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Numa casinha solitária nas Umburanas, a poucos metros do local onde foi abandonado o corpo do coronel Moreira César, vive "seu" João de Régis, 90 anos completados no dia 12 de junho. João de Régis é um sertanejo magrinho e miúdo, meigo e humilde. É filho de conselheiristas. O pai, Reginaldo José de Matos, e a mãe, Joana Batista de Jesus, viveram no arraial do Conselheiro. Foi lá que eles se casaram, sendo celebrante das núpcias o padre Sabino, famoso vigário do Cumbe que, amigo de Antônio Conselheiro, costumava visitar Canudos, ali rezar missas e ministrar os sacramentos. E seus pais gostavam do Conselheiro, "seu" João de Régis? "Ave Maria, gostavam demais", ele responde. João de Régis recupera-se de uma pneumonia. Ainda tosse, mas se diz melhor. A cabeça continua boa, a memória, precisa. João de Régis mostra um documento. É um salvo-conduto emitido pelo Comitê Patriótico da Bahia, datado de 12 de janeiro de 1898 e assinado por Lélis Piedade, em favor da avó de João de Régis, Josepha Maria de Jesus, e suas filhas Joana (que viria a ser a mãe dele), Maria e Antônia. Pede-se ali às "autoridades do Centro do Estado" fazerem o obséquio de "protegerem-nas, em qualquer emergência". O documento, atente-se, data de três meses depois do fim da guerra. A avó, a mãe e as tias de João de Régis encontravam-se em Salvador. Para lá tinham sido enviadas muitas mulheres de maridos que foram mortos em combate ou executados, bem como suas crianças. Elas se tornariam empregadas domésticas ou prostitutas, em Salvador e em outros lugares. No caso, a avó e a mãe de João de Régis queriam voltar porque sabiam que os homens da família estavam vivos. Daí terem pedido ajuda ao Comitê Patriótico, uma entidade beneficente criada para prestar assistência aos sobreviventes da guerra, dirigida pelo jornalista Lélis Piedade. O documento que João de Régis tem em casa é um salvo-conduto para a volta a Canudos.
E como elas sabiam que os homens da família o avô materno e o pai de João de Régis estavam vivos? Porque eles se encontravam fora do arraial, quando do assalto final, explica João de Régis. Um dia, eles saíram pela Estrada de Uauá, para apanhar farinha. Quando estavam fora, a estrada foi fechada pelo Exército. Não puderam voltar. Por essa Estrada de Uauá, acrescente-se, fugiram muitos conselheiristas, nos últimos dias. Sobreviventes contaram que, das trincheiras, os soldados gritavam avisando que a estrada estava aberta e que quem quisesse fugir ainda era tempo. O pai de João de Régis era de Pombal, ao sul de Canudos, e tinha vinte e poucos anos quando o Conselheiro passou por lá. "Ele achou bonito aquele jeito do Conselheiro, aquela amizade, aquela vivência", conta João de Régis. Então resolveu acompanhá-lo. A mãe era da região de Canudos e aderiu ao Conselheiro junto com os pais e as irmãs. E como viviam seus pais, em Canudos? O pai trabalhava de carapina, diz seu João de Régis isto é, de carpinteiro, fazendo as casinhas do arraial. A mãe fiava algodão e fazia rede. João de Régis explica que, quando alguém queria casar, a primeira coisa a fazer era comprar uma rede. "O Conselheiro vivia em comunidade, rezando, dando conselho", conta João de Régis. Quando a família se reencontrou, depois da volta das mulheres de Salvador, veio viver aqui, nesta mesma terra onde nos encontramos, nas Umburanas. Viviam "de roça", de "tropinha de animais", e assim a vida continuou e continua até hoje, e continuará sempre. O episódio de Canudos foi um espasmo sangrento e tumultuado, e depois o sertão voltou ao sossego de sua eternidade. Aqui, o tempo não se mexe. João de Régis nasceu neste recanto do fim do mundo e neste recanto do fim do mundo morrerá.
