São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002



PSICANÁLISE DO MESSIAS


Caracterização do líder de Canudos evita cacoetes deterministas e evolucionistas para enfatizar o embate entre ímpeto criador e meio social


por Jurandir Freire Costa

A cem anos da data de publicação, "Os Sertões" ganha uma atualidade surpreendente. O interesse pelos chamados "fanatismos religiosos" voltou à tona, após os atentados terroristas de 11 de setembro. Desde então, muito se discutiu sobre as origens do sectarismo e sobre os traços psicológicos de seus seguidores e mentores.
O relato da Guerra de Canudos e do papel que teve nela Antônio Conselheiro lança uma luz particular sobre o fenômeno. A matéria-prima da narrativa é a mesma dos clássicos estudos do gênero, mas a interpretação sugerida foge do habitual. Os líderes, as massas e a crença "fanática" estão lá, assim como estão, por exemplo, em Freud ou em Elias Canetti. As conclusões a que chega Euclides da Cunha, todavia, são originais e merecem uma atenção renovada.
Cada ser humano, diz ele, é uma súmula de seu tempo, e cada tempo é a extroversão sociocultural dos caracteres psicofísicos de indivíduos pertencentes às diversas "raças". Antônio Conselheiro foi o ponto de contato de uma vida com uma época. Suas idiossincrasias se associaram à desorganização social que se seguiu ao advento da República, permitindo o surgimento de Canudos, resposta religiosa ao desmoronamento da ordem monárquica.
"Só se pode avaliar a atitude [do Conselheiro]", diz o autor, "considerando a psicologia da sociedade que o criou". O "infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício".
A face da criatura revela o método do criador. Antônio Conselheiro, em "Os Sertões", é um personagem híbrido, com um pé no "hospício" e outro na "história".
Nisso reside o vício e a virtude da alquimia euclidiana. O Conselheiro "de hospício" é uma alma entrevada, rabiscada de forma a realçar as marcas da "degenerescência", da "regressão" e do "atraso" civilizatórios produzidos pela malfadada miscigenação "racial" brasileira.
O livro, sob esse aspecto, obviamente caducou. Euclides da Cunha, como tantos outros, sucumbiu à sedução teórica do evolucionismo social e psicológico do século 19 e começo do 20. Outra coisa é o Conselheiro "da história". Diferente do primeiro, este último não era uma coleção inerte de estigmas raciais "degenerados". Era uma vida singular, tecida na história de maneira irrepetível. Euclides da Cunha, aqui, se livra do entulho evolucionista e dá asas ao engenho e à arte.
Em primeiro lugar, ele passa da história pessoal do líder para a do povo brasileiro sem pedir licença aos guardiões da pureza epistemológica. A desenvoltura é salutar. O mais íntimo e o mais público, o biográfico e o sociológico, são descritos como pausas provisórias, instantes condensados do contínuo e móvel bloco de estímulos que afetam a sensibilidade do sujeito.
A fina lâmina da existência ignora as fronteiras acadêmicas. Ora pende para o externo, o coletivo, o social, ora para o interno, o psíquico, o pessoal, segundo as oscilações, pressões ou solicitações do entorno. Líderes religiosos ou loucos de "hospício" não têm "intrinsicalidade" transistórica. Ambos são produto do olhar, da força ou da violência dos que podem fixá-los em uma ou outra posição do espectro sociocultural. Para uns, o Conselheiro era um louco, para outros, um santo e um sábio. Tudo dependia da visão de mundo dos praticantes da razão ou da religião.

Profusão da vida Em segundo lugar, a perspectiva histórica euclidiana expõe a tensão entre a economia intelectual do especialista e a prolixidade do mundo. Para explicar e predizer, queremos o simples, o linear, o estável. A vida, entretanto, é barroca ou rococó. Ela não poupa, não calcula e não se contenta com o mínimo, se pode esbanjar. O ornamental e o funcional, o antigo e o recente, o sinuoso e o reto, o belo e o feio, tudo é bem-vindo na criação incessante de novas formas de ser.
Euclides da Cunha embarca sem receio na profusão da vida. Suas explicações das características mentais, morais e espirituais de Antônio Conselheiro, apesar dos cacoetes evolucionistas, nunca recorrem ao determinismo surrado do tipo "isso foi causa daquilo". O visionário messiânico não estava em estado latente no passado genético ou familiar do "tranquilo e tímido" menino Antônio Vicente Mendes Maciel. Em matéria de comportamento humano, gene nenhum tem penetrância completa e expressividade constante -e ninguém é puro replicante das neuroses dos pais.
Somos o conjunto de nossas ações possíveis ou reais sobre o mundo confrontado com os obstáculos que se opõem à nossa criatividade. Um ambiente receptivo ao risco da experimentação e à variação das individualidades incentiva a pluralidade expressiva da vida; um ambiente estreito, rígido, conservador tende a frear a liberdade com que a vida se reinventa.
A metamorfose de Antônio Vicente em Antônio Conselheiro se deveu à resistência que o ambiente ofereceu ao ímpeto criador do primeiro, forçando-o a se converter no segundo. A pobreza do sertão nordestino; o adultério da mulher; a ganância dos negociantes; a cultura dos jagunços; a religiosidade popular; a mesquinhez invejosa de certos párocos; a prepotência das autoridades eclesiásticas; a leviandade das elites políticas do Rio de Janeiro; a "opinião pública" mundana e europeizada da rua do Ouvidor etc., tudo isso fez de Antônio Vicente o Antônio Conselheiro. Tudo isso empurrou o pacífico construtor de capelas e o humilde fazedor de milagres para fora da República brasileira, que já nasceu excluindo a maioria do seu círculo de eleitos.
Não existe um perfil psicológico do "fanático", conclui Euclides da Cunha. Existem condições que não deixam outra saída ao indivíduo, exceto o "fanatismo". "Fanatismo" é a réplica dos que encontram na seita o lugar que o mundo lhes negou; dos que refazem do zero a própria filiação porque foram deserdados pela tradição; enfim, dos que se mostram na fúria ou no escândalo para não morrerem como se não tivessem existido.

Eixos do mal Antônio Vicente, sem a dureza do ambiente, talvez tivesse continuado a ser o pacato vendedor de loja que sempre foi, e sua memória, hoje, estaria perdida em algum arquivo empoeirado de paróquia ou cartório de interior. Quis a fortuna que tudo fosse diferente. As "potências superiores" levaram-no a "bater de encontro" a uma civilização que só lhe acenou com a alternativa "hospício" ou "história". Foi para a história. Não sem antes ter a cabeça decepada, depois de morto, e o crânio dissecado, de forma a mostrar "no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura".
Dor de uns, bálsamo de outros. Graças a Antônio Conselheiro e a Euclides da Cunha, conhecemos um pouco mais como a "civilização" fabrica "eixos do mal" coalhados de bandidos, marginais, fanáticos, rebeldes e "loucos criminosos". A lição dos erros é amarga, mas é a que menos esquecemos.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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