiro para Manuel Travessa?

No meu pensamento, ele era igualmente que um crente, hoje. Há 100 anos, não existia crente. Eu sempre penso que pode ter existido um ciúme da Igreja Católica pelo Antônio Conselheiro.

Euclides da Cunha escreveu em Os Sertões que a cidade de Queimadas, para onde as tropas iam de trem, desde Salvador, antes de enfrentar os caminhos poeirentos do sertão, assinalava uma fronteira: "Salta-se do trem; transpõem-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça o sertão". Está-se no ponto de encontro de duas sociedades alheias uma à outra, segundo Euclides. "O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam vertiginosamente os patrícios do litoral, que o não conhecem." Entre um e outro há uma "discordância absoluta", segundo o autor, o que acaba por desequilibrar "o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo" e "perturba deploravelmente a unidade nacional". Os soldados vindos de outras partes do país, chega a escrever Euclides, tinham a sensação de seguir para uma guerra externa. "Sentiam-se fora do Brasil."

Há exagero nisso, certamente. Já havia exagero há 100 anos, e haverá ainda mais hoje, em considerar o sertão um mundo à parte do resto do Brasil. Mas, por mais que hoje em dia se esteja familiarizado com a região, por mais romance regionalista que se tenha lido, filme do cinema novo que se tenha visto, por mais música e novela de TV que se tenha digerido, o forasteiro será tomado pela sensação de um mundo meio encantado, a começar pela língua que ali se pratica. Dá vontade de reproduzir, tal e qual, a fala de Manuel Travessa.

Ele não foi um destruidor (o Conselheiro). Não foi que nem Lampião. Ninguém diz que ele matou alguém. Era igual que Assembléia de Deus, Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa... essa... como se diz?... essa religião.

Manuel Travessa entre as peças
de seu museu: um homem de iniciativas
Foto: Orlando Brito  

Manuel Travessa não é um qualquer. Pode ser qualificado como um empresário do sertão. Um empresário quase miserável, que vive numa casa que Antonio Ermírio de Moraes não imagina possa preencher as necessidades de um ser humano, come um tipo de comida que Abílio Diniz não comeu nem quando foi seqüestrado e veste uma roupa que Moreira Ferreira estranharia muito num companheiro da Fiesp, mas um empresário um farejador de oportunidades, campeão da iniciativa. Ele já tinha um bar naquele lugar chamado Bendegó e, agora que o asfalto está chegando à região, antevendo uma ampliação do mercado, abriu outro.

Mais significativas são suas realizações no Alto Alegre, um lugar batizado por ele próprio ao chegar à região, em 1971, depois das muitas perambulações pelo sertão, a partir de sua Monte Santo natal. Só havia três casas no local, e a elas ele acrescentou a sua. Começou a notar então que freqüentemente aparecia gente interessada em Canudos, querendo informações e em busca de vestígios da guerra. Para tentar satisfazer essa demanda, Manuel Travessa iniciou, em 1975, uma coleção de relíquias espingardas, balas, capacetes de soldado. Objetos que achava pelas redondezas ou comprava dos vizinhos. Hoje essa coleção está reunida numa casinha que construiu para abrigá-la, composta de um só cômodo, de não mais que 2 por 2 metros, a que, de maneira sem dúvida pretensiosa, chama de "museu". Ao lado de uma tralha que realmente tem a ver com a guerra, o museu de Travessa exibe máquinas de costura velhas e até um buda de porcelana.

Ao lado do museu, Manuel Travessa levantou uma capela, e ao lado da capela, um salão de dança. Assim, pode-se rezar pelo Conselheiro no local ou, alternativamente, convocar um forró. O conjunto de museu-igreja-salão completa-se com uma escultura do Conselheiro em madeira e a de um canhão também em madeira, além de duas cruzes, para compor o que poderia ser chamado de praça monumental do Alto Alegre, se monumental fosse, ou mesmo se praça fosse na verdade é um conjunto de toscas construções erigidas na terra dura de um descampado. De qualquer forma, é o que se tem. Quem vai ao povoado que hoje ostenta o nome de Canudos não encontrará recordação do Conselheiro. O Alto Alegre, a 10 quilômetros de distância, por iniciativa do empresário sertanejo Manuel Travessa, preenche essa lacuna.

Contam-se três Canudos, ao longo da História. A primeira, do Conselheiro, depois de arrasada, ficou no seguinte estado, de acordo com o depoimento de um ex-conselheirista, Manuel Ciriaco, ao jornalista Odorico Tavares, em 1947, quando a guerra completava cinqüenta anos:

"Era de fazer medo. A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a gente via correndo pelos cadáveres e urubu fazia nuvem. Tudo abandonado, ninguém ficou enterrado. Foi quando Angelo dos Reis, por sua própria caridade, trouxe uns homens e enterrou ali mesmo a jagunçada morta. Todas essas colinas que o senhor vê estão cheias de ossos de jagunços. Acabou-se Canudos e, durante uns dez anos, só se vinha aqui de passagem".

O Angelo dos Reis citado era um fazendeiro da região. Dez anos decorridos, durante os quais o simples nome de Canudos fazia medo na região era sinônimo de atrocidade, perseguição, constrangimento , o local começou a se repovoar. Alguns eram antigos habitantes que voltavam. Nascia uma segunda Canudos, sobre os escombros da primeira. Na década de 50, foi projetado um açude que, represando as águas do Rio Vaza-Barris, acabaria por inundar o povoado. Será que a represa precisaria ser justamente ali, fazendo submergir um lugar histórico como aquele? A pergunta foi feita pelo escritor Paulo Dantas, em 1958, ao engenheiro que chefiava as obras, José Fernandes Peixoto. "Isso é conversa de poetas", respondeu o engenheiro. "O que esta região precisa é de água. A tradição é muito bonita, mas não mata a sede nem a fome de ninguém." Em 1969, depois de sucessivos atrasos, a represa finalmente inundou Canudos. A população a essa altura já tinha sido transferida para o povoado chamado Cocorobó mesmo nome do açude , mais tarde rebatizado de Canudos. Esta é a Canudos atual, a terceira.