Quem vaga pelo sertão terá sempre a persegui-lo um duplo acompanhamento sonoro: o chocalho das cabras e a Rede Globo de Televisão. O chocalho das cabras está lá desde sempre. A Rede Globo, que se ouve nos restaurantes, nos bares abertos para a rua, nas pousadas e nas casas, deu o ar de sua graça mais recentemente. Quem diz que o tempo não se mexe aqui?
Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe, 80 quilômetros ao sul de Canudos, tem seu Ioiô da Professora. Seu Ioiô, se fosse um espetáculo, não um ser humano, seria do tipo que os críticos classificam de "imperdível". Ele conta a história de Canudos tal qual a ouviu do pai, ou do sogro, ou de outras pessoas, quando jovem. Conta o que se dizia na região quando se soube que Moreira César estava chegando: Vamos arretirar!!! Vem aí um Treme-Terra que não arrespeita sertanejo!!! Ioiô da Professora, ou José Siqueira Santos, seu nome de registro, "da Professora" porque é filho de uma professora primária, tem 89 anos, pele branca, farta cabeleira branca, é magrinho e usa óculos de grossas lentes. Seu sogro era o maior fazendeiro do Cumbe, o "coronel" José Américo Camelo de Souza Velho, inimigo figadal do Conselheiro, mas nada da antiga fortuna, ou prestígio, sobrou para os descendentes. Ioiô vive de um botequim que ocupa a parte da frente de sua modesta casa, onde, basicamente, vende cachaça para os bêbados do lugar. São muitas, compridas, e cheias de detalhes e vivas descrições, as histórias de seu Ioiô. Ele conta que Pajeú, o guerrilheiro tão temido do Conselheiro, incendiou duas fazendas do coronel Zé Américo. Numa delas, só ficou um quarto onde havia imagens de santos, acomodadas em nichos. "Não sou inimigo de santo", disse Pajeú, segundo Ioiô. "Aqui tem santo. Não pode destruir." E Ioiô acrescenta: "Esse povo do Conselheiro respeitava muito esse movimento de igreja, de santo". Os bispos estavam contra o Conselheiro, explica Ioiô. Por que motivo? As rezas dele atrapalhavam a religião. Mas havia outros também insatisfeitos: O povo não queria mais obedecer os coronéis. Até para emprego, era com o Conselheiro. Ioiô explica, de diferentes maneiras, a crueldade e os maus bofes de Moreira César: Era um terrível!!! Pior que Lampião!!! Não matava mulher, mas homem era uma desgraça. Era um ateu terrível!!! Dizia: "Não quero saber de santo". Ioiô senta, levanta, gesticula. Interpreta, exclama, dá um acento de voz a cada situação. Preenche os claros das histórias com contribuições próprias, do tipo: "Então ele se sentou"; "Tirou o chapéu"; "A ordem de Moreira César foi seca". Ioiô conta que Moreira César foi vítima de uma maldição. Uma vez ele mandou fuzilar um médico. A viúva, de nome Olímpia, estava entre as pessoas que assistiram ao embarque de Moreira César, em Salvador, em direção a Canudos. Ela disse, naquele momento: Vai, bandido sanguinário... Vais a Canudos, mas não voltas. Não, não cabe dizer "se fosse um espetáculo"... Seu Ioiô da Professora é um espetáculo. A via-sacra de Monte Santo é tão sacra quanto descuidada e suja. As capelinhas pelo caminho encontram-se em estado lamentável. Mas a maior decepção está lá em cima, na Igreja de Santa Cruz, ponto final da escalada. À direita do altar, entre uma coleção de muletas e cruzes que os devotos trazem na subida e ali abandonam, em sinal de reconhecimento por graças recebidas, encontram-se, além de muita poeira, garrafas plásticas de refrigerante vazias. Do outro lado, à esquerda do altar, os ex-votos deixados pelos fiéis, na forma de braços, pernas e cabeças de madeira, empilham-se sem nenhuma ordem. Do lado de fora, nos fundos da igreja, outra cena deprimente: mais ex-votos, muito mais cabeças, braços e pernas de madeira, lembram a vala comum onde foram depositados os restos dos combatentes de alguma guerra no fim do mundo. Ou isso, ou o lixão de uma favela. Na casa paroquial, o jovem Expedito, única pessoa