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Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças, o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans: Moreira César foi ao céu Antônio Moreira César era o seu nome, coronel a sua patente. O oficial talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano. Euclides da Cunha o descreve: "O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses , era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo". E, no entanto, quanto respeito e quanto medo impunha à sua volta. Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime florianista a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. Em Santa Catarina, para onde foi enviado, com plenos poderes, para apagar os últimos fogos da Revolução Federalista, distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão. "Na Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra."
O elenco da epopéia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo de Moreira César; cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se tornar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o "comandante da rua", como era conhecido "rua" no sentido de "arraial", de "cidade", de "área urbana", e comandante porque era o chefe militar supremo; Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e entrevado: "Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar". A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial, Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. A Guerra de Canudos é tão rica de personagens quanto a releve-se a insistência na comparação de Tróia, e de personagens que, igualmente, foram se credenciando à mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes atribuem. Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Holywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general Custer e Touro Sentado. Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco, a noroeste de Canudos, de que, por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos estamos em novembro de 1896 uma expedição punitiva. Tinha 104 homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr. Terminava aquela que passou para a História como a primeira expedição.
A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho 550 homens e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes. Monte Santo, 100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Serra de Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de majestoso pano de fundo um monte sulcado por um caminho que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista, e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". Lá no alto, no fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam os passos da Paixão. Foi construída no século XVIII, 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 quilômetros, é penosa. O caminho é não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e descortina-se um panorama deslumbrante da região. O Monte Santo de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém , é o mais eloqüente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência, de severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados. Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo, Welcome, Bienvenido. Monte Santo, Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. O caminho de pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar: que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo evoca tanto a religião, como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos. No tempo de suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial, Antônio Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou, com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da montanha. Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade, antes de se pôr a caminho. E, então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que, ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial insurreto. A humilhação era demasiada. O irredentismo dos "fanáticos" sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão freqüentemente caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um "comunista", no outro como "neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação monarquista. Lembre-se de que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que sem dúvida se ramificava país afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe tinha até apoio do exterior. Para debelá-la, só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1 300 homens que formariam na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe, apontarão ao visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. Em Queimadas, Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do mesmo nome, há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo: "Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março de 1897, o cadáver do coronel Moreira César..." O marco, mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último, centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-los. À medida que se aproximava, o otimismo aumentava: "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César tinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques, durante a campanha de Canudos. Além disso, apresentava um temperamento instável e impulsivo. Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. Em Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa, sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas o que, além de facilitar a movimentação do adversário, familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia, que não podia disparar sob pena de atingir os próprios companheiros. A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria, mais desastroso ainda, em se tratando não de uma planície aberta, mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia, o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além. Atingido no ventre por uma bala, vergou-se, largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em Os Sertões. Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranqüila -- proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si". Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho, para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem. Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquista, o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia. Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque reaparece, são e salvo, entre os últimos fujões retardatários, e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória, veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte: Coronel Moreira César
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