Em junho último, foi inaugurado o Parque Estadual de Canudos. Estendendo-se ao sul do açude, compreende uma área de 18 quilômetros quadrados, em que se encontram sítios familiares a quem conhece a história da guerra: o Alto do Mário, o ponto mais elevado, de onde hoje se descortinam o açude e as montanhas ao redor; a Fazenda Velha ruínas de uma antiga sede de fazenda na qual os conselheiristas fixaram um posto avançado que resistiu até os dias finais; o Morro da Favela. Próximo ao Alto do Mário, situa-se uma grande vala comum, possivelmente vizinha do hospital de campanha dos militares, onde eram enterrados os soldados. É o chamado "Vale da Morte".

O Parque foi uma idéia do professor Renato Ferraz, um dos mais ativos lutadores pela memória de Canudos pesquisador, organizador de seminários e eventos sobre o assunto. Ferraz sabe tudo o que é possível saber de Canudos. Só falta escrever um livro a respeito, algo que promete vagamente para o futuro.

A parte visível do Parque Estadual de Canudos, que é administrado pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, consiste, por enquanto, num portal de entrada e em placas de localização dos sítios históricos. No decreto de sua criação, pelo governo do Estado, estatui-se que deverão funcionar no local "museu, laboratório de arqueologia, estação experimental de meteorologia, escolas experimentais e outras instituições". Um trabalho de exploração arqueológica está em curso, a cargo do arqueólogo paulista Paulo Zanatini. Trata-se de uma arqueologia histórica, basicamente procuram-se trincheiras, barricadas, armas ou restos de armas, balas, objetos de uso cotidiano dos soldados ou sertanejos, ossadas, sepulcros. Uma das últimas descobertas de Zanatini foi que as ruínas até agora consideradas da Fazenda Velha são de uma casa mais recente, do início do século. A Fazenda Velha verdadeira, da época da guerra, está soterrada embaixo dessas ruínas.

No Alto Alegre, uma trinca de garotos de 11 ou 12 anos cerca-nos e se dispõe a levar-nos a um passeio de bote pelo lago. Um dos meninos, Gilmar, conta que o "painho" uma vez achou uma canela no chão. Ou seja, um osso da perna, ou o que ele supôs fosse um osso da perna. Não se pode ficar com esses achados, explica Gilmar. O pai então deu para um alemão. Um alemão? Não, ele não sabe direito se era alemão. Mas sabe que era uma pessoa que "não fala igual que a gente, não".

No bote, passeando pelo lago, percebem-se, quase à superfície, encobertos somente por um palmo de água, as guarnições laterais de uma antiga ponte. Essa ponte fazia parte da estrada que cortava a segunda Canudos. Há também uma ruína que aponta para fora do lago. Trata-se da parte superior do portal de um cemitério, também da segunda Canudos.

Da Canudos do Conselheiro, a única construção que sobrou de pé, ao fim da guerra, foi um cruzeiro que se erguia à frente da igreja velha. Às vésperas da inundação da área, o cruzeiro, de madeira, foi transportado para o povoado de Cocorobó, para onde estava sendo transferida a população. Ficou o pedestal de cimento em que ele se incrustava. No ano passado, o nível do açude baixou sensivelmente, e o pedestal, ou o que resta dele, emergiu das águas. Um pouco do Conselheiro voltava à tona.

Ferraz, aquele que sabe tudo de Canudos e teve a idéia de instituir o parque, serviu de guia ao peruano Mario Vargas Llosa, em 1979, quando este realizava as pesquisas para seu romance sobre a Guerra de Canudos, A Guerra do Fim do Mundo.

Um dia, Vargas Llosa e Renato Ferraz fizeram uma escala na cidade sergipana de Simão Dias. No hotel onde se hospedaram, rústico como todos na região, foram recebidos por um funcionário homossexual sim, há disso também no sertão. Logo depois, invade o quarto uma senhora que, sem dúvida guiada pelas informações do funcionário, queria conhecer o atraente estrangeiro. Ela se ouriça: "Argentino!, argentino!", exclamava, como uma fã de galã de televisão. Era a dona do hotel, dona Raimunda. Quando se preparavam para partir da cidade, dona Raimunda pediu uma carona até Lagarto. Atenderam-lhe ao pedido, e ela viajou no banco de trás. Quando chegaram a Lagarto, dona Raimunda foi saindo devagar do carro, esgueirando-se, no difícil movimento de deixar o banco de trás de um Fusca... e então deu o bote. Numa manobra fulminante, prendeu-se ao pescoço de Vargas Llosa e pespegou-lhe um beijo na boca.

Manuel Travessa diz que ouviu uma vez do avô que Canudos seria destruída três vezes.

A primeira vez pelo fogo, a segunda pela água e a terceira pelo pó. Pelo fogo foi a guerra. Pela água, a represa. Só falta pelo pó.

Esse avô de Travessa era o materno, de nome Mundu, um criador de cabras. Ele explica que a mãe teve treze filhos antes dele. Depois, "me conseguiu". E o pai? Do pai, Manuel Travessa não sabe: "Sou filho de mulher particular". Manuel Travessa subiu na vida e hoje, além de empresário, é político elegeu-se vereador, em Canudos. Como seria essa terceira destruição da cidade de que falava seu avô?

O que espero é que a barragem estoure e essa lama se torre no pó. Aí ninguém vai escapar desse pó. Isso é o que eu penso.

Próxima

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