presente, informa que havia três padres em Monte Santo, mas hoje não há nenhum. Um foi embora da cidade. Dos outros dois, um foi para Salvador e outro para São Paulo, e talvez não voltem. É sexta-feira, dia de maior afluência de fiéis, mas não há padres para recebê-los. Se o sertanejo continua presente, em sua fé, o mesmo não se pode dizer dos agentes da Igreja. Em Euclides da Cunha, o padre, procurado reiteradas vezes pelo autor desta reportagem, nunca estava, e a igreja permanecia sempre fechada. Em contrapartida, o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua Major Antonino, estava sempre aberto. Esse singelo pormenor pode ser um bom começo para quem quer entender o avanço evangélico sobre as hostes católicas. A história da maldição da viúva contada por Ioiô da Professora corrobora a antiga tese de que Moreira César não foi morto pelos sertanejos, mas por um de seus próprios soldados. Segundo uma versão, o soldado que atirou, ao ver o coronel avançar em seu cavalo em direção ao arraial, fez isso porque estava cansado dos maus-tratos a que o coronel submetia a tropa. Segundo outra, a vingança teria sido por conta de ações praticadas por Moreira César na campanha de Santa Catarina. A família de dois irmãos mortos pelo coronel nessa ocasião teria contratado um soldado para vingá-la. Esses irmãos acrescenta-se, para fechar a história seriam ninguém menos que o pai e o tio do poeta modernista Ronald de Carvalho. Ioiô da Professora, João de Régis. João de Régis quer dizer: João, filho de Régis, assim como Ioiô da Professora quer dizer Ioiô, filho da professora. Entre o povo do sertão, em vez de sobrenome, usa-se a forma ancestral de identificar as pessoas pelo pai ou pela mãe. Outros exemplos: Joana de Manuel Eliseu, Maria de Sidrônio. Há casos em que um "de" não basta, e então usam-se dois: Maria de Totonho de Silvano. Qual seja: Maria, filha de Totonho, filho de Silvano. O município de Canudos tem 15 000 habitantes, cerca de 60% dos quais na zona rural. O progresso que o engenheiro Peixoto previa para a cidade, na década de 50, com a construção do açude que, em vez de poesia, ofereceria água e alimento à população, ainda não chegou. Luiz Paulo Neiva, que, como coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, dirige um trabalho de levantamento da situação no município, com vista a um plano de desenvolvimento, desfia alguns dados: 65,4% dos chefes de família recebem menos de um salário mínimo por mês; 25,6% recebem de um a três salários mínimos; 52% da população acima dos 15 anos são analfabetos; 22% das crianças até 6 meses sofrem de desnutrição. Canudos, onde se cria bode, pesca-se no lago e poucas coisas mais, é um dos municípios mais pobres da Bahia. Quer dizer, do Brasil. Não é bem que a atual Canudos não tenha nada que lembre o Conselheiro, como se afirmou páginas atrás. Tem. Mas é preciso procurar bem, porque está escondido. Vai-se à casa onde fica um "centro de convivência" da Igreja Católica, um local para reuniões e festinhas. Procura-se pela irmã Cirila, que veio do Rio Grande do Sul. Pede-se para abrir a sala na qual ela guarda os livros sobre a guerra, alguns objetos do período... e pronto, lá está: a cruz de Antônio Conselheiro. Sim, aquele cruzeiro que se encontrava em frente da igreja velha e que foi transportado para esta nova Canudos quando a velha foi afogada. A cruz está deitada no chão. A madeira, escura e cheia de fendas, necessita cuidados, para não apodrecer. É a mais importante relíquia que se tem do arraial. Ao lado da cruz repousa uma lápide, onde se lê: "Edificado em 1893 por A.M.M.C.". As iniciais referem-se a Antônio Mendes Maciel Conselheiro, e a lápide costumava ficar ao pé do cruzeiro. Irmã Cirila guardará a preciosa relíquia em sua sala quase secreta enquanto não se construir um local adequado para exibi-la.
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